Juscelino Kubitschek, embora lembrado por ter executado o projeto de Brasília, não foi seu idealizador. A vontade política para a construção de uma nova capital no interior do país vem desde 1808, com a ideia de elevação do status do Brasil como país e a simbolização do desenvolvimento pós-independência. O caráter desenvolvimentista, ou então da busca pelo novo, foi base da argumentação da maioria dos defensores da mudança, cada um com uma vertente diferente.
As primeiras teorias de planejamento urbano e territorial viam aglomerações de pessoas como um problema a ser resolvido. Não haveria, assim, motivo para tantas pessoas ocuparem espaços tão pequenos se o país tem um território tão extenso. Ainda, em um processo de criação de uma nova cidade, seria possível a integração e desenvolvimento das regiões interioranas. A “Marcha para o Oeste”, política implementada por Getúlio Vargas na década de 30, também refletiu este pensamento, tendo levado à incorporação de Goiânia na década de 30, e discurso recorrente da revista “Brasília“, que documentou a construção da nova capital.
Embora estes argumentos reflitam as realidades das suas épocas, tanto do estado das coisas como do conhecimento técnico disponível, hoje estariam ultrapassados. Hoje se entende que mercados de trabalho criados através de aglomerações de pessoas — cidades — possuem ganhos de escala: se dispersássemos os mais de 200 milhões de brasileiros no território, teríamos uma sociedade mais pobre, ineficiente e improdutiva. Associações de todo tipo, de governos a empresas, de clubes de futebol a bandas de rock, seriam inviáveis ou impossíveis sem cidades, dada a dificuldade de encontrar e juntar as pessoas certas para um determinado objetivo. Cidades se desenvolvem de forma relativamente espontânea por este motivo: mesmo em países como a China, que tenta restringir a migração interna através do sistema hukou, movimentos migratórios ocorrem entre uma cidade e outra de forma não planejada, em uma espécie de concorrência por moradores. Além disso, ao dispersar a população no território, o custo de implementação de qualquer sistema, seja ele de infraestrutura ou de serviços públicos, também encarece.
Isto não significa que todo investimento público em cidades menores é inadequado, mas que não há motivos econômicos para subsidiar o desenvolvimento de algumas geografias de forma desproporcional ao resto do país. Políticas de interiorização, na realidade, ajudam a manter cidadãos longe dos principais centros urbanos que, pela sua natureza intrínseca, potencializam a produtividade humana dado seu poder de nos conectarmos como sociedade. Recentemente, em evento no Insper em São Paulo, ao discutir sobre “place based aid vs. people based aid”, ou seja, a comparação entre as políticas públicas para ajudar lugares e as políticas para ajudar pessoas, o economista Edward Glaeser comenta que “ao jogar dinheiro em locais [economicamente improdutivos], você está basicamente subornando as pessoas a morarem em lugares menos produtivos e frequentemente piores em providenciais de serviços sociais básicos”.
Este seria o custo indireto da construção de Brasília: a perda da eficiência urbana, transferindo artificialmente milhares de pessoas de cidades que elas tinham escolhido morar para uma cidade que, por decreto, agora iria não apenas existir, mas se tornaria a capital do país. Somado a isso, é preciso incorporar o custo da transferência de setores governamentais e, ainda, o custo logístico agora recorrente para abastecer uma cidade isolada, de combustível a papel higiênico. Custos talvez dispersos e difíceis de contabilizar, mas enormes.
Uma obra faraônica financiada pelo povo
O custo direto da construção de Brasília, no entanto, das amplas rodovias às monumentais construções, foi estimado em U$83 bilhões em valores atuais. Para se ter uma ideia de grandeza, este valor é equivalente a mil arenas de futebol construídas para a Copa do Mundo, em um país com um PIB mais de cem vezes menor que hoje. Estima-se que o gasto somente para a construção de Brasília teria sido 10% do PIB do Brasil em um determinado ano na época da sua construção. Para comparação, o gasto recomendado pelo Banco Mundial para investimento sustentável em toda infraestrutura do país é de 4,5% do PIB.
O governo brasileiro da época (ou talvez qualquer outro governo) não tinha os recursos disponíveis para um projeto estrondoso como o de Brasília. Assim, a estratégia adotada foi a da inflação: emitir mais moeda, desvalorizando-a como um todo. Na época, a repercussão de uma inflação acelerada ainda não tinha sido amplamente estudada no campo da economia. A consequência foi a rápida desvalorização da moeda e, com isso, o poder de compra da população, afetando principalmente a população mais pobre. A escala de gastos com Brasília levou a um dos maiores níveis de inflação até então, sendo uma das principais causas da instabilidade econômica do governo de João Goulart, que sucedeu JK. Nesta época, os desabastecimentos eram frequentes, um prelúdio ao período da hiperinflação dos anos 80 após a ditadura militar, que não aprendeu com o passado e replicou o impulso de expansão monetária como forma de financiamento de grandes projetos. Não é exagero dizer que tal instabilidade econômica provocado pela inflação para a construção de Brasília tenha contribuído para o crescimento da oposição que levou ao golpe militar de 64.
Validação do urbanismo modernista
Um dos grandes marcos do urbanismo modernista foi a Carta de Atenas, publicada em 1933 pelo arquiteto suíço Le Corbusier. No documento, se defendia os princípios do zoneamento de atividades, de grandes blocos edificados afastados e ensolarados, cruzados por grandes vias — todos eles aplicados fidedignamente em Brasília. No final da década de 30, o modernismo já aterrissava no Brasil através da arquitetura, com edifícios como o Esther em São Paulo e o Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro, hoje conhecido como Edifício Gustavo Capanema. O Brasil, ainda visto como um país novo e anterior ao seu período acelerado de industrialização, era campo fértil para teste de novas ideias. No entanto, cidades seguiram se desenvolvendo incorporando a arquitetura modernista ao tecido urbano tradicional. No Brasil, foi justamente entre as décadas de 30 e 60 o desenvolvimento dos principais ícones arquitetônicos modernistas e a era das cidades brasileiras “nas alturas”, onde metrópoles respondiam à demanda com edificações maiores e, ao mesmo tempo, produzindo ampla diversidade e vida urbana. É a época da verticalização de Copacabana e da Bossa Nova, dos anos dourados das regiões centrais hoje históricas das cidades brasileiras.
Após Brasília, com Plano Piloto de 1957 e inauguração em 1960, isso mudou: não apenas a arquitetura era incorporada às cidades, mas os princípios urbanistas modernistas implementados em Brasília começaram a ecoar no planejamento urbano no resto do país. Em 1959, em Porto Alegre, são criados o Plano Diretor inspirado nas mesmas diretrizes modernistas e, em 1962, o projeto para o Centro Administrativo, peça central da “Brasília em miniatura” portoalegrense. O Plano de Expansão da Cidade de São Luís, também baseado no modernismo, data de 1960. São Paulo — que a partir de 1957 estabelece normas de zoneamento para toda a cidade — incorpora em 1972 estas normas no seu primeiro Plano Diretor, assim como os recuos obrigatórios nas construções. No final dos anos 50 também iniciava o Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro e, no final dos anos 70, o Aterro da Baía Sul em Florianópolis, pequenas versões de masterplansmodernistas inspirados em Brasília. Em 1969, Lúcio Costa, urbanista responsável pelo Plano Piloto de Brasília, é chamado para um novo Plano Piloto, desta vez em Jacarepaguá, que conhecemos hoje como a Barra da Tijuca. É inegável que o pensamento modernista da época já era consolidado mesmo anterior à construção Brasília, visto que o segundo colocado no concurso para a nova cidade tinha projeto de Rino Levi com conceito sob diretrizes modernistas semelhantes. No entanto, Brasília foi não apenas o primeiro mas o mais abrangente experimento de aplicação das regras modernistas na história da humanidade, fato que certamente ajudou a viabilizar a implementação de planos de inspiração semelhante no resto do país.
A medida que os planos foram implementados pelo país, já algumas décadas após a Carta de Atenas, Jane Jacobs publicaria o principal contraponto até então aos princípios modernistas, o “Morte e Vida das Grandes Cidades”, em 1961. O livro denunciou os erros fatais do planejamento modernista, que ocorria também nos Estados Unidos e no Canadá, realidades que ela utilizou como base para suas observações críticas. Hoje, ironica e infelizmente, grande parte do esforço do planejamento urbano pelo mundo é para desfazer erros cometidos no passado: urbanistas advogam pelo uso misto ao invés do zoneamento de atividades, da fachada ativa ao invés dos pilotis livres, das fachadas contínuas ao invés dos recuos que isolam os edifícios nos terrenos. O carro não mais é o protagonista do sistema de transporte, como defendia Le Corbusier, que idealizou um “edifício-freeway” cortando a Zona Sul do Rio de Janeiro. Hoje se busca uma vasta gama de modos de mobilidade, que vê o pedestre como originador de todas as viagens. A cidade modernista ficou no passado.
Brasília completa hoje 59 anos, uma metrópole que abriga milhões de brasileiros e que cada vez mais diversifica a sua economia, embora ainda muito centrada na atividade governamental. A região do seu Plano Piloto, embora hoje oposta aos princípios urbanísticos contemporâneos, foi a primeira e única cidade moderna a ser considerada patrimônio histórico da humanidade pela UNESCO. Além dos próprios brasilienses, muitos brasileiros têm orgulho do símbolo nacional e, inequivocamente, Brasília cumpriu seu papel de ajudar o desenvolvimento do interior do país. No entanto, junto à celebração de uma história que não pode ser reescrita, refletimos sobre a sua fundação: se o Rio de Janeiro ainda fosse capital brasileira e a região de Brasília solo árido e pouco habitado, provavelmente não tomaríamos a mesma decisão de construí-la.
Via Caos Planejado.