A produção arquitetônica atual em São Paulo é tão diversa quanto se poderia esperar de uma das cidades mais populosas do mundo. Posto que a arquitetura envolve também o resultado do desordenamento urbano e crescimento populacional — edificações advindas da necessidade das pessoas que, com escassos recursos, constroem elas mesmas suas casas — a discussão com frequência se concentra naquela produção cuja gênese se encontra no esforço projetual.
Dito isso, é possível identificar em São Paulo, talvez mais que em qualquer outro lugar do Brasil, uma prática arquitetônica singular, pautada por algumas ideias que têm origem décadas atrás e cujo debate não raro levanta nomes bem conhecidos. Tendo João Vilanova Artigas como figura mais proeminente, a arquitetura paulista — e sobretudo paulistana — da segunda metade do século passado fincou raízes profundas que nutrem e informam a produção contemporânea.
A influência que transpassa décadas e adentra o século XXI é facilmente identificável, por exemplo, no programa doméstico. As casas de hoje - como vemos na produção de prestigiados escritórios, como SPBR, MMBB, GrupoSP e Brasil Arquitetura, para mencionar apenas alguns - apresentam congruências com a produção dos anos 1960, aspecto especialmente notado em um elemento chave: o pátio, jardim interno ou vazio central.
Em seu livro Residências em São Paulo: 1947-1975, Marlene Milan Acayaba sublinha a importância deste elemento à produção da época ao afirmar que “esses espaços eram um convite eloquente ao sonho”, responsáveis pela “micropaisagem interior” das residências e em torno dos quais as “plantas eram imaginadas”. Os vazios foram responsáveis por estabelecer relações visuais e físicas entre os ambientes da casa que, então “separados apenas pela transparência dos vidros”, quase completamente livres de barreiras, levaram a uma dissolução dos modos preexistentes de convívio e a uma mudança nas relações sociais internas — e, possivelmente, num segundo momento, urbanas.
Este recurso do projeto, entretanto, revela ainda mais. Em diferentes formas, proporções e níveis de abertura, o vazio ou pátio central proporcionou às casas da época a possibilidade de autorreflexão — recolhendo-se do domínio da rua, num gesto de retorno ontológico, a casa voltava-se para si mesma. Este movimento introspectivo mostra, contudo, uma tensão dialética: na medida em que fecha a casa para fora, abre-a para dentro, estabelecendo um ambiente ideal de convívio comunitário e, na visão de Acayaba, um “núcleo ordenador” do espaço doméstico. Em sua complexidade compacta, voltada para dentro de si mesma, a casa da década de 1960 servia, por sua vez, como um modelo ordenador de cidade.
Não são poucos os exemplos de residências que se organizaram em torno desse vazio. Esboçado já na década anterior no projeto da Casa Olga Baeta (1957), de Carlos Cascaldi e João Vilanova Artigas, cujo espaço interno é articulado por uma área de pé-direito duplo na sala, o vazio central aparece com maior potência em outras duas obras dos mesmos autores: a Casa Elza Berquó (1965-68) e seu jardim interno e, ainda mais, na Casa José Bittencourt (1960-62), cujo pátio organiza a distribuição de todos os ambientes.
Outros arquitetos também ofereceram respostas à então necessidade de voltar o ambiente doméstico sobre si mesmo. Luís R. C. Franco, Rino Levi e Roberto C. César anteciparam com nitidez esse aspecto da arquitetura da década seguinte com sua Residência Castor Delgado Perez (1958-59) organizada em torno de dois amplos jardins internos de proporções retangulares. De modo similar, Jon Maitrejean levou ao limite a ideia de pátio interno em sua residência própria (1969-72), onde o espaço doméstico incorpora o vazio ajardinado e iluminado pelo sol. Em menor escala, mas ainda lidando com a mesma questão, a Residência Antônio Cunha Lima (1958-63) de Joaquim Guedes e a Residência Juarez Brandão Lopes (1968-69) de Flávio Império e Rodrigo Léfèvre exploram o vazio central sob a forma de espaços de pé-direito duplo que oferecem possibilidades de articulação visual e física no interior das casas.
Projetados e articulados de variados modos nos anos 1960, os pátios, jardins e vazios centrais se mantêm heterogêneos na produção de hoje. Na Casa em Ribeirão Preto (2000) de Angelo Bucci, Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga, por exemplo, o vazio central é parcialmente aberto e resulta mais de um movimento de dobra da casa sobre si mesma do que uma operação de subtração no volume construído. Na Casa 239 (2012) de Cristiane Muniz, Fábio Valentim, Fernanda Barbara e Fernando Viégas, por sua vez, parece resultar justamente de uma subtração na massa construída, embora o resultado final sugira o mesmo gesto de dobra ou retorno percebido na anterior. Em menor escala e à semelhança das casas de Guedes, Império e Léfèvre, a Casa do Morro da Querosene (2005), de Alvaro Puntoni, e a Casa Juranda (2008), de Anderson Freitas e Juliana Antunes, lidam com o vazio central de maneira mais modesta, explorando-o sob a forma de espaços de pé-direito elevado em torno dos quais os respectivos programas domésticos se articulam.
Mais de quatro décadas afastam estes dois momentos da produção arquitetônica paulista, no entanto, os “espaços de convite ao sonho” seguem sendo encontrados. Sem, é verdade, o componente ideológico presente nas casas do passado. Distantes do “sonho” político entranhado nas residências paulistas dos anos 60, que priorizavam um projeto social em detrimento de sua forma e caráter simbólico, estas casas contemporâneas parecem, entretanto, guardar algumas semelhanças com aquela produção, notadamente, em relação a aspectos plásticos e compositivos. Os sonhos já não são os mesmos, porém, o espaço do devaneio conserva-se enquanto desígnio.
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Este artigo é uma adaptação do texto curatorial que acompanha a exposição Casas Paulistas 2000|2017, em exibição na Escola da Cidade entre 4 de setembro e 11 de novembro de 2019. A mostra tem curadoria de Romullo Baratto, concepção de Ruben Otero, imagens produzidas por Nichollas Rottmann e projeto gráfico da Três Design.