Este artigo foi originalmente publicado pelo CommonEdge como "Notre-Dame and the Questions It Raises About Sacred Space."
Foi como assistir a alguém morrer.
Enquanto a Catedral de Notre-Dame ardia em chamas no último dia quinze de abril, centenas de pessoas rezavam ajoelhadas pelas ruas de Paris e outras milhões de pessoas o faziam desde suas casas, prostradas em frente a televisão. Um aflição que tomou conta do coração de milhões de fiéis, justamente durante a "semana santa", aquela que é considerada a principal celebração do calendário religioso cristão, entre o domingo de ramos e o domino de páscoa.
Para aqueles que, como nós, inspiram e respiram arquitetura todos os dias, foi como se de repente todo o mundo só se importasse com ela. Muito além da religião em si, iniciou-se um debate muito abrangente sobre as condições da própria arquitetura. Nos jornais e nas ruas só se falava disso. Historiadores foram chamados ao vivo nos principais canais de televisão para falar sobre a importância desta obra de arquitetura, pessoas que nunca tinham ouvido falar em contrafortes ou gárgulas publicavam suas angustias em todos os tipos de mídias sociais. Imediatamente, criou-se uma rede de milhões e milhões de pessoas que comentavam e discutiam o destino de uma das mais importantes obras de arquitetura do último milênio. Finalmente, parecia que a arquitetura era capaz de transcender questões religiosas para ser defendida e exaltada por uma comunidade muito mais ampla e diversa.
Para alguém que vive lendo e escrevendo sobre a arquitetura religiosa, sobre a sua capacidade de edificar a espiritualidade nas pessoas, isso tudo me fez refletir sobre uma série de questões. O fato é que a arquitetura religiosa encontra-se atualmente em um estado de total precariedade. Este descaso abrange estruturas de praticamente todas as religiões conhecidas no mundo, cada dia mais menos pessoas frequentam ou visitam estes edifícios. Um estudo realizado pelo Centro de Pesquisas Pew e divulgado no ano passado chamou a atenção para a “diferença de idade” na religiosidade das pessoas: cada vez menos os jovens consideram a religião como algo importante em suas vidas. A pesquisa revelou que esta tendência abrange países com perfis socioeconômicos completamente diferentes, e que ela está se alastrando muito mais rapidamente em países considerados "religiosos" que em países não-crentes. E isso não é um fenômeno recente, segundo o Centro de Pesquisas esta queda começou a ser notada há décadas. Atualmente mais de vinte e três por cento da população dos Estados Unidos não se identifica com nenhuma religião, um número maior do que a porcentagem de pessoas que se consideram católicas romanas. Mas, curiosamente, a maioria delas não se define como ateus ou agnósticos. Outro estudo realizado pelo Centro de Pesquisas Pew em 2017 descobriu que setenta e dois por cento das pessoas que não se identificam com nenhuma religião, dizem acreditar em Deus, em um poder superior ou em uma força espiritual: pessoas com espiritualidade, mas não religiosas. A arquitetura de uma catedral obviamente impressiona, mas ela se manifesta de diferentes maneiras para cada um de nós. Uma catedral em chamas, por outro lado, pode comover a todos.
Há alguns anos, tive a oportunidade de trabalhar com um grupo de estudantes de pós-graduação em arquitetura. Para a maioria deles, a espiritualidade na arquitetura não tem nada a ver com "incensos ou sinos", vitrais ou altares. Para estes estudantes de arquitetura a espiritualidade de um espaço está relacionada com aquilo que as pessoas fazem nestes lugares. Um edifício não é sagrado porque uma força sobrenatural o abençoou ou por causa de seus símbolos, muito menos pela forma que assume. Para estes alunos, o que define um espaço sagrado é a maneira como as pessoas se relacionam ali dentro, as coisas que elas compartilham e tudo aquilo que as une e aproxima. Então, quando esses mesmos alunos foram convidados à projetar um espaço "sagrado", eles pensaram em criar edifícios que pudessem acolher pessoas em situação de rua, órfãos e idosos, eles imaginaram um ateliê colaborativo de arte ou um lugar que pudesse aproximar as pessoas ao redor do mundo. Para esses jovens, sacralidade tem mais a ver com as interações interpessoais e aquilo que dá significado à vida das pessoas, do que com a própria arquitetura. Com eles eu aprendi muito mais sobre o poder da espiritualidade do homem do que em qualquer sagrada escritura.
A Notre-Dame de Paris será inevitavelmente reconstruída. Daqui a alguns anos, ela voltará a ser exatamente como era antes. Talvez ela assumirá novas formas como o resultado das novas tecnologias disponíveis. É importante relembrar que a Notre-Dame como a conhecíamos ontem, se transformou profundamente ao longo de seus 850 anos. Isso não é o mais importante, o realmente fundamental é se ela voltará a ser um espaço sagrado como antes, se ela será capaz de reedificar a espiritualidade nas pessoas, assim como ela o tem feito a mais de oitocentos anos.
Thomas Merton, famoso monge trapista, escritor, teólogo e poeta, era contra a reconstrução de edifícios religiosos; para Merton, recriar o passado era negar toda e qualquer possibilidade de reedificar a espiritualidade e o espaço sagrado, “como se a fé fosse algo do passado, como se a religião fosse apenas um formalidade necessária, congelada no tempo, indiscutível e inalterável.” O monge Merton acreditava que a arquitetura deveria ser constantemente reinventada para promover a espiritualidade de seu tempo, seja ela qual for.
Obviamente, a Catedral de Notre-Dame não é um templo ecumênico. Entretanto, volto a afirmar que a sua arquitetura se revela de diferentes maneiras para cada um de nós. Milhões de pessoas em Paris, na França e ao redor do mundo, independentemente de suas crenças e credos, acreditam que a sua arquitetura é patrimônio cultural - material e imaterial - da humanidade, um marco na história da arquitetura e da nossa civilização como um todo. Por fim, como este projeto de reconstrução (que já começou ainda antes de se apagarem as chamas) se estenderá pelas próximas décadas, é preciso refletir ainda que por um breve momento sobre o significado do espaço sagrado para cada um de nós, se é que ele ainda significa alguma coisa.