O que acontece quando a cidade imbuída de sensores adquire a capacidade de enxergar - quase como se tivesse olhos? Antes da Bienal de Urbanismo e Arquitetura de 2019 em Shenzhen (UABB), intitulada "Urban Interactions" [Interações Urbanas], o Archdaily está trabalhando com os curadores da seção "Eyes of the City” [Olhos da Cidade] na Bienal para estimular uma discussão sobre como as novas tecnologias – e Inteligência Artificial em particular – pode afetar a arquitetura e a vida urbana. Aqui você pode ler a declaração curatorial “Eyes of the City” de Carlo Ratti, Politecnico di Torino e SCUT. Se você se interessar em participar da exposição na UABB 2019, envie sua proposta para a Chamada Aberta “Eyes of the City” até 31 de maio de 2019: www.eyesofthecity.net
Sem a cidade, a modernidade nunca poderia ter sido inventada. O que estamos descobrindo agora é se a modernidade pode sobreviver em uma cidade transformada pela revolução digital. A cidade pode oferecer segurança e comunidade, mas o que não permite aos seus habitantes é a possibilidade de serem diferentes, um fenômeno que é tão verdadeiro agora quanto era durante a era das bruxas.
Na melhor das hipóteses, a cidade permite a diferença e a tolerância. Foi isso que fez e ainda faz da cidade um ímã poderoso para os ambiciosos e os criativos, os pobres e os desesperados. Entrar em um bar ou em uma loja, alugar um quarto, comprar um livro ou entrar na internet, sem que ninguém saiba quem você é, é um privilégio precioso e essencialmente moderno, que alguns de nós têm tido a sorte de ter como um direito.
A possibilidade de anonimato é uma das qualidades mais importantes que diferenciam uma cidade grande de uma pequena. São precisamente essas qualidades que estão sendo desafiadas pela revolução digital.
A explosão da mídia social e a adoção universal do smartphone, entregue há apenas 12 anos por Steve Jobs a um mundo em grande parte incompreensível, foram prometidos como os próximos passos na modernidade, mas acabaram empurrando o mundo de volta à condição pré-moderna. O Twitter estava destinado a derrubar as autocracias do Oriente Médio, mas nos levou de volta à Idade Média com a máfia do linchamento digital; e o retorno de antigas superstições sobre vacinas e preconceitos contra pessoas de fora reapareceram em uma nova era de irracionalidade.
No entanto, essa condição de "cidade pequena" foi uma que Jane Jacobs celebrou tão poderosamente em A Morte e a Vida das Grandes Cidades Americanas em 1961, talvez o primeiro livro genuinamente popular sobre planejamento urbano desde o excêntrico panfleto de Ebenezer Howard sobre Cidades-Jardim, e não tanto como uma defesa da cidade, mas como um mal-entendido da qualidade essencial da “urbanidade”.
Jacobs começou a matar o que ela via como o demônio de duas cabeças do planejamento urbano,combinando Howard e Le Corbusier – dois pensadores muito diferentes e mutuamente antagônicos – em uma única entidade. Howard acreditava em reduzir drasticamente a densidade das cidades existentes. Le Corbusier acreditava exatamente no oposto, mas para Jacobs ambos tinham “definido ideias poderosas e destruidoras de cidades”.
Ao ajudar a mobilizar os moradores de uma Lower Manhattan rapidamente gentrificante, ela fez sua parte para impedir os planos de implantação de uma rodovia em toda a cidade. Mas ter parado Robert Moses teve a consequência não intencional de tornar a área segura para os recém-chegados para investir.
Sua mensagem, no fundo, era simples. Ela havia assumido uma casa decadente em West Greenwich Villagee e, junto com seu marido arquiteto e seus três filhos, a revitalizou alcançando o conforto da classe média. Ela não queria que isso mudasse para dar lugar a uma nova estrada de seis pistas.
Claramente, ela gostava da vida na Hudson Street, com suas delicatessens e bares, sua mercearia familiar com seu amigável, mas não muito amigável proprietário sempre disponível para cuidar de suas chaves de casa, mas não para intrometer-se nos detalhes de seus arranjos domésticos. Mas além da nostalgia por esses encantos íntimos, muitos de seus escritos refletem a sensação de ameaça que ela sentia vindo da cidade. Ela podia soar como uma desbravadora do velho oeste, protegendo sua propriedade em território hostil.
Sua descrição do que ela chama de balé diário da calçada da Hudson Street celebra “os aliados cujos olhos nos ajudam a manter a paz na rua”. Apesar de sua ostensiva celebração da diversidade e da comunidade, a mensagem subjacente está mais próxima da paranoia. Ela identificou o que ela chamou de aves de passagem, que não ajudariam a defender a comunidade. Ela os desaprovava fortemente.
Uma cidade com sistemas de identificação de placas de carro e de reconhecimento facial, movida por sistemas de compartilhamento de carros, monitorando multidões na rede de metrôs, com sistemas de pagamento que rastreiam todas as viagens feitas em todas as linhas de ônibus e metrô de uma cidade pode ou não representar os "aliados" que Jacobs teria chamado para ajudar a manter a paz em Greenwich Village.
Podemos ser capazes de domar o poder dos impérios de mídia social de nossos tempos, mas uma prioridade ainda mais necessária é encontrar formas de usar o potencial do digital para reverter nosso recuo da modernidade.
Podemos, por exemplo, nos contentar com a ausência de espaços públicos físicos se tivermos um substituto digital? Andrés Jaque analisou o impacto dos aplicativos baseados em localização em um trabalho que ele fez para o Design Museum e que ele intitulou Intimate Strangers [tradução livre: Estranhos Íntimos]. Uma tecnologia semelhante a que permite ao Pentágono ordenar um ataque pontual, pode permitir que dois estranhos decidam se conhecer e imediatamente se encontrar em uma cidade lotada. O foco de Jaque estava no Grindr. Ele olhou para o modo como o que foi inicialmente concebido como um aplicativo de namoro foi usado por refugiados sírios com a ajuda de simpatizantes desconhecidos para chegarem à Europa, e através da miséria da Selva, do acampamento fora de Calais, para esperar pela chance de alcançarem a Grã-Bretanha. Ele explorou os passos de seus fundadores para introduzir uma medida de segurança para seus usuários, para protegê-los de armadilhas. E ele fez perguntas sobre o futuro da interação social entre pessoas de todas as sexualidades, quando o mundo físico for substituído por avatares na tela de um smartphone. O shopping e a loja de departamentos já são ameaçados pelo comércio na Internet. O que o namoro online fará para o mercado na vida noturna?
A ascensão do AirBnB transformou o turismo e a indústria hoteleira e agora está tendo um impacto substancial no mercado imobiliário mais amplo, inundando as ruas com as “aves” que Jane Jacobs desprezava e que se revelaram ainda mais destrutivas em seus efeitos do que ela temia, aumentando o valor dos aluguéis e injetando um grande número de visitantes temporários sem participação na comunidade.
Enquanto o smartphone abole a ideia de privacidade, precisamos encontrar maneiras de usar a tecnologia para restaurar algumas das qualidades essenciais da cidade. O Bitcoin pode oferecer um modelo para o que pode ser uma versão contemporânea do anonimato. Em termos urbanísticos, se o impacto do desenvolvimento digital é minar a cidade física, a Internet, que de uma forma análoga a todas as cidades físicas autênticas, tem tanto sua luz quanto seu lado sombrio, devem emergir e permanecer como o novo domínio público. Crimes e vícios pairam nas bordas do espaço virtual, que também engloba a grande biblioteca gratuita que é a Wikipedia, a explosão de arquivos online e as barracas de mercado que são projetos de código aberto. Tornou-se uma mistura poliglota do inspirador e do banal. Enquanto isso, o Twitter é a divisória de banheiro do século XXI, um lugar para os grosseiros e os anônimos deixarem sua marca, combinados, se formos generosos, com uma versão eletrônica de um muro da democracia. Para oferecer um estilo de vida que ofereça o mesmo que a cidade antiga, o mundo digital deve reter o suficiente dos valores fundamentais de "urbanidade" e encontrar novas maneiras de fornecê-los.
Sobre o Autor
Deyan Sudjic é diretor do Design Museum desde 2006. Ele foi o editor fundador da revista Blueprint, editou a Domus em Milão e foi diretor da Bienal de Arquitetura de Veneza em 2002. Ele foi curador de exposições em Istambul, Copenhague, Londres e Glasgow. Seu livro mais recente, The Language of Cities, foi publicado em cinco idiomas.
Para mais informações sobre a Chamada:
"Urban Interactions": Bi-City Biennale of Urbanism\Architecture (Shenzhen) - 8ª edição. 15 de Dezembro de 2019, Shenzhen, China.
http://szhkbiennale.org/
Inaugurando em 15 de dezembro de 2019 em Shenzhen, China, "Urban Interactions" é a 8ª edição da Bi-City Biennale of Urbanism\Architecture (UABB). A exposição consiste em duas seções, a saber, “Eyes of the City” e “Ascending City”, que explorarão a relação em evolução entre o espaço urbano e a inovação tecnológica de diferentes perspectivas. A seção “Eyes of the City” apresenta o arquiteto e professor do MIT Carlo Ratti como Curador-Chefe e o Politecnico di Torino e a South China University of Technology, como curadores acadêmicos. A seção "Ascending City" apresenta o acadêmico chinês Meng Jianmin e o crítico de arte italiano Fabio Cavallucci como curadores-chefes.
Seção "Eyes of The City"
Curador-chefe: Carlo Ratti.
Curador Acadêmico: South China-Torino Lab (Politecnico di Torino - Michele Bonino; South China University of Technology - Sun Yimin)
Curadores Executivos: Daniele Belleri [CRA], Edoardo Bruno, Xu Haohao
Curador da GBA Academy: Politecnico di Milano (Adalberto Del Bo)
Seção "Ascending City"
Curadores-chefe: Meng Jianmin, Fabio Cavallucci
Co-Curadoria: Science and Human Imagination Center da Southern University of Science and Technology (Wu Yan)
Curadores Executivos: Chen Qiufan, Manuela Lietti, Wang Kuan, Zhang Li