Depois de cursar engenharia civil na Escola de Minas de Ouro Preto, Carlos Frederico Ferreira, de volta ao Rio de Janeiro, sua cidade natal, ingressou na Escola Nacional de Belas Artes, graduando-se em arquitetura em 1935. Em 1939 foi contratado pelo IAPI como engenheiro arquiteto e logo se estabeleceu no cargo de chefe do Setor de Engenharia do Instituto. Em 1943, vendo realizada parte do primeiro grande núcleo habitacional, o Conjunto Residencial Operário em Realengo, pôde iniciar seu trabalho de estender o modelo para outras localidades. Os projetos de Vila Guiomar em Santo André e Piratininga em Osasco, bem como o edifício de apartamentos e Sede da Delegacia do IAPI em Recife, todos de sua autoria mostram como, por meio do cargo que assumiu, ele quis direcionar a linha de empreendimentos que o Instituto deveria seguir.
A legitimidade do saber técnico deve ser considerada na análise do papel dos engenheiros e arquitetos, profissionais que estiveram ligados à produção pública de moradia desencadeada a partir do Estado Novo. Carlos Frederico Ferreira foi um dos muitos contratados, num processo de modernização do serviço público e de inserção de funcionários que pudessem desenvolver postos específicos para as quais deveriam estar devidamente graduados.
O Conjunto Vila Guiomar localizado em Santo André, deve ser entendido nesse contexto de organização da administração pública no Brasil. Também é importante destacar que o empreendimento foi iniciado num momento de expansão metropolitana e de nova dinâmica no processo de industrialização da Metrópole Paulistana. A cidade de São Paulo, até a década de 1930, tinha sua maior concentração de indústrias e de bairros operários à leste, ao longo da Estrada de Ferro Central do Brasil, sobretudo nos bairros do Brás e da Penha. As décadas seguintes seriam marcadas pela expansão na direção sudeste, ao longo da ferrovia, exatamente na direção de Santo André, que se tornaria uma das cidades mais dinâmicas no processo de industrialização e de metropolização entre as décadas de 1940 e 1970.
A localização desse conjunto, portanto, era parte da estratégia do Governo Getulista de dinamizar a indústria, oferecendo habitação aos operários associados ao IAPI, próximos aos postos de trabalho.
O empreendimento está entre as realizações do IAPI que mais representa a relação entre diferentes concepções de arquitetura e de urbanismo, presentes na formação dos profissionais do Instituto. A gleba comprada pelo IAPI para a implantação das habitações já tinha algumas ruas abertas, assim como a situação encontrada pelo arquiteto Carlos Frederico Ferreira no subúrbio de Realengo, no Rio de Janeiro, onde o Instituto havia iniciado sua primeira grande empreitada habitacional em 1939. Mas, ao contrário de Realengo, que seguia um traçado mais ortogonal, no caso de Vila Guiomar, a parte do arruamento preexistente, com traçado sinuoso, de autoria do engenheiro civil Américo Carvalho Ramos (PESSOLATO, 2007:108), foi incorporada de forma contínua pelo desenho de Ferreira e potencializou a implantação das casas e dos edifícios. As qualidades paisagísticas e ambientais do projeto também se valeram da singularidade do local que, antes de ser adquirido pelo Instituto, chegou a ser declarado como “estância climatérica” (estância climática) (PEREIRA citado por PESSOLATO, 2007: 101). O desenho urbano resultante é de evidente inspiração no ideário “cidade jardim”, em que as ruas curvas se amoldam harmonicamente à topografia e respeitam o espaço da vegetação farta. Nesse plano acomodaram-se casas e edifícios de habitação coletiva sobre pilotis.
Nesse projeto, combinaram-se, de maneira exemplar, elementos formais da arquitetura tradicional e elementos que já caracterizavam um vocabulário moderno. As casas dividem-se em dois modelos. O primeiro, de casas geminadas, com dois dormitórios, sala, banheiro e cozinha, varanda saliente e telhado de duas águas, repete o tipo reproduzido na maioria dos conjuntos do IAPI construídos naquele momento, a partir de modelo que havia sido concebido inicialmente para o Conjunto de Realengo. O segundo, de três dormitórios, foi um modelo único, não reproduzido em outros conjuntos, no qual a visão da rua ressalta a pureza volumétrica devido à cobertura com telhado de única água, que pende para o quintal. As casas foram construídas com alvenaria convencional de tijolos, não sendo instalada em Santo André a usina de blocos de concreto que foi a grande inovação técnica do Realengo. Entretanto, a racionalidade está sempre presente no desenho sóbrio que dispensa qualquer detalhe ou ornamentação, nas plantas reduzidas e de fácil reprodutibilidade e na economia gerada pela “meia-parede” e pelo telhado comum em duas águas das casas geminadas.
Dois tipos de blocos de habitação coletiva revelam que a experimentação de tipos habitacionais era uma prática no escritório de projetos do IAPI. Os edifícios construídos na primeira etapa de implantação do conjunto são similares a um dos tipos construídos em Realengo, aplicando-se a diretriz depois corroborada pelo Instituto de que os projetos deveriam ser padronizados tanto quanto possível, desde que se respeitassem as condições locais de implantação. Esses edifícios, conhecidos entre os moradores de Vila Guiomar como “prédios velhos” (PESSOLATO, 2007:111), apresentam características austeras, com varandas longilíneas de acesso aos apartamentos em uma das fachadas, enquanto a outra fachada reta é demarcada apenas pelas janelas de esquadria e venezianas de madeira, cujo desenho tradicional repete o modelo padronizado pelo IAPI para muitos projetos. A volumetria purista é quebrada pelo telhado de quatro águas. Os outros edifícios, que ficaram conhecidos como “prédios novos”, apresentam vários elementos que aproximam a arquitetura de Carlos Frederico Ferreira de seus contemporâneos da ENBA: estrutura independente recuada da fachada, com amplas janelas envidraçadas, varandas incorporadas ao volume do edifício, panos de cobogós funcionando como anteparos às lavanderias coletivas nos térreos e os telhados de única água.
Apesar de os dois tipos de edifícios serem elevados sobre pilotis e utilizarem o concreto armado para a estrutura independente, no caso dos “prédios novos”, a solução dá maior aspecto de leveza ressaltando as potencialidades plásticas do sistema técnico-construtivo.
O Grupo Escolar projetado para o Conjunto apresenta as mesmas características arquitetônicas presentes em outros edifícios de autoria de Ferreira. Também elevado do solo, o edifício compõe-se de dois blocos de salas de aula articulados entre si por uma marquise que também leva à quadra de esportes coberta. Nos dois blocos, há rampas de acesso para as salas de aula com entradas no decorrer de um grande corredor. A fachada envidraçada permite a claridade e as aberturas na parte superior das paredes proporcionam ventilação cruzada.
A maior inovação, neste caso, ficou por conta da impecável estrutura lamelar de madeira da cobertura da quadra de esportes no Grupo Escolar. É muito provável que esta solução tenha contado com a participação dos engenheiros Francisco de Paula Dias de Andrade e de Vicente Campos de Paes Barreto, que eram os funcionários do IAPI na Delegacia de São Paulo.
Ainda que se atribua a autoria do projeto de Vila Guiomar ao arquiteto Carlos Frederico Ferreira, é importante destacar que o grupo da Divisão de Engenharia do Instituto levou a termo um processo coletivo de projeto de tipos habitacionais que envolviam diretamente a atuação das equipes nos canteiros de obras, onde podiam aplicar diretamente os conceitos de habitação debatidos no cenário nacional e internacional. A capacidade técnica e a inserção política dos profissionais envolvidos possibilitou a reunião de projeto e processo de produção, a partir de suas formações acadêmicas e de seu trânsito entre os espaços de decisão. Foi essa conjunção de fatores que permitiu a pesquisa tipológica, que está evidenciada no caso de Vila Guiomar, mas que marcou fortemente a primeira grande produção de habitação pública no país e que pode ser considerado o maior campo experimental da arquitetura e do urbanismo no período que antecedeu Brasília.
Data do projeto: 1940
Data da conclusão: 1953
Arquiteto: Carlos Frederico Ferreira
Área construída: 121.706,26 m²
Texto: Nilce Aravecchia Botas | FAUUSP. Coordenadora do grupo de pesquisa “Cultura, Arquitetura e Cidade”.
Pesquisadores responsáveis: Prof. Leandro Medrano | FAUUSP, Prof. Luiz Recaman | FAUUSP
Pesquisadores: Cássia Bartsch Nagle, Katrin Rappl
Bolsista responsável por este número: Larissa Cristina da Silva
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Os Cadernos de Habitação Coletiva decorrem de um acordo de cooperação entre pesquisadores da FAUUSP com ETSAM-UPM, que resultou na elaboração de uma versão brasileira dos "Cuadernos de Viviendas", originalmente desenvolvido pelo . Esse acordo visa a sistematização de informações sobre as habitações coletivas, que ficarão disponíveis para pesquisadores, órgãos públicos, profissionais e interessados.