O projeto Granito, de Anna Saint Pierre, busca em estruturas demolidas os ingredientes para novos materiais arquitetônicos.
Rápidas mudanças urbanas acontecem sem muitos nem perceberem. Partes inteiras da história de uma cidade desaparecem da noite para o dia: o que antes era uma parede de pedra lavrada é agora vidro e metal polido. O canteiro de obras é sempre, primeiro, um local de demolição.
Este é o raciocínio que guia Granito, um projeto da jovem arquiteta francesa e pesquisadora de doutorado Anna Saint Pierre. Desenvolvido em resposta a um complexo de escritórios do final do século XX em Paris que passaria por um grande retrofit, envolvendo sua demolição, o trabalho se desdobra de um método de preservação de material que Saint Pierre chama de "reciclagem in situ". Sua proposta defende que a coleta individual dos painéis de granito da fachada cinzenta e sombria do edifício poderia formar a base de uma economia circular. “Não mais na moda”, essa pedra melancólica — todas as 182 toneladas — seria removida e pulverizada, para então ser incorporada no piso da cobertura.
Inaugurado em 1997, Le Parissy, como o complexo de escritórios foi chamado, serviu por duas décadas como sede da empresa de telecomunicações Télédiffusion de France. Com uma pequena torre pan-óptica ancorando um átrio semicircular em vidro, o complexo foi “projetado para ser futurista”, diz Éric de Thoisy, chefe de pesquisa da SCAU, a firma de arquitetura por trás do projeto original. Em um raro caso de continuidade, a SCAU foi contratada pelo novo proprietário em 2018 para converter o local em um centro de coworking. O projeto de Saint Pierre é um componente pequeno mas atraente da proposta da empresa, que ainda está sendo finalizada. Nas renderizações o piso do átrio é pavimentado com seu “granito” (granito mais terrazzo). Visível da rua, “será uma quinta fachada”, diz ela.
O pensamento por trás de Granito tem suas origens fora da SCAU, quando Saint Pierre trabalhou meio período num programa de estudo e trabalho aberto às disciplinas STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática) na França. Ela passou a maior parte de seus dias na École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs (Ensad) em Paris, pesquisando a preservação de materiais arquitetônicos e o peso cultural que lhes é atribuído.
Em conversas, muitas vezes ela invoca a palavra de ordem “restauração”, que tem uma ressonância maior na França, cujo patrimônio arquitetônico tem sido submetido a ciclos de revoluções e guerras, mais do que na América do Norte. A prática de restauração na Europa Ocidental não pode ser separada de Eugène Viollet-le-Duc, o arquiteto do século XIX responsável por elaborar a imagem indelével que temos da Notre-Dame (mais notavelmente, ele acrescentou uma torre que durou 150 anos antes de sucumbir ao terrível incêndio de abril). As intervenções de Viollet-le-Duc na Île de la Cité eram de natureza romântica e intencionalmente revisionistas, mas renderam uma imagem da história que foram mais “vivas” que a própria história, como respostas globais ao inferno revelado. Isso reflete o incômodo constrangimento que os esforços restaurativos, ou preservacionistas, frequentemente encontram — escolher entre o que salvar e o que reinterpretar para as novas gerações.
No entanto, no geral, o atual regime de preservação se aproxima de uma falsa autenticidade, congelando a história em um momento arbitrário e idealizado no tempo. Congela e asfixia, enquanto Saint Pierre propõe a particalizaçãoe a transformação. Preservação, para ela, não é uma prática pictórica, mas uma maneira de desvendar o potencial narrativo de um lugar.
Ciente de que a demolição descobre, mas não necessariamente revela, Saint Pierre encontra significado nos escombros. "A matéria de um edifício", ela escreve em um artigo acadêmico a ser publicado em breve, "reflete sua longa cadeia de fabricação, seus sucessivos episódios de transformação de sua origem geológica".
Esse é um bom registro do tempo, sendo que as duas décadas que separam os dois projetos Le Parissy parecem dizer pouco. "É muito intenso refazer nosso próprio edifício tão rapidamente", diz de Thoisy. “Mas também é interessante porque remete a como as coisas se movem e como as gerações trabalham umas com as outras. A fachada foi escolhida por Luc [Delamain, líder do projeto e sócio da SCAU], e agora Anna quer entrar, dividir e derrubar.”
Ideias sobre as maneiras como construímos também mudaram. Reconhecendo a quantidade de carbono pela qual a indústria da construção é responsável, Saint Pierre identifica a necessidade de criar novos materiais de construção híbridos. Esse imperativo levou-a a formular uma compreensão atomística dos componentes arquitetônicos. Em seus protótipos, lajes de pedra são esmagadas até virarem pedras miúdas, depois transformadas em pó, compactadas em terrazzo ou adicionadas em paredes de gabiões (este último é uma ideia separada que ela está explorando para outro projeto da SCAU).
Mais do que qualquer outra coisa, é a ênfase persistente de Saint Pierre no canteiro de obras que distingue seu projeto do upcycling, um reaproveitamento ético de resíduos em novos objetos, mas que raramente aponta para além das questões de consumo. Em Le Parissy, ela compara seu trabalho com a extração de granito em uma “pedreira aberta”, com toda a atividade coordenada de operários e maquinário que tal local de trabalho exige.Como sua matéria-prima é extraída, processada e, em seguida, reincorporada in situ, forma-se um ciclo econômico e ambiental, substituindo as “temporalidades mais curtas” que a obsolescência planejada nos habituou.
Mas tão central para Granito é o loop fenomenológico.A memória é inerente não apenas às fachadas dos edifícios, sugere Saint Pierre, mas também aos seus materiais essenciais e até à composição desses materiais. Em Paris, “uma cidade realmente carregada de materiais muito antigos” como o calcário luteciano, seu trabalho encontra um playground ideal.A SCAU está iniciando o trabalho de renovação no Hôtel-Dieu de Paris, o reputado hospital municipal a poucos passos de Notre-Dame. Os espaços internos são, sem surpresa, uma bagunça, diz Thoisy, mas ele tem certeza de que sua colega conseguirá arrancar algum passado utilizável do local.Para Saint Pierre, o hospital oferecerá a próxima oportunidade “de encontrar uma história sobre a geologia e a geografia de um lugar. Quando você anda entre os materiais em um canteiro de obras, é como arqueologia.”