Se existe dentre as artes alguma capaz de se aproximar da arquitetura, é o cinema. A habilidade de representar espaços em movimento ao longo do tempo aproxima o cinema da arquitetura de um modo que foge aos limites da pintura, da escultura, da música - considerada por muito tempo a arte mais próxima da nossa - e até mesmo da dança. A questão do espaço é central tanto no cinema quanto na arquitetura e embora lidem com ele de maneiras diferentes, aproximam-se ao proporcionar uma experiência corporal - e não só visual - do ambiente construído.
Um dos muitos pontos de contato dentre estes dois campos pode ser encontrado na crítica do espaço feita pelo cinema. Isto é, a crítica da arquitetura. Uma variedade de produções, lançadas desde os Lumière, lidam com a representação da cidade e da arquitetura através do ecrã, e, destas, boa parte se dedica a fazer isso de modo crítico, lançando um olhar desacreditado ou provocador sobre a produção arquitetônica corrente.
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O fato de o cinema ter surgido contemporaneamente à arquitetura moderna talvez lhe tenha atribuído o papel de instrumento de crítica. Fato é que muitas produções cinematográficas acabaram se tornando (mesmo sem a intenção de o ser) exemplos memoráveis de crítica da arquitetura e sociedade modernas. Vejamos algumas a seguir:
Crítica do habitat moderno: Meu Tio (Jasques Tati, 1958)
Em visita à família de sua irmã, Monsieur Hulot é recebido em uma casa absolutamente de ponta, preparada para as necessidades da vida moderna. Espaços racionais, automatização e uma variedade de utensílios e dispositivos tecnológicos fazem parte deste novo contexto. Deslocada, a irônica figura de Hulot tenta em vão se adequar à nova realidade que promete facilidade e conforto, mas que lhe apresenta apenas obstáculos e resistência.
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Crítica à política habitacional: O mito Pruitt Igoe (Chad Freidrichs, 2011)
Documentário sobre o conjunto habitacional Pruitt Igoe, projetado por Minoru Yamasaki e construído nos arredores da cidade americana de St. Louis. Reunindo depoimentos de ex-moradores do conjunto, o filme apresenta as motivações que levaram à construção do enorme complexo habitacional e as contradições que levaram à sua implosão em 1972, momento histórico que alguns críticos (emblematicamente) definem como o fim da arquitetura moderna.
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Crítica à cidade moderna: Playtime - Tempo de diversão (Jasques Tati, 1967)
A austeridade da vida na cidade moderna é retratada mais uma vez por meio do contraste com a figura nostálgica de Monsieur Hulot. Através do cômico deslocamento do personagem principal, o filme trata da questão da identidade do indivíduo frente a uma realidade cada vez mais mecanizada oferecida pela cidade moderna - que no filme foi retratada a partir de um gigantesco cenário que contava literalmente com edifícios construídos sobre rodas.
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Crítica ao consumo: Duas ou três coisas que eu sei dela (Jean-Luc Godard, 1967)
Godard usa imagens das transformações urbanas ocorridas nas periferias de Paris na década de 1960 como metáforas para a vida das personagens. O cotidiano das mulheres retratadas no filme é narrado a partir do cotidiano da urbe - consumismo, capitalismo e globalização aparecem como temas centrais da história, seja em relação à cidade ou às mulheres.
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Crítica ao controle: Alphaville (Jean-Luc Godard, 1965)
Alphaville é uma cidade hostil, sombria e desumana localizada em um futuro impreciso. Nela, todas as ações sociais são controladas por um sistema central, um computador que recebe o nome de Alpha 60 e que calcula e comanda o destino de todos os seus habitantes. Esta sociedade distópica, dominada pela tecnologia, parece ter mais a ver com a nossa realidade do que gostaríamos - e as consonâncias aumentam quando lembramos os empreendimentos Alphaville que surgiram anos depois, promovendo um modelo no mínimo questionável de urbanidade.
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Publicado originalmente em 27 de maio de 2019, atualizado em 22 de maio de 2020.