As histórias que uma imagem pode contar: cinco séculos de Portugal em uma foto

© Luís Ferreira Alves

São muitas as narrativas que se sobrepõem e cruzam na arquitetura e na cidade. Fruto do desejo humano de criar distinções artificiais em meio à natureza - seja por necessidade ou por vontade de manifestar sua existência - o espaço arquitetônico pode até apresentar certo rigor, mas mesmo as geometrias mais rígidas são o lugar onde variadas experiências, tempos e ações humanas sucedem.

Assim, sobre a intenção projetual sobrepõe-se a vida, e o resultado é um emaranhado constantemente mutável de narrativas. Para compreender essas histórias - ou segregá-las para contar ainda outras histórias - podemos contar com algumas ferramentas de representação da arquitetura e do espaço. A fotografia, nesse sentido, é aliada, e com ela é possível desembaraçar - ou complicar ainda mais - o novelo urbano em narrativas específicas, recombiná-las e, então, contar outra prosa.

A fotografia exibida acima foi feita pelo fotógrafo português Luis Ferreira Alves e nos foi enviada como parte da campanha de cartões de natal de 2018. A versão original continha uma borda branca com o nome do fotógrafo, o ano e a sucinta mensagem "boas festas". À diferença dos demais cartões, este chamava a atenção pela despretensão e singeleza.

Ferreira Alves é um dos fotógrafos de arquitetura há mais tempo em atividade em Portugal. Sem formação em arquitetura, iniciou sua carreira no campo da fotografia especializada no início da década de 1980 e, desde então, já reportou obras de alguns dos arquitetos mais interessantes da arquitetura portuguesa daquela época e de agora - notadamente, Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura, Paula Santos, Guilherme Machado Vaz e Correia/Ragazzi Arquitectos. Suas fotografias revelam um olhar franco sobre as obras e exploram o estado real dos espaços, sobretudo em termos de iluminação natural e apropriação humana. 

Voltando ao cartão de boas festas, embora a fotografia seja, à primeira vista, absolutamente simples e de arranjo minimo, um segundo olhar, mais atento, desvela uma série de intenções do fotógrafo.

Três elementos bastam à composição: no primeiro plano, a estátua de uma figura humana, no intermediário, uma grua e, mais ao fundo, uma edificação antiga; o céu, como quarto elemento e pano de fundo, amalgama os demais. Para compreender a fotografia, é preciso, antes, entender seus elementos. 

A estátua em questão é a representação do Infante Dom Henrique e se localiza no Jardim homônimo, na porção mais antiga do centro do Porto, em Portugal. Nascido em 1394, o Infante fora o quinto filho de D. João I, rei de Portugal, e Dona Filipa de Lencastre. Cedo, aos 20 anos, convenceu seu pai a organizar a campanha de conquista de Ceuta, na costa norte-africana junto ao estreito de Gibraltar. Durante o século XV, foi figura de proa em uma série de expedições portuguesas, contribuindo com a expansão do reino de Portugal na África e em ilhas do Atlântico. 

O edifício ao fundo, por sua vez, é o Paço Episcopal do Porto. Ocupando a porção elevada do Terreiro da Sé, dominando a paisagem, o conjunto é resultado de uma sucessão de obras que tiveram início no século XIII mas que só atingiram sua feição barroca atual em meados no século XVIII a partir do projeto do arquiteto italiano Nicolau Nasoni. 

Quinhentos metros e três séculos afastam estes dois pontos turísticos no centro do Porto. Entre eles, uma grua.

Portugal tem experienciado uma série de mudanças em suas cidades, com destaque, primeiro, para Lisboa, e mais recentemente para o Porto. Quem tem a oportunidade de caminhar pelas ruas destas cidades se depara com um verdadeiro contingente de turistas de diferentes partes da Europa e do mundo, atraídos a Portugal por diferentes razões - da deliciosa gastronomia tradicional (que sobrevive à duras penas em meio a cafés e restaurantes de feição internacionalizada) ao agradável clima, nem muito quente, nem muito frio. No Airbnb, chovem anúncios de estúdios e pequenos apartamentos para aluguel temporário, além de passeios e experiências que podem ser agendadas para grupos de turistas interessados. O mercado imobiliário, por sua vez, acompanha o ritmo frenético com novos edifícios e, sobretudo, projetos de reabilitação de construções mais antigas. Gruas e andaimes são vistos por toda a parte.

Levemente fora do prumo, inclinada poucos graus para cima, com a mão em riste, a estátua do Infante aponta o além-mar; o século XV foi glorioso para as expedições portuguesas e muito disso se deve a Dom Henrique. No canto esquerdo, de presença singela na composição, o Paço Episcopal, simplesmente por existir, evoca a lembrança de sucessivas construções ao longo dos séculos. Ao centro, num diálogo que cruza os séculos, o gigantesco braço metálico da grua corta o céu e divide a imagem num eixo diagonal, apontando vertiginosamente para cima - um esperançoso vislumbre do futuro do país, ou, mais possivelmente, uma reflexão sobre a superficialidade desse crescimento exponencial, representado na foto pela leve estrutura de aço.

As possibilidades de sentido desta narrativa são muitas e sobre isto pode-se apenas especular. Nesse sentido, a fotografia de Luis Ferreira Alves é terreno fértil, reunindo no mesmo espaço três ou quatro elementos e cinco séculos de história de Portugal. 

Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "As histórias que uma imagem pode contar: cinco séculos de Portugal em uma foto" 18 Fev 2019. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/911574/que-historias-uma-fotografia-pode-contar> ISSN 0719-8906

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