A representação gráfica na arquitetura, independente da plataforma, seja ela planta, corte, isométrica, perspectiva etc., é simultaneamente produto e procedimento. Produto enquanto resultado final referente ao objeto representado, articulando escala, informação e suporte. Procedimento enquanto processo de definição do que e como representar, de dissecação de informações e tradução, entendida não só como produto gráfico mas como processo de análise, seleção e tradução de uma manifestação para a outra, pensamento objetivo através do qual novas verdades a respeito do objeto aumentado são apresentados. Para que este procedimento e produto se façam completos precisam que suas informações sejam apreendidas pelo olhar do próximo. Assim, conformam-se padrões e códigos gráficos que normatizam o entendimento e usualmente dizem respeito à lógica construtiva do edifício ou da cidade, seja ele prévio ou posterior. Este produto gráfico nada mais é do que uma abstração da realidade, a tradução ortogonal irreal daquilo que interessa sistematizar.
Não existe uma leitura absoluta e total da realidade, seja ela gráfica, escrita ou falada. Mesmo a foto, que a princípio parece ser a reprodução da realidade mais fidedigna, tem por trás da câmera o olhar do fotógrafo, que filtra a cena e enquadra aquilo que lhe interessa. Ou um desenho isométrico de uma situação, que não passa de uma reprodução impossível de mundo e o enquadra em três eixos ortogonais, ou o ponto de fuga da perspectiva, que nada mais é do que um mecanismo gráfico que simula uma situação real inexistente.
A dualidade entre a infinitude do real e a síntese intrínseca da representação, principalmente quando se trata de arquitetura, gera o questionamento de quais as possibilidades de potencialização da ferramenta de representação bidimensional para que contemple mais elementos da dita realidade. Qual é o limite da representação? Até que ponto os códigos e padrões são suficientes? Coloca-se em questão o possível limite dos horizontes das ferramentas gráficas padronizadas tal como são utilizadas hoje.
Na produção contemporânea de arquitetura e urbanismo a estrutura, os eixos e a espacialidade não são mais suficientes para representar a totalidade do objeto, outros fatores entram na equação do projeto que ultrapassam o limite do físico construído; novas dinâmicas sociais se colocam como condições essenciais a serem consideradas; a quantificação de relações no espaço se tornou um procedimento complexo. Parâmetros imensuráveis passam a ser considerados como fatores definidores de estratégias projetuais.
Representações gráficas de caráter técnico se colocam como ferramentas fundamentais para a comunicação de intenções do projetar. No entanto, o desenho arquitetônico pode despertar outras questões que não necessariamente têm relação direta com aquilo que é construído, mas nem por isso deixam de dizer respeito à arquitetura. Assim, o corte, dentre as representações, evidencia a possibilidade de sobreposições de múltiplas camadas e de diferentes configurações, atribuindo leituras variadas de um mesmo “quê”. O corte é uma forma de representação apropriada por diversas disciplinas e que surge na história como ferramenta de registro, de proposição e de elaboração.
O corte é suporte para informações com relação ao eixo z, a terceira dimensão. Nele se desenvolvem associações de ordem vertical que não constam nas plantas, e portanto, vinculado a escala do homem. “O corte é o lugar onde espaço, forma e material se encontram com a experiência humana” (LEWIS; TSURUMAKI; LEWIS, 2016, p.6, tradução livre nossa).
O procedimento define as formas como a representação é concebida e construída. As definições do que e como representar, do processo de eleição das informações e como elas se organizam a fim de cumprir as funções às quais se predispõem, vale lembrar, não necessariamente precisam estar correlacionadas aos códigos utilizados por convenções pré-estabelecidas.
É importante esclarecer que não existe procedimento padrão. As formas de cumprir as funções a que essas peças gráficas se propõem não passam por processos lineares, não configuram uma determinada metodologia.
No entanto, o corte parte de uma linguagem padronizada com requisitos claros para se fazer legível, que varia de acordo com a função que ele se propõe cumprir. Cabe ainda questionar o valor destas regras de construção, uma vez que estas são estabelecidas pelo próprio conjunto de imagens que nos é conhecido. Até que ponto esta suposta mediação por amostragem, que valida o objeto gráfico como útil e legível, deve autenticá-lo?
A tradição da representação do corte na arquitetura é reproduzida de tal forma que seu entendimento passa a fazer parte do imaginário comum de acordo com a área à qual o produto gráfico corresponde. Um corte de arquitetura une um conjunto de expectativas quanto às informações que devem ser abordadas no desenho, como níveis, vazios, proporções, fechamentos etc. Bem como um corte de botânica que reúne em seu conjunto de linguagem uma série de outros códigos que ainda o identificam como corte, porém de outra origem – da mesma forma os cortes de anatomia, de mecânica, de engenharia. Todos exercem a mesma prática, mas cada área trabalha graficamente seus resultados a fim de dialogar com o próprio conjunto de normas estabelecido e com a finalidade do desenho imaginado.
Há dentro da representação gráfica a noção de que determinadas informações são mostradas através de códigos gráficos padrões que, de fato, auxiliam na sua compreensão imediata por conta de acordos de entendimentos predeterminados, porém, é preciso compreender que não são as únicas formas de tradução de informações específicas. Deve-se refutar a ideia de que determinados produtos gráficos são necessariamente atribuídos a determinadas funções.
Este questionamento provocado pela pluralidade da tradução incita o exercício gráfico de aproximação da relação entre procedimento e produto, tendo como objetivo a experiência de construção de um objeto gráfico com base na coleção de camadas de sobreposição. Busca-se encontrar os limites estabelecidos pelo produto e suas articulações.
Para tanto, foi escolhido um fragmento de cidade em São Paulo. Nele é possível estabelecer de antemão certas expectativas quanto ao corte por uma questão da condição física proveniente do conhecimento prévio, assim já garantindo relações de alturas de níveis, de condição de assentamento do eixo viário e divisões territoriais bem marcadas.
O exercício de trabalho exaustivo e contínuo sobre um só objeto correlacionado a uma condição “real” no universo, isento de comparativos a outras “realidades”, fortalecia o foco discursivo sobre o recurso gráfico, sem entrar no mérito da condição de cidade apresentada, mas sim atentando-se às relações estabelecidas pela ferramenta gráfica.
Desta forma pode-se antecipar que a escolha do recorte não é fundamental para a leitura dos pontos que seguem, mas funcionam como ilustração dos questionamentos levantados.
Para o exercício de construção das camadas de informações que viriam a compor o corte, a sequência de ações é recriada atentando para a ordem de confecção das partes e para o porquê de serem construídas dessa forma.
Importante deixar claro que desde o início do processo o desenho não se atém a uma representação completamente fidedigna da realidade, se faz uso principalmente da suposição, a fim de ilustrar os pontos elencados.
Partimos então da informação bidimensional em planta, selecionando primeiramente a linha de corte onde, referente a uma realidade, o desenho cortará.
Durante a construção da narrativa falou-se de procedimento e produto simultaneamente, como duas partes interdependentes de um mesmo "quê". Essas duas partes juntas configuram o que chamamos aqui neste ensaio visual de objeto gráfico completo, no qual a tradução é materializada em um produto configurado sobre uma plataforma que só é possível de se fazer total uma vez que é passível de interpretação pela viabilização da sua leitura. O próprio processo de produção do objeto gráfico possibilitou colocar em prática as questões que apareceram no decorrer da formulação da peça resultante, incitando novas discussões quanto ao limite da representação gráfica.
Todas as formas de linguagem dependem de códigos para expressar sua intenção uma vez que é ele que assegura a apreensão do expectador. A questão colocada é justamente a construção dos códigos que compõem determinada representação. A intenção principal ao trazer essa discussão é a reflexão sobre a forma que produzimos a informação. A virtude da representação é justamente a sua possibilidade de adquirir infinitas formas, a capacidade de ver um objeto por diversas perspectivas e então multiplicar o significado deste objeto inúmeras vezes. A intenção aqui é expor um questionamento com relação à produção gráfica, provocar a reflexão e desconstruir ideias convencionadas
O produto gráfico é construído pela somatória de camadas a fim de tencionar o alcance da sobreposição das informações, forçando seus limites. O corte produzido sobre o recorte da cidade de São Paulo se utiliza justamente de recursos gráficos condizentes com uma expectativa referente a representações de arquitetura da forma mais usual que conhecemos. O desenho construído corresponde a uma normativa da representação comum às representações de arquitetura de síntese, que normalmente não abarca informações para além do construído, dos elementos físicos. Aqui a questão de limite é trabalhada e exercitada levando à sobreposição das diversas camadas por ordem cronológica, sem uma intenção de leitura predeterminada.
Evidentemente existe uma expectativa quanto à forma que cada informação toma, uma vez que o código a ser utilizado é determinado e o recorte ao qual corresponde é conhecido. No entanto, o corte não tinha um objetivo prévio outro a não ser o próprio estudo da sua metodologia. O resultado final não procura responder a uma questão sobre aquele lugar, mas sim elucidar uma sequência de construção de informações.
O resultado do exercício gerou um corte extremamente carregado, onde a sobreposição excessiva de linhas começa a impossibilitar a leitura das informações isoladamente. Ainda se identificam informações mais gerais, a diferença entre construção e vazio, as silhuetas, as divisórias, os pavimentos, porém os detalhes e a nitidez das informações começam a se perder no emaranhado de informação sobreposta. Atinge-se um limite em relação ao que os padrões estabelecidos dão conta com relação ao mundo que vivemos e a quantidade de informação que “existe” e a forma que ela é produzida.
O levantamento das catorze camadas de informação que compõe o corte organizadas e sobrepostas cronologicamente juntas resultam na representação de uma realidade. No entanto, estas mesmas camadas reorganizadas de acordo com outras lógicas têm a capacidade de incutir leituras diferentes de uma mesma coisa. Se elencadas de acordo com um interesse específico predeterminado, direcionado a responder questões colocadas de antemão, as mesmas camadas já desenhadas começaram, a partir de uma nova organização das informações, a gerar novas interpretações e pontos de vista de um mesmo objeto. Coloca-se assim, de fato, mais uma vez a pluralidade da tradução de um mesmo"quê" e o corte como ferramenta para viabilizar esta tradução gráfica.
Referência bibliográfica
LEWIS, Paul; TSURUMAKI, Mark; LEWIS, David J. Manual of Section. Nova York: Princeton Architectural Press, 2016.
Artigo escrito a partir do Trabalho de Conclusão de Curso realizado na Escola da Cidade em 2016 orientado pelo prof. Dr. Felipe Noto. Originalmente publicado na Revista Cadernos de Pesquisa #6, publicação da Escola da Cidade dedicada à divulgação de pesquisas de iniciação científica e experimental. Para acessar o arquivo digital da revista: http://www.escoladacidade.org/wp/wp-content/uploads/181000_RC_n6_Final-Site.pdf