Entre 1985 e 1989, a cidade de Olinda-PE foi palco do Piloto de um programa federal que seria desenvolvido em outras 48 cidades do Brasil. Entre outras coisas, este programa procurava viabilizar habitação social em núcleos construídos e garantir através da permanência de moradores tradicionais a memória e os modos de vida locais. Ainda pouco difundido na história do patrimônio cultural e das políticas de habitação social no Brasil, este plano aponta caminhos para a gestão de territórios a partir das práticas sociais e culturais de seus habitantes.
Em 1975, as obras de restauração da Catedral da Sé de Olinda financiada com recursos do Programa de Cidades Históricas previam a desapropriação e demolição de ocupações irregulares no entorno do monumento [1]. Entre os argumentos para as remoções, estavam a descaracterização do conjunto paisagístico “antigo” e da necessidade de revitalização para o uso turístico da área.
As formas que tomavam as ações de preservação na cidade criaram tensões entre moradores e artistas locais com o poder público. Alguns dos moradores viam nos processos de revitalização de Olinda consequências negativas para a cidade, se opondo principalmente a expulsão da população mais pobre.
“O que caracteriza Olinda não são apenas as edificações, mas as pessoas, que ligadas à sua vida cultural fazem o carnaval e as procissões. Essas pessoas, que são responsáveis pela forma peculiar que Olinda tem de se confraternizar, estão sendo expulsas pela especulação imobiliária.” - Depoimento de um vereador no Diário de Pernambuco, “Olinda tradicional declara guerra ao turismo” 14 de novembro de 1979
O turismo como solução econômica para recuperação de centros históricos não é, por si só, um recurso negativo. Foi, e ainda é, um discurso recorrente na gestão das cidades. No entanto, a utilização do patrimônio como atração econômica tende a garantir a recuperação imediata da arquitetura material das cidades para seu consumo visual, e deixa de lado a vitalidade cultural e os meios de vida da população local.
O Programa de Recuperação de Núcleos Históricos (PRNH) estruturado no final da década de 1970 buscava uma abordagem do Patrimônio Cultural que levasse em conta as populações locais. Este programa foi resultado da cooperação entre a então Secretaria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN/Pró-Memória) e o Banco Nacional de Habitação (BNH) para intervenção em habitações em estado precário de conservação em áreas tombadas. O programa teve sua ação pioneira e experimental em Olinda com o Plano-Piloto que teve início em meados da década de 1980.
Este foi o tema da pesquisa viabilizada pelo edital de Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Científico da Escola da Cidade e desenvolvida durante um ano. Intitulada Morar no Patrimônio – Direito à cidade, cultura e memória: a gestão do patrimônio cultural no Plano-Piloto de Olinda (PE) [2] a pesquisa se baseou na análise de documentos resultantes do Plano-Piloto do Programa de Recuperação dos Núcleos Históricos (PRNH), entrevista com alguns dos técnicos que participaram de sua elaboração e pesquisas já realizadas sobre o tema.
Na época de implementação do Plano, Olinda construía sua visibilidade no cenário nacional e internacional como uma cidade de valor histórico e cultural por sua arquitetura, paisagem e práticas culturais. A valorização pleiteada e adquirida através dos órgãos de patrimônio cultural e sua elevação como patrimônio mundial pela UNESCO em 1982 construíram uma imagem simbólica de Olinda, ainda presente no imaginário estético e turístico de uma parcela da cidade.
Como as seleções realizadas pelo SPHAN até então procuravam construir uma imagem homogeneizadora do Brasil, na qual não configurava a complexidade de relações sociais em que se constroem os territórios, muitas partes da cidade foram deixadas de lado. Até aquelas dentro do território tombado, como das habitações irregulares que seriam removidas no plano de restauração da Catedral da Sé. Essas ocupações existiam por toda a cidade, e datam de pelo menos antes de 1930 como pode ser visto neste cartão postal, onde aparecem casas simples de cobertura de palha.
Estas mesmas casas foram identificadas pelos técnicos do Plano-Piloto após a primeira fase das atividades do programa, como pode ser visto nas imagens que seguem. Estas casas foram incluídas na destinação dos recursos do BNH para recuperação do centro histórico de Olinda.
A perspectiva da inclusão destas habitações fora do preceito “tradicional” de preservação do SPHAN não era, porém, algo claro para os técnicos que se envolveram na gestão desde o início. O primeiro perímetro selecionado para as intervenções do Plano Piloto do Programa de Recuperação de Núcleos Históricos em Olinda contava apenas com as casas descritas como de valor histórico-arquitetônico, que compõe até hoje o imaginário estético da colina histórica.
O Programa de Recuperação de Núcleos Históricos na sua estruturação primordial, partia dos princípios de uma gestão participativa, na qual a população da cidade teria papel tanto no planejamento quanto na execução do plano. Esta prerrogativa, junto do princípio de uma gestão integrada, de cooperação técnica entre diferentes setores federais, estaduais e municipais, é em parte responsável pelos rumos que tomaram o Plano Piloto em Olinda.
Na prática, na primeira etapa de trabalho foram realizados debates iniciados em 1985, levantando e compatibilizando as demandas da população bem como as áreas de maior necessidade de intervenção. Cerca de 80% da população de Olinda na época tinha de 1 a 3 salários mínimos, e ficou evidente que para essa população a primeira prioridade era a habitação.
Nesta perspectiva foram reconhecidas duas situações de assentamento e necessidades distintas. Um primeiro grupo populacional habitava de forma dispersa toda a colina histórica em casarões que foram descritos pelos técnicos como sendo de significativo valor histórico-arquitetônico. Muitas apresentavam graves situações estruturais, bem como condições de conforto ambiental e instalações hidro sanitárias precárias.
Já um outro grupo habitava as onze favelas e assentamentos dispersos pelo núcleo histórico, vivendo no que foram chamadas de sub-habitações. Além dos aspectos de insalubridade e riscos estruturais das residências, esses moradores ocupavam áreas de risco ambiental de deslizamento e sem nenhum tipo de drenagem, tratamento de esgoto, abastecimento de água e pavimentação. Para esta situação foram realizadas tanto ações de melhoria e regularização legal das habitações, quanto melhorias urbanas, como sistemas de saneamento e contenção de encostas.
A maior parte das intervenções financiadas pelo BNH eram de pequenas obras de reparo nas casas. Os técnicos faziam um rápido levantamento e diagnóstico, e trabalhavam em ações emergenciais. Este modelo apresenta uma perspectiva interessante para políticas habitacionais. Neste sistema, a realidade cultural e material daquela população é invariavelmente intrínseca ao projeto, uma vez que não se está construindo um novo assentamento onde antes não havia ocupação, ou onde a ocupação anterior foi completamente removida.
Esta metodologia de atuação caso-a-caso, não significou que não poderiam haver soluções construtivas racionalizadas e pré-fabricadas, como no caso da experiência habitacional realizada em Recife para o Cajueiro Seco. [3] No caso do Projeto Piloto de Olinda, um grupo especial de pesquisa da própria prefeitura, financiado pelo BNH, desenvolveu um centro de experimentação e teste de pré-fabricação de elementos construtivos chamado Núcleo Comunitário de Produção, que procurava a racionalização e pesquisa tecnológica pela pré-fabricação e capacitação de mão de obra, o que garantiu o barateamento da aquisição de materiais.
Do ponto de vista do patrimônio cultural, ao procurar atender toda a população cadastrada, os técnicos se depararam com o conflito da legislação de proteção vigente e a necessidade de melhorias nas habitações. Ao mapear e cadastrar as ocupações informais de casas no núcleo histórico, incluíram simbolicamente não só o território e sua população, mas outras formas de morar que não da cidade “formal” dos casarões históricos.
Além destes aspectos, o Plano Piloto de Olinda pôs em prática algumas outras metodologias, como a reciclagem de materiais de demolição, um programa intitulado Obra-Escola que procurava a formação e reconhecimento do saber fazer de mestres artificies, implementação de composteiras urbanas, entre muitos outros. Desta forma, consolidou uma visão de sustentabilidade deste centro urbano, levando em conta, principalmente, a questão econômica da preservação das habitações e das infraestruturas.
Com as mudanças políticas em curso com a redemocratização do país no final da década de 1980 e a extinção do principal financiador, o Banco Nacional de Habitação, o Programa de Recuperação de Núcleos Históricos encerrou-se prematuramente. O Plano-Piloto de Olinda configura, ao lado da inacabada experiência do Piloto em São Luiz – MA, a única experiência prática do Programa. A Prefeitura de Olinda sustentou as ações do Projeto-Piloto até 1989 com recursos próprios, mas devido à ausência de verbas federais e respaldo político num momento transitório, o projeto terminou sem atender todos os contratos efetuados.
Ainda pouco estudada, a gestão de Olinda não conta com balanços efetivos das suas realizações após seu encerramento. As maiores contribuições estão no mestrado da pesquisadora Fernanda Maria Buarque de Gusmão, Empoderamento e preservação do patrimônio cultural: o caso do programa de recuperação e revitalização de Núcleos Históricos: Projeto Piloto Olinda/PE, 1981- 1989, pela Universidade Federal de Pernambuco, realizada em 2011. No entanto a dimensão material e socioeconômica necessita de maiores aprofundamentos, para entendimento real da efetividade na manutenção das populações nos assentamentos atendidos pelo Plano-Piloto.
Hoje, novamente, a questão do uso predatório do turismo surge nas falas dos técnicos de Olinda sobre questões de preservação do núcleo histórico. A perspectiva da “cultura eventual” como o carnaval, que atrai milhares de turistas todos os anos, passa a ser um problema para a gestão econômica e material do centro. A falta de incentivos para a preservação das edificações tombadas impulsionou a venda das casas principalmente para estrangeiros, que passaram a morar ou que deixam as casas vazias para aluguel no carnaval.
A nível nacional, estadual e municipal, o gradual desmonte das instituições de preservação do patrimônio cultural e a falta de políticas habitacionais que levem em consideração núcleos construídos se somam numa perspectiva de desaparecimento do protagonismo das comunidades nas formas de se pensar as cidades. O patrimônio cultural percebido como cidadania, como forma de qualidade de vida e direito à cidade teve papel em algumas outras gestões posteriores de patrimônio no Brasil, e continua sendo um caminho importante para se pensar o planejamento e gestão das cidades na atualidade.
Notas:
[1] O Programa de Cidades Históricas (PCH) ou Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste, com sua Utilização para Fins Turísticos foi um Programa do Ministério do Planejamento e Coordenação Geral (Miniplan) que visava a recuperação de Centros Históricos e seus monumentos para atividade turística. As opiniões discordantes a remoção das casas no entorno da Sé de Olinda foram registradas pela pesquisadora Juliana Cunha Barreto na sua tese de mestrado De Montmartre Nordestina ao mercado persa de luxo: o Sítio Histórico de Olinda e a participação dos moradores na salvaguarda do patrimônio cultural pela Universidade Federal de Pernambuco em 2008.
[2] Pesquisa realizada por Beatrice Perracini Padovan e orientada pelo professor Pedro Beresin Schleder Ferreira. O relatório final da pesquisa pode ser acessado pelo link: https://www.academia.edu/s/173a99e459/morar-no-patrimonio-direito-a-cidade-cultura-e-memoria-a-gestao-do-patrimonio-cultural-no-plano-piloto-de-olinda-pe?source=link
[3] Experiência habitacional realizada em Recife na década de 1960. Ver Reconstruindo Cajueiro Seco: arquitetura, política social e cultura popular em Pernambuco, 1960-64 Livro do autor Diego Beja Inglez de Souza.