Um ano após a tragédia causada pelo incendio no Edifício Wilton Paes de Almeida, compartilhamos esse texto originalmente publicado em 2018 no jornal "A Escola e a Cidade", produzido pela Editora da Escola da Cidade.
Edifícios são produtos sociais. A violência da queda de um edifício acompanha também uma violência social. Se na sua construção encontram-se sintetizadas e concretizadas os desígnios e possibilidades futuras da sociedade, a sua queda sintetiza e concretiza o fim de um ciclo histórico. É conhecida internacionalmente a trajetória do arquiteto Minoru Yamasaki, responsável pelos projetos do conjunto habitacional Pruitt-Igoe (1954-1972, Saint Louis-Missouri, EUA) e das torres do World Trade Center (1973-2001, New York, EUA). O primeiro foi demolido em 1972, em resposta à grande degradação social que tomou conta do edifício. Charles Jencks, historiador de arquitetura, declarou que a data desta demolição era também a do fim do movimento moderno, que demonstrava incapacidade de lidar com a realidade social que se transformava. Realmente, um ciclo histórico se encerrava ali. Vários historiadores definem o ano de 1973 e sua crise do petróleo como o início da contemporaneidade (tema central do clássico “A Condição Pós-Moderna” de David Harvey). Depois da crise, vem a construção: no mesmo ano, é inaugurado o WTC em NY, símbolo do ciclo histórico seguinte que, não por menos, marca também seu fim em 2001 com o ataque terrorista às Torres Gêmeas.
Pois nós temos também nossa própria história, ainda que vinculada à mundial. Quero lembrar aqui do ciclo histórico no qual se insere o dito “Lulismo”. Na história dos edifícios, a implosão da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, em 2002, acompanha a vitória de Lula nas eleições daquele ano. Cenário do grande massacre de (pelo menos) 111 presos em 1992, sua demolição foi realizada como forma de sublimar a era da violência estatal, inaugurando o ciclo do Estado “virtuoso” – o ciclo marcado pelas políticas públicas. Como fim do período Lulista, é necessário lembrar a violentíssima reintegração de posse da ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos-SP, em 2012, que pôs abaixo de maneira ilegal cerca de 2.000 casas já consolidadas. Quero expor nesta pequena nota que acredito que a queda do Edifício Wilton Paes de Almeida, neste ano (esperamos) eleitoral, é também uma marca do fim do ciclo das políticas públicas, dentro do qual se inseriu o Lulismo.
Acredito que a queda do Wilton Paes não foi causada por falta de política pública, mas é consequência, entre outros fatores, das contradições daquela que foi adotada pelo Lulismo, especificamente aquelas voltadas ao urbano. E que o período que se abriu pós 2013, que culmina nesta cena de brutal violência, não está fora do seu ciclo, mas é seu coroamento. Como as outras quedas descritas aqui, esta marca o deslocamento atual entre a realidade social e seus marcos físicos, como os edifícios, excessivamente rígidos e necessariamente ligados à sua época. O Wilton Paes é um exemplo disso: edifício moderno de escritórios de última geração no centro da cidade quando foi construído, sua queda é expressão das transformações urbanas que levaram à sua deterioração. Deterioração esta que é também, talvez principalmente, social: o que pegou fogo ali foi primeiramente a precariedade mais primitiva, paredes de madeirite e, certamente, uma chaminé de gases tóxicos no poço do elevador, que servia de lixão. No centro da mais moderna cidade da América do Sul, o que caiu foi a contradição. O sociólogo André Gunder Frank, na década de 1960, acertava em cheio: nosso desenvolvimento possível só podia ser o “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Quando se analisam as políticas públicas do período Lulista, é com tal contradição que nos deparamos: quanto mais se investe, as conquistas diretas e aparentes ocultam uma série de consequências primeiramente silenciosas, mas que com o tempo se fazem sentir – violentamente, como a tragédia que presenciamos. Vou exemplificar com dois exemplos destas políticas públicas.
Primeiramente, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Em poucas palavras: um programa habitacional não pode ser um programa de aceleração econômica, já que o problema da falta de moradia é causado por ela. A consequência é clara: a cada família atendida, outras tantas são removidas pelo aumento do preço dos materiais, mão de obra e, principalmente, da terra e seus derivados (como o aluguel). Houve uma opção pelo PMCMV em detrimento do SNHIS (Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social), e ela não foi só do governo e do mercado, mas também da sociedade e dos movimentos populares, que passaram a ter conquistas materiais. Um dos pilares do Lulismo é a conciliação social: e estavam todos contentes com o PMCMV, colocando suas energias em “melhoramentos” do programa, ao invés de criticar suas bases contraditórias que, mais cedo ou mais tarde, explodiriam. Pois ao olhar para o PMCMV, não podemos nos esquecer de que ele se insere numa conjuntura de expansão financeira do mercado imobiliário no Brasil, cujo ponto de partida é a expropriação através das rendas imobiliárias. O aumento do preço da terra – também causado pelo neodesenvolvimentismo lulista e sua expressão urbana – foi um dos elementos importantes das explosões sociais de 2013, que marcaram a revolta causada pela espoliação urbana.Quatro anos depois da implantação do PMCMV, ocorreu uma enorme onda de ocupações de terra na periferia, em sua maioria sem organização de nenhum movimento de moradia – ocupados que estavam no acesso ao programa. As imensas remoções realizadas pelo avanço do “crescimento econômico” (no caso de São Paulo, principalmente o Rodoanel, o Programa Mananciais e a formação de bancos de terra privados para o PMCMV) mostravam suas consequências. O que explodia era a contradição: o investimento em política pública piorou a vida nas cidades, aumentou seu custo. A contradição não é facilmente transformada em reivindicações, problema que vemos agora com o Wilton Paes: confunde-se a falta de política pública com a violência das consequências de sua aplicação.
Outra política pública, oriunda da gestão municipal paulistana entre 2001 e 2004 foi o Programa Bolsa Aluguel. De maneira ainda mais fluida do que o PMCMV, ele coloca recursos públicos diretamente no mercado privado de aluguel. Segundo o Balanço Qualitativo de Gestão 2001-2004 da SEHAB, “espera-se o desenvolvimento de um mercado privado de locação social, para cuja dinamização a Bolsa Aluguel pode ser um instrumento bastante efetivo” (Op.Cit., p. 69).Pois bem, efetividade absoluta: se o mesmo Balanço indicava, em 2004, 2.600 famílias em atendimento, em 2017 a cidade tinha nada mais nada menos do que cerca de 33mil beneficiários (o número foi para 28mil este ano, por conta do corte de auxílios irregulares). O salto é de cerca de R$ 12 milhões anuais em 2004 para R$ 133 milhões em 2017 (11 vezes maior), que representam cerca de metade das despesas municipais de habitação. Mais uma vez, a explosão das contradições: grande investimento com enorme número de “beneficiários”, mas que na verdade não conforma um programa habitacional (como poderia ter sido o Aluguel Social, com parque público de oferta de aluguel) e, ao relegar a solução aos ditames mais abusivos do mercado privado popular, promove ainda mais precariedade. O que é esta “solução”, senão incentivar em enorme escala os antigos cortiços, agora com verba pública (limpa e segura)? Sobram contradições para aqueles que pretendem dar caráter político à disputa por terras urbanas: a necessidade de diferenciação dos movimentos em relação aos abusadores se torna assunto da vez para os primeiros, que precisam dar relevância pública ao processo político formativo. Algo que, infelizmente, por conta da estrutura social lulista, já não estava no horizonte de muitos deles.
O Wilton Paes é consequência disso tudo – e de outras coisas mais, que não caberão aqui. O caráter da política pública adotada, típica do Lulismo, ao promover indiferenciações entre Estado, Capital e Sociedade Civil Organizada, leva a contradições que, agora, se voltam justamente contra o elo mais fraco da conciliação: os movimentos populares. A urbanista e ex-relatora da ONU Raquel Rolnik tem colocado esta contradição em relevo: segundo ela, “O Bolsa Aluguel é o verdadeiro combustível para novas ocupações”. Fica evidente na sua fala que aquelas ocupações que nascem dessa forma de relacionamento entre as forças sociais elencadas acima têm tendência a deixar de lado sua forma política contra-hegemônica e se amoldar à “dinamização” do mercado popular. Assim, a decorrência mais imediata da queda do Wilton Paes está sendo a criminalização dos movimentos de luta por moradia, que têm travado, em conjunto aos seus técnicos, uma batalha para não terem reintegrações de posse ou cortes de eletricidade nas ocupações existentes. Isso é indicativo de fim de ciclo: quando uma prática política legitimada socialmente passa a ser criminalizada numa escala maior do que junto aos seus inimigos históricos, significa que se abriu a possibilidade conjuntural de certa indiferenciação narrativa entre a luta contra-hegemônica e as práticas abusivas junto à população mais vulnerável.
Assim, insisto que a tragédia que assistimos teve na queda do Wilton Paes uma expressão concreta, mas que é uma ponta de iceberg. Ela deflagra cabalmente as consequências da era das políticas públicas específicas que foram realizadas, o Lulismo, cujo caráter aprofunda a crise urbana e dilui a luta de classes. Não precisamos de mais efetividade dessa mesma política pública, precisamos sim renovar as formas de organização popular, que se depara com o aumento do grau de precarização das relações de trabalho e de espoliação urbana. Depois da queda, vem a construção. Esperamos.