O ano é 2010. O Catar como o primeiro país árabe a sediar o Mundial da FIFA em 2022 já inicia intensamente os preparativos para receber dali a 12 anos o tão esperado e custoso evento. São postos em marcha extensos esforços de construção e reconstrução não só de equipamentos diretamente ligados às demandas feitas pela FIFA, mas também e de forma mais ampla, sistemas infraestruturais urbanos das principais cidades do país.
Verifica-se desde logo um impasse. Quais são os motivos, razões e dinâmicas específicas que levam o governo do Catar – um país relativamente pequeno sem representativa presença do futebol em sua cultura, semidesértico cuja economia gira de forma notável em torno da extração de gás natural e de população reduzida – a pleitear e encampar os preparativos para realizar um evento dessas proporções?
Tais perguntas levam ainda a um segundo e terceiro impasses. O segundo nos leva a refletir sobre a abertura do país para investimentos globais em novas infraestruturas e quais os meios de financiamento desses esforços, enquanto o terceiro conecta-se às denúncias internacionais que surgem nesse contexto embora denunciando práticas mais extensas e antigas de trabalho análogo ao escravo no Catar envolvendo lógicas migratórias.
Editoriais internacionais e organizações defensoras dos direitos humanos atacam há anos da realização do evento os abusos reportados nas relações de trabalho envolvendo migrantes. Polêmicas no ramo da arquitetura também tomaram lugar no caso específico das mortes e acidentes na construção do estádioAl Wakrah e o papel dos escritórios globais dentro dessa complexa e arcaica cadeia de produção.
«É fundamental compreender que casos como o do Qatar não são fatos isolados ou de exceção, mas que constituem parte do mercado de produção da arquitetura na contemporaneidade, empregando e envolvendo profissionais espalhados pelo mundo.» —Marianna Boghosian Al Assal
A complexidade do tema e dos atores envolvidos dificulta e constantemente posterga a identificação dos problemas e a proposição de soluções. A construção civil envolve casos de trabalho escravo desde a antiguidade e na contemporaneidade, aparece em diferentes formas mesmo que com práticas semelhantes. No caso específico do Catar, relações globais de produção e regulamentações específicas formam as principais bases para os preparativos do maior evento de futebol do mundo, onde práticas já denunciadas e agora expostas necessitam ser identificadas, revisadas e combatidas.
Futebol Desenvolvimentismo: A Conveniência.
O Catar vem nos últimos anos depositando muitas energias e recursos no quesito futebol. Através da compra e venda de jogadores no mercado internacional e de grandes investimentos nacionais, o esporte vem sendo inserido na cultura catariana de forma intensa. A realização do Mundial no país faz parte de um projeto em andamento. Historicamente já se conhece as inúmeras vantagens existentes em hospedar um evento de tamanhas proporções e além do marketing nacional é viabilizada uma estratégia específica de crescimento, que nos atreveremos a chamar de futebol-desenvolvimentismo.
Comum a outras edições da Copa do Mundo o impacto nas infraestruturas locais é notável. Não sendo de todo mal, países e regiões possuem chance de se colocar como receptores de investimentos físicos, assim como tiram do papel obras significantes de mobilidade urbana, estruturas públicas, e claro, os predestinados complexos esportivos. Sistemas de transporte modernos, hotéis luxuosos e estádios de alta desenvoltura e complexidade arquitetônica fazem parte das demandas diretas ou indiretas para a sua realização.
O Catar, uma pequena península localizada no Golfo Pérsico será não somente a primeira nação árabe a sediar o evento, como também a menor em toda a história do campeonato. O sorteio para a escolha do país enquanto palco da edição de 2022 foi e está sendo questionada por órgãos internacionais e pela mídia global por esquemas de corrupção que envolvem membros da Federação, governantes locais e a maior agência de comunicação do Catar e mais influente no mundo árabe.
Parece-nos conveniente a realização de um evento de tamanhas proporções. Não somente pela oportunidade de convocar investidores das partes mais ricas do mundo, se torna também uma chance de dar continuidade ao ambicioso projeto de desenvolvimento do país.
Desde uma perspectiva mais ampla, os países do Golfo Pérsico já são conhecidos pelos altos rendimentos no comércio e na exploração de recursos naturais como o petróleo e o gás natural. Essas como atividades principais levaram os emirados da região a uma elevada concentração de renda, assim como garantiram os primeiros lugares quando o assunto é PIB per capta mundial – devido também às pequenas populações comparadas com a alta renda concentrada. Tais altíssimas quantias são reinvestidas em uma vasta carteira, onde o construtivo é comumente um dos mais rentáveis. Não é a toa que vemos no imaginário da cidade de Doha –ou até mesmo Dubai– uma paisagem repleta de riqueza e de construções imponentes projetadas pelos maiores escritórios de arquitetura do globo.
Uma semelhança a se notar é que assim como similares no imaginário, tais cidades foram construídas sob o mesmo sistema trabalhista que envolve migrantes em uma estrutura arcaica de exploração. E no caso específico do Catar, a realização do megaevento claramente potencializa esse processo.
O custo humano
O modelo utilizado de desenvolvimento construtivo do Catar desde os anos 1950 é pautado pela adoção de grandes quantidades de trabalhadores migrantes oriundos das partes mais pobres do globo, o que nos permite relacionar seu rápido e intenso desenvolvimento com uma controversa e predatória formatação em seu mercado de trabalho. A lei de patrocínio de trabalho chamada Kafala é comum a outros países do Golfo e é um dos principais alvos das denuncias internacionais na região referente às violações aos diretos humanos.
Após grande pressão da mídia e de órgãos internacionais a lei é modificada no Catar no ano de 2015, mas ainda deixa como marca os resultados físicos e humanos de um modelo específico de desenvolvimento que demorará em ter seus efeitos completamente anulados dentro e fora do país.
De acordo com a Anistia Internacional 95% da população ativa no país é migrante, vinda em sua grande maioria de países do Sul e Sudeste Asiático como Índia, Nepal, Bangladesh, Paquistão, Sri-Lanka, Filipinas, dentre outros. Para chegar ao país tais migrantes frequentemente contraem dívidas resultantes de gastos contratuais, passagens aéreas, alojamento e alimentação que incorrem no confisco de seus passaportes até o momento que não são quitadas.
O sistema Kafala é uma estrutura de regulamentação nacional e também presumia que o empregador gerasse um visto de saída, onde o trabalhador somente poderia retornar ao seu país quando autorizado, resultando no comum modelo de escravidão contemporânea por divida. Não a toa que se questiona o papel do Catar enquanto um país escravista em pleno século XXI.
Trabalhadores denunciaram que ao chegar ao país contratos são rasgados e novas regras são estipuladas. O controle do trabalho e da vida é constante e fundamental para esse modelo de exploração. Sendo assim, jornadas exaustivas expostas ao sol, sem pausas e sem descanso fazem com que mortes por exaustão sejam comuns e que exista como número oficial para os preparativos da Copa do Mundo, mais de 1200 mortes já computadas anos antes do evento. A CSI (Confederação Sindical Internacional) chegou a divulgar um estudo que prevê que se as atuais condições não se modificarem 4000 vidas serão perdidas antes da primeira partida.
Território de exceção: Liberdade e exploração.
A liberdade é uma palavra de muitos significados e interpretações. Pelo ponto de vista econômico pode representar o mantra do livre mercado e de abertura comercial. Por outro lado, também aparece como um formato de ausência de regulamentações ambientais, trabalhistas e migratórias que atraem através de vantagens comparativas espúrias capitais mundiais interessados em “economizar” nesses assuntos para aumentar seu rendimento em outros. Tanto o Catar quanto outros países do Golfo Pérsico entram nesse quadro caracterizando a região como um território de exceção.
Inúmeras promessas são feitas, tanto para atores de todo o mundo, interessados em direcionar seus investimentos (principalmente construtivos), quanto para os trabalhadores que são atraídos pela possibilidade de receber oportunidades e quantias de dinheiro que não seriam possíveis e imagináveis em seus países de origem, comumente sem opções.
A específica burocracia - ou falta de - é um forte atrativo para capitais que mundialmente buscam áreas ausentes de regulamentação tanto para transferências internacionais quanto também para questões trabalhistas. Tal combinação potencializa os retornos investidos quando inexistem barreiras para investimentos externos e quando mal se remunera ou não se remunera o trabalho humano capaz de transformar a natureza e criar mais valor.
Diferentemente do maquinário, essa capacidade específica do trabalho humano faz com que exista a iminente possibilidade de aumento da sua exploração. Levando ao limite, esse diferente daquele das máquinas, a realidade apresenta uma condição em que o flagelo e o esgotamento não aconteçam em uma peça, mas sim no próprio corpo, da exaustão até a morte.
Tal questão alimenta o fato de que mesmo com projetos inovadores e formas espetaculares promovidas pelas mais novas tecnologias, o trabalho humano ainda seja altamente explorado e flagelado na organização produtiva do país. Acidentes, exaustão e mortes são realidades muito comuns nos canteiros de obra ao mesmo tempo tecnológicos e arcaicos.
Essa oposta e complementar relação gera espaços diferentes que refletem suas respectivas condicionantes. Diferentemente das estruturas marcadas pela riqueza, aquelas que se referenciam aos trabalhadores migrantes que vivem no Catar são insalubres, precárias e da menor complexidade técnica possível. A arquitetura mais representativa desse formato de trabalho questionável são os Campos de Trabalho – que não deixam de ser um formato de campo de refúgio. Pobreza e falta de opções levam milhares de trabalhadores muitas vezes ao engano e até à morte.
Segregação Urbana e étnica.
As discussões levantadas aqui são visíveis e palpáveis pelos resultados materiais que deixam na paisagem das principais cidades catarianas. A segregação social não se refere somente ao inexistente status de cidadania desses trabalhadores mas também na perceptível distribuição das cidades do país. Desse mesmo modo, se observamos especificamente as estruturas urbanas locais vemos que a designação dos espaços que podem ou não ser ocupados depende da sua camada social e da sua origem como expressão declarada de discriminação social e étnica.[1]
Essa situação é ainda mais visível quando notamos a legislação urbanística que proíbe, por exemplo, a existência de tais Campos de Trabalho nas áreas centrais de Doha. Meio forma de não aparecer para a sociedade, meio forma de domínio, tal segregação auxilia no controle sobre o trabalho e o corpo dessas pessoas, moldando uma cidade radicalmente separada. A realidade oferece a esses trabalhadores lugares isolados, superlotados e muitas vezes insalubres como resultados de sua própria regulamentação.
O Catar e a Copa do Mundo de 2022 resumem contradições que se reproduzem pelo globo, em um caso específico de um projeto de desenvolvimento nacional conveniente para alguns e fatal para outros. Espaços estão sendo gerados que assim como a forma de produzi-los são contraditórios e para muitos perversos. A segregação e a intensa exploração se refletem nos espaços construídos da cidade de Doha onde Campos de trabalho, arranha-céus e estádios se multiplicam, não necessariamente no mesmo formato, mas reaplicando as funções para que foram pensados. As cidades que estão sendo desenvolvidas para os jogos e para um país em constante crescimento não são as mesmas que abrigam quem as constrói.
Considerações finais
Uma matéria publicada pelo jornal The Guardian revela que o governo do Catar anunciou uma parceria de três anos com a Organização Internacional do Trabalho para reformar e melhorar a condição dos trabalhadores migrantes no país. A Fifa também elaborou um conselho consultivo de direitos humanos para investigar os abusos, o que não parece tão eficaz para a prevenção dos mesmos segundo o especialista em direitos humanos Nicholas McGeehan, que afirma que o relatório publicado não explicita recomendações para impedir que as pessoas trabalhem em condições perigosas e tampouco se esforça na sinergia entre as mortes e danos físicos que acontecem dentro e fora dos locais de trabalho. Ao checar o segundo relatório identificamos alguns avanços e semelhantes deficiências principalmente no reconhecimento da cadeia de relações que não se limita somente ao local de trabalho de responsabilidade da FIFA, mas também às condições de vida fora dos canteiros de obra. Como resultado de uma relação produtiva tão predatória editoriais mencionam que mausoléus estão sendo construídos ao invés de estádios.
A complexidade nos contratos e subcontratos isenta muitos atores de suas responsabilidades em relação a essas vidas e a todo o processo. Haverá uma mea-culpa se e um grande escritório de arquitetura ou a própria FIFA dividem a responsabilidade com empresas construtoras sem constatar condições dignas para quem realiza o trabalho encomendado? Sob a regulamentação trabalhista nacional que permite situações de trabalho análogo ao escravo, seria esse o lugar ideal para realizar um evento de tamanhas proporções?
Cidades e todo tipo de infraestruturas estão sendo construídas e exaltadas por arquitetos renomados e pela comunidade global, sem se considerar o que está por trás da simples aparência de edifícios modernos e tecnológicos. Não somente, vemos que tais questões desenham cidades, mas reproduzem práticas e custam vidas.
O megaevento enquanto um acontecimento pontual intensificador do desenvolvimento construtivo de áreas e regiões pelo globo acirra as particularidades de cada país hospedeiro. No nosso caso, levantamos uma situação paradoxal que de um lado nos traz o questionamento de como uma instituição teoricamente sem fins lucrativos e supostamente ética –a FIFA– aceita a dinâmica de elaboração das estruturas necessárias para a realização do seu evento sob as condições desumanas que compõem as relações de trabalho no Catar. Por outro, talvez tenha sido uma oportunidade fundamental de expor tais problemas para a comunidade internacional, o que resultou na pressão para a tomada de atitudes que viessem a amenizar a terrível situação dos trabalhadores migrantes da construção civil não só em um país isolado, mas em toda uma região estruturada há décadas em um modelo predatório e fatal.
Também pelo ponto de vista da FIFA um grande passo foi dado na criação de um Conselho Consultivo de Direitos Humanos que mesmo servindo para remediar uma situação que poderia ser evitada, é um marco para as próximas edições do evento e para futuras práticas.
Independentemente de um evento, nos cabe identificar de que modo tais relações predatórias se dão pelo mundo através de uma forma sistemática e repetida de desenvolvimento desumano e predatório. Responsabilidades têm de ser tomadas não na intenção de remediar, e sim impedir que desastres anunciados aconteçam. Estamos falando de vidas e não de processos burocráticos e boas intenções.
Ainda nos fica a questão: quantas vidas ainda custarão para aplaudir um espetáculo?
Notas
[1] Nota 1. Ver: Pete Pattisson and Naveen Nair “Asian Town, Qatar’s mall for migrants: You can’t ignore the racial undertones”, em: Cities, publicado pelo jornal The Guardian. Disponível em: < https://www.theguardian.com/cities/
2018/oct/09/the-qatari-mall-without-qataris-you-cant-ignore-the-racial-undertones-doha> Acesso: 05/06/2019
Referências
Marianna Boghosian Al Assal, "Arquitetura, imagem e (des)construção”, em: Contracondutas.Ana Carolina Toneti, et. al. Escola da Cidade, São Paulo, 2018, p.297-316.
Ver também
Guy Horton. “The Indicator: Where the Migrant Workers Are” 12 Mar 2014. ArchDaily. Accessed 5 Jun 2019. <https://www.archdaily.com/485284/the-indicator-where-the-migrant-workers-are/> ISSN 0719-8884
Guy Horton. "The Indicator: Will We Stay Silent? The Human Cost of Qatar's World Cup" 27 Mar 2014. ArchDaily. Accessed 6 Jun 2019. <https://www.archdaily.com/490710/the-indicator-will-we-stay-silent-the-human-cost-of-qatar-s-world-cup/> ISSN 0719-8884
Amnesty International. “The Dark Side of Migration: Spotlight on Qatar’s Construction Sector Ahead of the World Cup”. 2013. Amnesty International Ltd. Accessed 6 Jun 2019. <https://www.amnesty.org/download/Documents/16000/mde220102013en.pdf>
Martin Pedersen. "Hadid's Response to Worker Deaths: Tone-Deaf But True" 04 Mar 2014. ArchDaily. Accessed 6 Jun 2019. <https://www.archdaily.com/482310/hadid-s-response-to-worker-deaths-tone-deaf-but-true/> ISSN 0719-8884
Zoya Gul Hasan. "Against All Odds, Photos Show Qatar's Determination to Construct World-Class City" 20 Oct 2017. ArchDaily. Accessed 5 Jun 2019. <https://www.archdaily.com/881561/against-all-odds-photos-show-qatar-determination-construct-world-class-city/> ISSN 0719-8884
Jonathan Liew. “World Cup 2022: Qatar’s workers are not workers, they are slaves, and they are building mausoleums, not stadiums”. 3 Oct 2017. The Independent Uk. Accessed 6 Jun 2019. <https://www.independent.co.uk/sport/football/international/world-cup-2022-qatars-workers-slaves-building-mausoleums-stadiums-modern-slavery-kafala-a7980816.html>
Rory Stott. "The Critics Speak: 6 Reasons why Hadid Shouldn't Have Sued the New York Review of Books" 27 Jan 2015. ArchDaily. Accessed 6 Jun 2019. <https://www.archdaily.com/542852/the-critics-speak-6-reasons-why-hadid-shouldn-t-have-sued-the-new-york-review-of-books/> ISSN 0719-8884
Zoya Gul Hasan. "Against All Odds, Photos Show Qatar's Determination to Construct World-Class City" 20 Oct 2017. ArchDaily. Accessed 6 Jun 2019. <https://www.archdaily.com/881561/against-all-odds-photos-show-qatar-determination-construct-world-class-city/> ISSN 0719-8884
Catherine Slessor. "Opinion: Architecture Should Not Cost Lives" 14 May 2014. ArchDaily. Accessed 6 Jun 2019. <https://www.archdaily.com/506019/opinion-architecture-should-not-cost-lives/> ISSN 0719-8884
Amnesty International. “Reality Check: Migrant Workers Rights with four years to the Qatar2022 World Cup” 5 Feb 2019, Amnesty International. Acessed on 6 Jun 2019. <https://www.amnesty.org/en/latest/campaigns/2019/02/reality-check-migrant-workers-rights-with-four-years-to-qatar-2022-world-cup/> MDE 22/9758/2019