Reconstruindo a Nigéria: arquitetura como ferramenta de transformação cultural

Este artigo foi originalmente publicado no Common Edge.

Ao longo da última década, a Nigéria viveu sobre o espectro sombrio e a constante ameaça do grupo terrorista Boko Haram. De Maiduguri a Abuja, o conflito dilacerou o país, matando centenas de milhares de pessoas, destruindo milhões de casas e causando consideráveis impactos à já precária infraestrutura pública do país. Felizmente a situação está começando a mudar, isso porque ao longo dos últimos anos, grupos militares nigerianos conseguiram libertar várias das cidades ocupadas, dando início a um amplo trabalho de reconstrução do país. Entretanto, os efeitos da guerra deixaram uma marca indelével que transformou para sempre os espaços urbanos destas cidades. A Nigéria viu seu país ser completamente destruído, não apenas vidas foram perdidas mas também os espaços públicos e a infraestrutura básica, forçando a população a reconstruir o país do zero.

No auge do conflitos, a cidade de Yola, no nordeste da Nigéria, ofereceu refúgio a muitos moradores das cidades vizinhas mais problemáticas como Madagali, Michika, Mubi, Hong e outras. Em determinado momento, em Yola haviam tantos refugiados quanto o número original de habitantes da cidade antes do início do conflito, levando a cidade a uma situação insustentável. Isso que Yola não era necessariamente uma cidade segura: a cidade sofreu uma série de atentados, com recorrentes explosões causadas por homens-bomba resultando na morte de centenas de pessoas. A devastação causada pelo conflito deixou marcas profundas na economia local, negando aos trabalhadores os seus direitos mais básicos e a oportunidade de ter uma vida minimamente decente.

Já faz um ano que eu fui contratado por uma iniciativa financiada pelo governo local e dirigida pelo vice-presidente nigeriano Yemi Osinbajo para projetar e construir um centro de inovação social em Yola. A ideia era converter a estrutura de um edifício residencial existente em um espaço coletivo de trabalho, dedicado a servir como incubadora de iniciativas inovadoras que procurassem desenvolver soluções práticas para os mais graves problemas sociais da região. Mas este não era um edifício comum: uma imensa estrutura pós-moderna-construtivista implantada em um terreno de mais de 40 mil metros quadrados com vistas para o rio Yola. Batizado de Legom Villa, este edifício foi projetado e construído por um grupo de arquitetos europeus em meados da década de 1980, encomendado por um rico magnata. Em seus dias de glória, e as custas de um país devastado pela pobreza e pela guerra, o edifício servia como um salão de festas para a aristocracia local, com todos os luxos que se pode imaginar, incluindo piscinas, quadras de tênis e gazebos. Os acabamentos interiores foram feitos com o mais fino mármore trazido de diversos pontos da Europa especialmente para este projeto. Entretanto, durante a última década, a Villa Legom passou por seus piores momentos e a estrutura entrou em declínio, passando a abrigar os mais diversos programas - para mais recentemente ser transformado em um hotel de quinta categoria, um local onde personagens decadentes se encontravam para relembrar os bons tempos já tão distantes. Abandonado por anos e anos, o edifício se finalmente se transformou em uma ruína. 

A former luxury villa in Yola, Nigeria, has been transformed into a social innovation hub. Image © Mathias Agbo, Jr. F

Naturalmente, como arquitetos que somos e conscientes dos problemas sociais da cidade na época, decidimos trabalhar apenas com trabalhadores e artesãos locais para reconstruir este edifício de uma nova forma, feito pelo povo e para o povo de Yola. Obviamente encontramos uma série de dificuldades, uma vez que a mão de obra local não possuía o mesmo conjunto de habilidades que encontramos nos trabalhadores da cidade de Abuja por exemplo, e aqui não tínhamos acesso a certos tipos de materiais com os quais estávamos habituados a trabalhar. Como resultado disso, tarefas relativamente simples, como instalar um forro falso de gesso, levavam muito mais tempo para serem realizadas. Em alguns casos, alteramos completamente nossos projetos para melhor adaptá-los às capacidades técnicas dos trabalhadores de Yola. E quando nosso cronograma permitia, aproveitávamos para treinar nossos trabalhadores, promovendo a qualificação da mão de obra local. Também fizemos questão de remunerar os trabalhadores locais com o valor de mercado de um trabalhador de Abuja - muito mais que normalmente se paga na cidade de Yola.

Ao final do projeto, nossos investidores haviam injetado pelo menos US$ 120.000 na economia local. Isso pode não significar muito para uma cidade como Abuja por exemplo, mas para a atual situação financeira de Yola resultou em uma significativa melhora da qualidade de vida da população local. Como benefício, os trabalhadores locais adquiriram habilidades valiosas que servirão para tantos outros projetos futuros de reconstrução da cidade. Além disso, muitos dos nossos trabalhadores seguiram colaborando conosco em outros projetos ao redor do país.

Apesar do enorme investimento que vem sendo feito, a maioria dos projetos não tem muito mais a oferecer que novos edifícios, e as comunidades afetadas continuam relegadas às margens de nossa sociedade. Esses projetos tem pouco a contribuir de fato com a realidade social de nosso país, reproduzindo apenas as mesmas condições históricas de miséria e desigualdade.

Ao longo dos últimos dois anos, o governo nigeriano e tantas organizações não governamentais, assim como agências de desenvolvimento e investidores estrangeiros mobilizaram enormes recursos para a reconstrução do país. Apesar de todo este investimento, além de alguns novos edifícios, as comunidades afetadas não têm muitos motivos para sorrir. Isso porque estes projetos não contemplam a inclusão da população local nos processos de projeto e construção, deixando poucos benefícios para o país além de novos edifícios.

Obviamente o principal objetivo é a reconstrução do país, mas um processo de reconstrução pós-conflito tem o potencial de transformar também a vida das pessoas para que as comunidades possam se recuperar mais rapidamente. O nosso projeto não poderá nunca compensar todas as vidas perdidas pelo conflito, mas ele trás esperança e propósito para a vida das pessoas.

Em meio aos conflitos que dividiram o país ao longo das últimas décadas, arquitetos e urbanistas muitas vezes se sentiram impotentes, sem poder ajudar. Somos educados a projetar e construir. Acontece que, na Nigéria dos dias de hoje, nosso papel agora é outro: reconstruir a vida das pessoas. Devemos nos concentrar em ajudá-los a planejar economias locais mais estáveis e o que é mais importante, devemos ouvi-los e ajudá-los a se entender, a se reconciliar e talvez até celebrar as nuances étnicas, religiosas e culturais únicas de nossas comunidades. Através deste esforço, especialmente em cidades pequenas, podemos transformar a vida de muitas pessoas, porque isso significa demonstrar um compromisso muito maior do que apenas construir novos edifícios isolados e outros gestos vazios.

Sobre este autor
Cita: Agbo, Mathias. "Reconstruindo a Nigéria: arquitetura como ferramenta de transformação cultural" [Rebuilding Nigeria: When Architecture Is About Restoring Culture] 08 Set 2019. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/924140/reconstruindo-a-nigeria-arquitetura-como-ferramenta-de-transformacao-cultural> ISSN 0719-8906

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