Desde os anos 1970, a arquitetura tem buscado conexões com outros campos da arte, procurando inspiração para romper com os paradigmas da época na escultura e pintura, bem como na música e na literatura. Em escolas e na prática profissional, projetos de arquitetura foram desenvolvidos a partir do estudo de "pinturas de Vermeer, bem como dos cubistas, da música de Bach, bem como de Maredith Monk, de fragmentos literários de Hareclitus, bem como de Moby Dick de Herman Melville e de Finnegan’s Wake de James Joyce.”[1]
Cada um desses campos apresenta similaridades e sobreposições com a arquitetura, porém, uma linguagem se mostra ainda mais próxima dela: o cinema. A relação entre os filmes e a arquitetura tem sido tema fecundo desde o surgimento da sétima arte; já no primeiro filme produzido – L’arrivée d’un train en gare à La Ciotat, feito pelos irmãos Lumière em 1895 – a arquitetura e a cidade desempenhavam um papel de protagonista: estavam presentes no filme o trem, a estação e a multidão, elementos emblemáticos da modernidade.
Os filmes vêm sendo estudados, aponta Juhani Pallasmaa, “com o propósito de descobrir uma arquitetura mais sutil e responsiva”[2] e, apesar de historicamente a música ter sido tratada como a arte mais próxima da arquitetura – devido a sua inerente abstração – o cinema está ainda mais próximo dela, não apenas por sua estrutura temporal e espacial, mas porque ambas as formas de arte – cinema e arquitetura – articulam espaços vividos, isto é, ambas podem ser entendidas como artes espaciais que envolvem a atividade humana.
Enquanto tal, filmes e arquitetura se sobrepõem em diversos pontos, como, por exemplo, na construção de cenários: não se pode negligenciar o poder do cenário em filmes como O Gabiente do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene, ou mesmo Metropolis (1927), de Fritz Lang. Nesse sentido, o expressionismo alemão é bastante representativo; nele, pela primeira vez, o cenário atuou como protagonista do filme.
Em outra situação temos os ambientes urbanos reais que serviram de pano de fundo para os filmes italianos neo-realistas do pós-guerra, como Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, e Ladrões de Bicicletas (1948), de Vittorio De Sica. Esses filmes representavam visões críticas da realidade da época e, como aponta Kracauer [3], o espaços urbano, com suas ruas e edificações, era o local e veículo dessa crítica social.
A influência pode se dar também no sentido inverso: o cinema na arquitetura. Assim como esta ergue cenários nos filmes, o cinema pode, com luz, sombras, escala e movimentos, construir espaços. Pode-se dizer, inclusive, que a inexistência de limitações físicas concretas faz com que o cinema possa ir ainda mais longe que a arquitetura – enquanto prática de projetar e construir edificações – em termos de experimentações espaciais.
Montagem Arquitetônica
Considerando que ambas as artes espaciais acontecem na dimensão do tempo e do movimento, podemos ainda pensar a arquitetura em termos cinematográficos. Essa concepção nos leva, na realidade, para antes mesmo da invenção do cinema. Auguste Choisy publicou em 1874 o trabalho intitulado Sur la courbure dissymétrique des degrés limitant au couchant. La plate-forme du Parthénon, que tinha como foco de análise a Acrópoles de Atenas e suas edificações.
Observando seu posicionamento irregular e assimétrico, Choisy concluiu que a implantação dos edifícios e monumentos da Acrópole fora planejada para a perspectiva e movimento do visitante, tendo como preocupação a primeira impressão que tem o espectador do conjunto construído. Ao fim de seu ensaio Choisy conclui: “Mas um fato geral parece dominar seu sistema: o cuidado em combinar tudo em vistas do primeiro aspecto que se oferece ao espectador, e que grava em seu espírito uma impressão mais duradoura e mais vívida.” (CHOISY, 1874)
Posteriormente, tanto Sergei Eisenstein, em Montage and Architecture, quanto Le Corbusier, em Por uma Arquitetura, tomaram as anotações de Choisy como base para desenvolverem suas respectivas teorias do movimento no espaço.
Para o cineasta soviético, a própria arquitetura incorpora os princípios da montagem cinematográfica. Suas características de uma arte espacial experienciada no tempo fazem dela a predecessora do cinema. É, então, a justaposição sequencial dos espaços que garante a apreensão da arquitetura.
“Na base da composição de seu conjunto, na base da harmonia de suas massas conglomeradas, no estabelecimento da melodia do futuro extravasamento de suas formas, e na execução de suas partes rítmicas, dando harmonia ao relevo de seu conjunto, encontra-se aquela mesma ‘dança’ que está também na base da criação da música, pintura e montagem cinematográfica.” - EISENSTEIN, 1987 apud VIDLER, 1993, p. 55
Assim, na composição dos conjuntos arquitetônicos estaria a mesma “dança” ou movimento inerente à montagem cinematográfica. De modo semelhante, Le Corbusier desenvolveu suas teorias a respeito do movimento do corpo no espaço ao elaborar a ideia de promenade architecturale, descrevendo o movimento do espectador em duas de suas casas da década de 1920, a Maison La Roche-Jeanneret e a Villa Savoye.
“Nesta casa [a Villa Savoye] somos apresentados a um verdadeiro promenade architecturale, oferecendo prospectos constantemente cambiantes e inesperados, mesmo impressionantes. É interessante que tanta variedade tenha sido obtida quando, do ponto de vista do projeto, um rigoroso esquema de pilares e vigas tenha sido adotado. [...] É movendo-se [...] que se pode ver as ordens da arquitetura se desenvolverem.” - Le Corbusier e Pierre Jeanneret, Oeuvre Compléte 1929-1934, p. 24.
Nesse sentido, Eisenstein e Le Corbusier apontam para a mesma direção; ambos enxergam a arquitetura como uma arte apreensível sequencialmente através do movimento do corpo e dos olhos do espectador no espaço, isto é, como uma montagem cinematográfica.
Na montagem, diz Roemer van Toorn, “as imagens estão em uma relação dialética uma com as outras, e levam, através da colisão e conflito, a uma síntese.”[4] Segundo o autor, o mérito da montagem de Eisenstein é que ela insere um “transformador estético”, isto é, o significado das imagens não está nelas mesmas, mas na sombra projetada na consciência do espectador por meio da montagem. Algo emerge da justaposição sequencial de imagens que não pertence a elas, mas se dá em função da relação de cada uma com a anterior e a subsequente que permite interpretações outras.
“Não é necessário criar um mundo, mas a possibilidade de um mundo”, escreve Jean Luc Godard. Para o cineasta, o mundo visível é assombrado pela "possibilidade de outro mundo.”[5] Em seus filmes, com efeito, a possibilidade de outros mundos emerge e “de repente, na mesma imagem, existem dois espaços que pertencem a diferentes períodos (...)”[6], como se vê, por exemplo, em cenas de Pierrot le fou (1965) [traduzido para o português como O Demônio das Onze Horas].
De modo similar, a montagem arquitetônica de Eisenstein e o promenade architecturale de Le Corbusier proporcionam a possibilidade de outros mundos dentro da arquitetura – outras arquiteturas dentro da arquitetura: movendo-nos, a arquitetura se desdobra e revela de modo “inesperado” e “impressionante”, e apreendemos o espaço não através dos volumes e massas que o constituem, mas através da mesma “dança” que é está na base da montagem cinematográfica.
O Corpo no Espaço do Filme
“A arquitetura jamais deixou de existir”, comenta Walter Benjamin (1987), ela existe desde tempos imemoriais, quando o ser humano pela primeira vez buscou abrigo do corpo num espaço definido. Desde esse momento, também, ela se caracteriza por ser recebida na esfera coletiva.
Benjamin aponta a arquitetura como uma arte que é recebida pela coletividade e pelo hábito, e não puramente pela percepção ótica. Ele comenta:
“No que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande medida a própria recepção ótica. Também ela, de início, se realiza mais sob a forma de uma observação casual que de uma atenção concentrada. [...] as tarefas impostas ao aparelho perceptivo do homem, em momentos históricos decisivos, são insolúveis na perspectiva puramente ótica: pela contemplação. Elas se tornam realizáveis gradualmente, pela recepção tátil, através do hábito. Mas o distraído também pode habituar-se. Mais: realizar certas tarefas, quando estamos distraídos, prova que realizá-las se tornou para nós um hábito.” - BENJAMIN, 1987, p. 193-194
Nesse sentido, a condição tátil da arquitetura – o hábito – pode então, para o autor, influenciar sua percepção ótica. Para compreender isso basta termos em mente que a arquitetura tem como um de seus objetivos primordiais atender as pessoas, que, por sua vez, a usam.
No entanto, a constatação mais surpreendente é que, para Benjamin, como aponta em seu seminal ensaio A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, a condição tátil não é exclusiva da arquitetura, ela é também dominante no cinema. O arquiteto e professor Juhani Pallasmaa coloca em belos termos o que foi dito acima:
“A ideia de Benjamin sugere que, embora a situação de ver um filme transforme o espectador em um observador sem corpo, o espaço cinematográfico ilusório devolve ao espectador seu corpo, já que o espaço experiencial tátil e motor proporciona poderosas experiências cinestésicas. Um filme é visto com os músculos e pele tanto quanto pelos olhos.” - PALLASMAA, 2000
Benjamin sugere, então, que o filme tem a capacidade de tirar o espectador da condição de observador inerte e coloca-lo no papel daquele que experimenta com o tato – isto é, com o corpo – o espaço fílmico. Nesse sentido, não é exagero pensarmos que, ao assistirmos um filme, experienciamos fisicamente aqueles lugares e situações que nos são mostradas em uma sala escura, em uma televisão ou na tela de um computador.
Todavia, se a arquitetura não tem conseguido fazer parte da vida das pessoas enquanto reflexão, deve-se a isso, talvez, o fato dela sempre ter sido, como sugere Benjamin, “o protótipo de uma obra de arte cuja recepção se dá coletivamente, segundo o critério da distração”[7]. Nesse aspecto o cinema se distancia da arquitetura; Anthony Vidler (1993) coloca que o filme “permite ao público, não mais distraído, ser novamente colocado na posição de crítico.” E continua: “Assim, o único modo de tornar a arquitetura crítica novamente era removê-la de seu contexto de objeto observado acriticamente, seu estado distraído, e oferecê-la a um público agora atento – isso é, fazer um filme do edifício.”[8] Ou, como mostraremos a seguir, um vídeo de arquitetura [9].
Vídeos de Arquitetura
O desenrolar de mais de um século de existência alterou profundamente os modos como a sociedade se relaciona com os filmes. Conta-se que na primeira vez que o filme dos Lumière foi projetado, parte do público se levantou e fugiu aterrorizada pelo iminente choque do trem contra a tela, tamanha a semelhança das imagens com a realidade.[10]
O constante aprimoramento da técnica ao longo dos mais de 100 anos de existência, somados ao [relativamente] recente surgimento da internet e plataformas de compartilhamento de vídeos (youtube, vimeo etc.) e, ainda, à popularização de câmeras e outros equipamentos capazes de produzir registros audiovisuais em alta qualidade alterou sensivelmente o modo como lidamos com a produção e a recepção do cinema. Parece incabível pensarmos hoje em alguém fugindo aterrorizado pela verossimilhança de um filme com a realidade.
A tradicional forma de assistir um filme, a projeção na sala escura de cinema, se modifica em outros modos de prestigiar uma produção audiovisual: a televisão e, posteriormente, a internet. Dentre os desdobramentos do cinema, deteremos nossa atenção no que representa para a arquitetura essa explosão de produções audiovisuais independentes que atualmente circulam na internet.
A popularização de equipamentos capazes de produzir vídeos em alta definição sem altos custos ocasionou, nos últimos anos, um aumento significativo na produção de vídeos com foco em obras arquitetônicas. O que antes era território de médias e grandes produções, com caráter, sobretudo, documental, se desdobrou em vídeos de curta duração, de natureza muitas vezes poética e linguagem fortemente influenciada pelo cinema, que buscam capturar alguns aspectos dos edifícios ou espaços urbanos. Para ilustrar podemos citar os vídeos sobre a cobertura da Praça do Patriarca e sobre o Pavilhão de Lisboa para a Expo 98, ambos produzidos por Pedro Kok, o vídeo sobre o projeto Sliced Porosity Bloc, produzido pelo grupo Spirit of Space, ou o vídeo The Learn'd, de Victor Vroegindeweij sobre um centro educacional em Roterdã.
Tais vídeos são, em parte, produzidos por profissionais que já atuavam no nicho da fotografia de arquitetura e que, com o aprimoramento das câmeras fotográficas, que há alguns anos foram adaptadas para registrar vídeos em alta definição, passaram a experimentar na área da cinematografia. Também há casos em que esses vídeos são produzidos por produtoras ou agências onde eventualmente atuam arquitetos que optaram pelo ofício audiovisual ao invés do projeto ou construção de edifícios.
Outros exemplos podem ser citados, sem contar, é claro, as pessoas que “se arriscam” nesses vídeos de arquitetura sem necessariamente serem arquitetos ou fotógrafos ou cineastas, mas simplesmente porque contam com o equipamento e, sobretudo, o olhar para registrar em vídeo esses espaços construídos.
The Learn'd, ou o Corpo Virtual
Retomando a noção da arquitetura como montagem cinematográfica, podemos tomar o vídeo The Learn’d, de Victor Vroegindeweijl, como exemplo para explorar mais profundamente a ideia do corpo no espaço fílmico. Combinando as imagens em movimento com uma voz profunda que recita a poesia When I heard the learn’d astronomer, de Walt Whitman, acompanhada ao fundo por uma potente trilha sonora de Diederik Idenburg, o vídeo tem como objeto o projeto de um Centro de Educação realizado pelo escritório KAAN Architecten, localizado no hospital universitário Erasmus MC, em Roterdã, Países Baixos. O vídeo foi produzido por ocasião da indicação do projeto para o Mies van der Rohe Award 2015 e faz parte de uma exposição inaugurada em maio de 2015 no Centro MUHBA Oliva Artés em Barcelona.
Quatro planos em traveling marcam o início do vídeo. O primeiro deles mostra ao longe a fachada do Centro de Educação, que em seguida é aproximada e, pelo movimento de câmera, faz revelar um singelo jogo de volumes entre uma laje com recortes ortogonais e o volume do edifício. O terceiro plano, por sua vez, aproxima ainda mais a fachada de vidro que, mostrada à esquerda e refletindo as árvores e construções à direita e fora do plano, desfaz o limite entre interior e exterior ao dar a impressão das silhuetas vegetais e arquitetônicas estarem dentro da própria edificação.
No quarto plano se vê ainda a fachada envidraçada – porém através de um ângulo oblíquo – e, atrás dela, um corpo. A figura humana entra em cena logo no início e se faz presente, sutil e delicada, até o final do vídeo. A presença do corpo no espaço fílmico é bastante marcante no vídeo de Vroegindeweijl, ajudando o espectador não apenas a compreender o espaço construído, mas a apreendê-lo através da imersão no espaço virtual [11] representado na tela. Às duas figuras que caminham, correm e ocupam de vários modos os espaços, soma-se nosso próprio corpo que, através das “poderosas experiências cinestésicas” proporcionadas pelo “espaço cinematográfico ilusório”, passa a experienciar a arquitetura representada na tela com os músculos e pele, tanto quando com os olhos.
O “observador sem corpo” passa, então, a viver o espaço fílmico virtual. Descarnado da realidade, seu corpo reencarna nos espaços potenciais do filme, podendo, efetivamente, sentir, saltar, ouvir, e se deslocar no espaço representado. Como na utopia primeira de Michel Foucault [12] – aquela do mundo das fadas, duendes e outras criaturas mágicas – os filmes operam um deslocamento – ou desdobramento – que faz do corpo incorpóreo e o transporta para seus espaços – recriações virtuais de uma realidade concreta.
Espaços Mentais: a expansão da realidade
Os movimentos de câmera podem reproduzir o percurso humano no espaço construído; a arquitetura pode ser, através da câmera, mostrada como um verdadeiro promenade architecturale, para usar o termo de Le Corbusier. Os meios de representação, no entanto, por mais sofisticados que sejam, jamais substituirão a experiência real de uma obra de arquitetura, de uma cidade, de um espaço.
Por outro lado, também não se pode negligenciar o poder do cinema e, mais precisamente, dos vídeos de arquitetura, de representar e tornar a apreensão de um espaço construído mais completa. Indo além, podemos afirmar que as realidades mostradas nos filmes – sejam as cidades ou, no caso de The Learnd’, um edifício – estão abertas a interpretações daqueles que as assistem. Leonardo Name (2003) coloca que “os espaços dos filmes estão abertos para serem ocupados pela mente de qualquer indivíduo, que os vive de maneira única, retirando impressões e emoções totalmente diferenciadas”.[13]
No entanto, Name alerta para o fato desses espaços representados estarem fora de seu contexto real e se basearem em ideologias, conceitos e sentimentos comuns entre os espectadores e o cineasta. Ou seja, o filme traz consigo traços de quem o fez, logo, sua recepção não depende exclusivamente do público.
Nesse sentido, como os vídeos de arquitetura são recebidos pelo público? Qual é o verdadeiro aporte desse meio de representação para a arquitetura?
Ao passo que a arquitetura se ocupa, dentre muitas outras coisas, da concepção de espaços reais, Pallasmaa (2000) sugere que “o cinema constrói espaços na mente, cria espaços mentais, refletindo assim a inerente e efêmera arquitetura da mente, pensamento e emoção humana.”[14] Esses espaços mentais, somados aos espaços vividos, criam, segundo Name, uma espécie de “acervo pessoal de memórias”. Ao assistirmos um filme, esse acervo de memórias é ocasionalmente acionado: os espaços de cada filme se interligam a outros espaços que já vivemos, sejam reais ou fílmicos, criando uma rede formada pelo conjunto de experimentações dos espaços fílmicos que cada indivíduo assiste ao logo de sua existência.
Um vídeo de uma obra de arquitetura, muito além de simplesmente representar o espaço construído, pode desencadear uma série de memórias outras que complementem, contradigam ou questionem a obra representada. Portanto, a apreensão da obra está condicionada tanto pelas escolhas do cineasta – ou, como vimos, arquitetos, fotógrafos, entusiastas, etc. – como pela interpretação do vídeo por parte do espectador, que funde mentalmente os espaços mostrados com seus espaços mentais.
Vemos o que está no quadro, isso depende das escolhas de quem produziu o vídeo (movimentos de câmera, enquadramento, etc.), o que está fora dele faz parte do plano da imaginação, e isso depende de uma série de experiências únicas de cada indivíduo. Nesse sentido, o vídeo de um espaço construído expande a apreensão da daquele espaço, assim como um vídeo de arquitetura expande a própria arquitetura, que é ocupada pela mente e corpo do espectador e lhe oferece a possibilidade de outros espaços dentro do espaço representado.
Para além da tela: outros tópicos sobre imagem e espaço
Com as tecnologias de captura e projeção de imagens em constante avanço, por certo não podemos garantir aos vídeos de arquitetura uma posição unânime na representação dos espaços. Um exemplo disso é o surgimento do Google Street View, ferramenta associada aos serviços de mapeamento Google Maps e Google Earth, que proporciona vistas panorâmicas de ruas e espaços públicos e semi-públicos de diversas localidades do globo.
Embora, à primeira vista, essa ferramenta não sugira aplicações para produção estética, a possibilidade de utilização de vistas panorâmicas de cidades e paisagens logo foi associada a produções artísticas que relacionam as imagens com diferentes narrativas. Como exemplo temos a enorme quantidade de vídeos em timelapse e hyperlapse que usam as imagens do Google Street View para criar itinerários que, em questão de segundos, nos transportam de uma paisagem desértica ao centro de uma metrópole.
Se retomarmos a ideia de Benjamin, que diz que a experiência cinestésica do filme nos faz experiência-lo com o corpo, e não apenas com os olhos, vídeos em hyperlapse e timelapse de imagens do Google Street View nos fazem experimentar com a pele e músculos não apenas a compressão do espaço, mas também do tempo.
Outro exemplo que pode ser tomado aqui é o recente videoclipe da música Stonemilker, da cantora islandesa Björk. Nele a artista se apresenta inicialmente estática, de frente para a câmera, porém, passados alguns segundos Björk começa a se mover, caminhando em direção ao canto direito da tela até que, finalmente, sai do plano. Não adivinhamos onde está a cantora se não usarmos o mouse do computador para explorar em 360° o espaço do vídeo.
A paisagem marítima e rochosa pode ser vista em uma panorâmica completa que serve de cenário e palco para a apresentação da artista. Facilitado pelos navegadores de internet, que permitem ver através do quadro retangular todo o espaço no qual Björk se apresenta, o videoclipe foi produzido, na realidade, para ser assistido com o dispositivo Oculus Rift, um óculos de Realidade Virtual (VR), e faz parte, originalmente, de uma residência artística da cantora no Museu de Arte Moderna (MoMA) em Nova Iorque.
“Ver é crer”, segundo os próprios fabricantes do Oculus Rift, e é de se imaginar que com o equipamento de Realidade Virtual a imersão na paisagem islandesa seja ainda mais profunda, já que podemos seguir os passos da cantora simplesmente movendo nossa cabeça e olhos.
Indo além na imersão do corpo no espaço virtual, a empresa Microsoft divulgou no início deste ano um novo recurso para seu sistema operacional que em breve poderá ser comercializado. Trata-se do HoloLens, um óculos que permite a sobreposição de elementos holográficos nos espaços reais. Mesclando virtualidade e realidade, o HoloLens se apresenta como uma possibilidade de ir além da tela, invadindo o mundo físico com elementos digitais.
Seja através dos vídeos de arquitetura, como o exemplo de The Learn’d citado anteriormente, ou por meio de tecnologias mais recentes de imagens feitas por satélite, Realidade Virtual ou hologramas, a possibilidade de outros mundos – retomando o que disse Godard – dentro das obras audiovisuais produzidas a partir dessas imagens é latente. A análise dos vídeos permite compreender essa linguagem como uma expressão que se localiza na fronteira da expansão da arquitetura, abrindo caminho para a construção de espaços que são, em última instância, construções mentais que se apoiam na sobreposição entre as imagens mostradas na tela e o acervo de memórias e imagens pessoais de cada um.
Assim também podem ser interpretadas as produções estéticas baseadas em outras imagens que, no lugar de edificações, têm como foco espaços urbanos e paisagens naturais, por exemplo. Embora tratem, à primeira vista, de algo diferente dos vídeos de arquitetura, compartilham com eles a mesma capacidade de ampliação dos espaços, seja nos deslocando no tempo, fazendo-nos entrar literalmente no espaço virtual, ou trazendo para a realidade elementos digitais.
E se, “de repente, na mesma imagem, existem dois espaços que pertencem a diferentes períodos”[15], as produções artística vistas acima fazem com que dois passem a ser muitos, já que para cada espectador – se é que esse termo ainda é adequado – o espaço se expande.
Notas
[1] Juhani Pallasmaa. Lived Space in Architecture and Cinema.
[2] Idem
[3] Em Anthony Vidler, The Explosion of Space: Architecture and the Filmic Imaginary, p. 51
[4] Roemer van Toorn. Architecture Against Architecture – Radical Criticism Within Supermodernity, p. 6
[5] Em Roemer van Toorn. Architecture Against Architecture – Radical Criticism Within Supermodernity, p. 7
[6] Jean-Paul Fargier, “La face cachée de la lune” in: Art Press: Spécial Godard, no. 4 (1984-1985) apud Toorn (1993)
[7] Walter Benjamim. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas, p. 193
[8] Anthony Vidler. The Explosion of Space: Architecture and the Filmic Imaginary, p. 53
[9]“Vídeo” como qualquer produção audiovisual feita em suporte digital, veiculadas através de outros meios que não a sala de cinema, como, por exemplo, a internet.
[10] Leonardo Name. O cinema e a cidade: simulação, vivência e influência.
[11] “Virtual” no sentido de potência; um espaço em potencial.
[12] Michel Foucault. O Corpo Utópico, As Heterotopias/ Le Corps Utopique, Les Hétérotopies.
[13] Leonardo Name. O cinema e a cidade: simulação, vivência e influência.
[14] Juhani Pallasmaa. Lived Space in Architecture and Cinema.
[15] Jean-Paul Fargier, “La face cachée de la lune” in: Art Press: Spécial Godard, no. 4 (1984-1985) apud Toorn (1993)
Referências Bibliográficas
- BENJAMIN, Walter. L’oeuvre d’art à l’époque de sa reproductibilité technique (version de 1939). Paris: Éditions Gallimard, 2000.
- _____ A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987.
- CHOISY, Auguste. Sur la courbure dissymétrique des degrés limitant au couchant. La plate-forme du Parthénon. Paris: Encyclopédie d’Architecture, Revue Mensuelle des Travaux Publiques et Particuliers, 1874.
- EISENSTEIN, Serguei. Montage and Architecture. Assemblage, No. 10 (Dec., 1989), pp. 110-131, Cambridge: The MIT Press, 1989.
- FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, As Heterotopias/ Le Corps Utopique, Les Hétérotopies. Editora: n-1 Edições, 2013. Edição bilíngue.
- LE CORBUSIER. Por uma Arquitetura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011.
- NAME, Leonardo dos Passos Miranda. O cinema e a cidade: simulação, vivência e influência. Vitruvius – Arquitextos, 2003.
- PALLASMAA, Juhani. Lived Space in Architecture and Cinema. INSITU, University of Calgary, 2000.
- TOORN, Roemer van. Architecture Against Architecture – Radical Criticism Within Supermodernity, Disponível em: http://www.roemervantoorn.nl/architectureagai.html. Acesso em: 05/04/2010.
- VIDLER, Anthony. The Explosion of Space: Architecture and the Filmic Imaginary. Assemblage, No. 21 (Aug., 1993), pp. 44-59, Cambridge: The MIT Press, 1993.