A 12ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo ocupou dois dos edifícios de uso público mais emblemáticos da capital paulistana. Uma grande exposição com trabalhos oriundos de diversas partes do mundo permanece montada até 8 de dezembro no Centro Cultural São Paulo - CCSP, ao passo o Sesc 24 de Maio foi ocupado por uma dezena de instalações e dispositivos concebidos especificamente para o edifício e seus arredores.
Mostramos aqui os 10 dispositivos que transformaram o espaço do Sesc 24 de Maio, criando tensões e estabelecendo narrativas em um dos espaços de uso público mais intenso do centro de São Paulo. As obras se dividem nos três eixos que norteiam a Bienal: Relatos do cotidiano, Materiais do dia a dia, e Manutenções diárias.
Relatos do cotidiano
O que vemos, o que nos olha
Por: Adamo-Faiden (Argentina) e Vão (São Paulo, Brasil); Sebastián Adamo, Marcelo Faiden, Gustavo Delonero, Anna Juni, Enk te Winkel.
A partir do Sesc 24 de Maio, usuários e visitantes têm um ponto de vista atípico sobre São Paulo. A transparência de sua fachada coloca o público em estreita proximidade com as fachadas vizinhas, contrastando seus espaços coletivos intensamente utilizados com a intimidade do dia a dia das pessoas. O que vemos, o que nos olha, a proposta conjunta de Adamo-Faiden e Vão, estabelece uma conexão direta com a coleção de interiores visíveis desde o 11º andar do Sesc 24 de Maio, espreitando um espaço vazio localizado no Edifício Schwery, prédio vizinho projetado na década de 1940 pelo arquiteto francês Jacques Pilon (1905-1962). Através da janela existente do Sesc, olhares são então transportados para esse ambiente, convidados a se tornarem voyeurs de um cotidiano inexistente. Mas o espaço vizinho é preenchido com uma pirâmide de espelhos que refletem os próprios olhares que observam, produzindo uma experiência sinestésica que instiga o espectador a refletir sobre a relação dos indivíduos com os seus pares e o espaço que habitam.
Homo urbanus
Por Bêka & Lemoine (Itália/França); Ila Bêka, Louise Lemoine.
Estabelecendo uma conexão direta com o usuário cotidiano de algumas das mais movimentadas calçadas do centro de São Paulo, Homo urbanus, a videoinstalação proposta pela dupla Bêka & Lemoine para a praça de entrada do Sesc 24 de Maio, consiste na projeção de sete filmes. Cada um desses filmes explora os hábitos cotidianos de populações urbanas em várias culturas, como parte de um projeto de pesquisa a longo prazo desenvolvido até o momento em sete cidades do mundo: Seul, Bogotá, Nápoles, São Petersburgo, Rabat, Kyoto e Tóquio. Representando as cidades em seu presente, na simplicidade da sua resiliência diária, essas cenas da vida real ressoam a dinâmica, o barulho e o ritmo de São Paulo: apesar dos diferentes climas, estações do ano e paisagens urbanas que são capturadas pelas lentes dos arquitetos-cineastas, elas mostram como o cotidiano da cidade se resume à busca de um modo de viver junto. Homo urbanus convida o seu espectador a se identificar como parte de uma espécie animal cujo habitat poderia transcender o muro circundando a caixa-preta de projeção: os filmes poderiam, então, se diluir na realidade do dia a dia.
Casa
Por Concreto Rosa (Rio de Janeiro, Brasil); Geisa Garibaldi, Emmily Leandro, Mabi Santos.
Histórias domésticas, pluralidades, violências e reciprocidade: Concreto Rosa é uma empresa gerida por mulheres que desempenham os mais diversos serviços de manutenção do dia a dia, como conserto de pia, pintura, trabalhos de hidráulica e elétrica, mudanças e reformas residenciais. Além disso, transmitem seu conhecimento e experiência em construção para a capacitação de outras mulheres ou de qualquer pessoa que tiver interesse em seu cotidiano, em sua casa e em suas rotinas. Exibidos em vitrines na área de convivência do Sesc 24 de Maio, objetos cotidianos resgatados de obras da Concreto Rosa dialogam com os usuários. Casa, o projeto da Concreto Rosa, convida o público a refletir sobre como coisas banais podem adquirir importância para quem as detém quando atreladas a determinadas ocasiões ou certos espaços domésticos. Objetos de formas, dimensões e materialidades distintas, oriundos tanto do universo doméstico quanto do universo laboral associados às atividades dessas profissionais da arquitetura e da construção, são apresentados a partir de narrativas proferidas pelas vozes de pessoas que foram atendidas por essas mulheres, e com quem formaram uma rede de relações. Relatos do cotidiano, evocando histórias de violência e paz, riqueza e pobreza, amor e ódio, e alta e baixa tecnologia, mostram como a atenção cuidadosa dada ao reparo ou à reforma da casa pode aliviar traumas de violência, fortalecer redes de apoio e gerar autonomia em comunidades.
Nova República
Por Hélio Menezes (São Paulo, Brasil), Wolff Architects (África do Sul); Hélio Menezes, Heinrich Wolff, Ilze Wolff
Nova República, o projeto conjunto do antropólogo brasileiro Hélio Menezes com os arquitetos do Wolff Architects, escritório baseado na Cidade do Cabo, na África do Sul, considera o entorno imediato do Sesc 24 de Maio como lente de observação de influências reflexas, tratando de forma tanto literal quanto alegórica duas realidades cotidianas correlatas: um vis-à-vis concreto e uma fronteira invisível. Nova República aborda a coexistência entre o Sesc 24 de Maio e o seu vizinho mais ilustre, a Galeria Presidente (1961), projeto dos arquitetos italianos Maria Bardelli e Ermanno Siffredi, endereço de dezenas de salões de beleza especializados em cabelos afro, lojas de disco, roupas africanas e head shops. A Galeria do Reggae, como é popularmente conhecida, é um espaço de sociabilidade, estéticas e culturas negras presente no centro da cidade de São Paulo há quase seis décadas. Embora os edifícios compartilhem a vocação de centros de produção cultural, são vizinhos de natureza, públicos e usos diários bastante distintos que pouco se relacionam. Através de duas intervenções materiais complementares, Nova República se apoia no princípio de capilaridade: a qualidade do que tem a espessura de um fio de cabelo e a tendência que os líquidos apresentam de fluir através de corpos porosos, causada pela tensão superficial. Por um lado, uma figura suspensa sobre a Rua 24 de Maio, atada à altura de áreas de convivência localizada face a face em andares abertos dos dois edifícios (3º andar do Sesc e 2º andar da Galeria do Reggae), forma uma ponte. Como um “corpo” modulável em tamanho agigantado, que flui no espaço animado pelo vento, a figura referencia e reafirma elementos visuais evocando motivos capilares típicos dos salões de beleza afro, estamparias africanas que emulam a moda vestida e vendida na Galeria e ruas adjacentes. Por outro, um salão de beleza tecnicamente funcional e utilizável é montado na praça de entrada do Sesc, como se um ambiente da Galeria do Reggae fosse espelhado ali. A impossibilidade de uso, devido a restrições institucionais, esbarra na presença ativa de numerosos profissionais autônomos - em sua maioria mulheres, negras e imigrantes - que oferecem serviços capilares no passeio público entre os dois edifícios. O projeto convida o transeunte a refletir sobre a presença de corpos e cabelos emulando simetrias e assimetrias em uma espécie de nova república complexa, contraditória, fluída.
Materiais do dia a dia
Apanhador de nuvens
Por Bruther (França); Stéphanie Bru, Alexandre Theriot
Um terço da população mundial não tem acesso a água potável. Essa é a premissa básica de Apanhador de nuvens, o projeto de Bruther, escritório de arquitetura tecno-poético de Paris, que visa capturar e se reapropriar deste recurso comum por meio da reengenharia de tecnologias centenárias. Na cobertura do Sesc 24 de Maio, Apanhador de nuvens forma uma névoa induzida sobre a piscina, produzindo variações de sombra e umidade, e materializando o processo de captação de água como uma experiência visível e coletiva. Apanhador de nuvens é tanto uma solução simples de baixa tecnologia quanto um gesto político singular a serviço do cotidiano, que considera a água não apenas uma necessidade básica, mas também um recurso comum: gratuito e acessível para todos.
DESENHAR IMAGINAR DESENHAR
Por UNIVERSUM CARROUSEL JOURNEY Studio Jan de Vylder (Bélgica); Inge Vinck, Jan de Vylder, Claudia Janz, Max Kesteloot, Leo Lindroos, Elisa Vegué Llorente, Hadi Madwar, Oribe Mio, David Moser, Rolli Rina, Oliviero Vitali, Rocco Vitali
Por baixo das camadas de concreto, tijolo e gesso do edifício, dentro dos seus poços e shafts, há outro edifício. Instalado em um espaço discreto e funcional - as escadas de incêndio - DESENHAR IMAGINAR DESENHAR , o projeto que o Studio Jan De Vylder desenvolveu em colaboração com uma equipe de colegas, e atuais e antigos estudantes de arquitetura, usa uma forma poética e pictórica para desvendar, reinventar e ampliar a subestrutura do Sesc 24 de Maio. Ao criar novas perspectivas para além do puro pragmatismo da construção existente, DESENHAR IMAGINAR DESENHAR transforma o espaço real por meio do desenho - a ferramenta mais cotidiana dos arquitetos - para sugerir outras existências paralelas do edifício. A caixa de escadas de incêndio torna-se uma galeria onde 17 portinholas de inspeção imaginárias idênticas produzem uma ilusão de ótica que dá acesso a outras realidades. O desenho é entendido como um ato que revela um outro todo dia: como as coisas aparecem diferentes de como elas realmente são. Ao chamar a atenção para um espaço repetitivo e banal , o trabalho expande a imaginação dos usuários do Sesc, apresentando-lhes a possibilidade de redesenhar o próprio edifício, desafiando o olhar rotineiro do dia a dia.
"Desenhando a imaginação ou imaginando o desenho. Isto é o que o dispositivo provoca. O que não se vê. Ou o que se pode imaginar. Não exatamente. Mas como uma ideia. A abstração é parte. De modo que no final não é apenas mais sobre o que não pode ser visto ou o que pode ser imaginado, mas também um desenho que pode viver por conta própria. E pode ser eventualmente algo mais. Imaginação como um modo cotidiano de vida. Desenho como um ato diário de imaginação".
Rampante
Por Wellington Cançado e Renata Marquez (Belo Horizonte, Brasil); Wellington Cançado, Renata Marquez, Tande Campos.
Todo dia a temperatura do Planeta Terra aumenta. Rampante, o projeto de Renata Marquez e Wellington Cançado torna a emergência climática visível no Sesc 24 de Maio. Listras coloridas mapeiam as variações de temperatura na cidade de São Paulo nos últimos 119 anos através de uma "fachada têxtil" instalada sobre o pano de vidro contíguo à rampa do Sesc. Seu material: uma pele de “tela fachadeira”, artefato comumente utilizado em obras de edifícios verticais, e que denota, portanto, a manutenção. A rampa, elemento estruturante essencial do edifício, transforma-se em uma linha do tempo ascendente - o piso mais alto representando o período atual - possibilitando uma experiência tectônica do "aquecimento desenfreado" que ocorre por razões antrópicas em escalas globais e locais. Um diagrama gigante da cosmopolítica da arquitetura no tempo do Antropoceno, Rampante faz uma declaração ambiental: quanto mais nos afastamos da t(T)erra, mais quentes as condições, e mais crítica a nossa existência e a dos outros seres do planeta. Ainda como parte do projeto, dados e informações acerca das forças, materiais e fluxos requisitados no projeto e na construção do Sesc 24 de Maio bem como a energia, os fluidos, o trabalho, os insumos e os agentes necessários para mantê-lo vivo são contextualizados e tornados visíveis através de um sistema gráfico aplicado a pontos específicos do edifício. Se comentários sobre a temperatura e as condições climáticas há muito estão no centro de conversas cotidianas, a partir de Rampante, visitantes e transeuntes terão do que falar.
Manutenções diárias
Calçadão
Por Andrés Sandoval (São Paulo, Brasil)
Revestindo o rodapé da esquina do Sesc 24 de Maio com uma superfície espelhada, Calçadão, o projeto sutil de Andrés Sandoval, promove a continuidade da calçada de pedra portuguesa que ainda persiste no entorno imediato para o interior do edifício, como se ele aflorasse de um platô geológico. Calçadão instiga o mero transeunte do passeio público a refletir, naquela esquina, sobre uma investida recente no âmbito das manutenções do dia a dia da cidade. A pedra portuguesa é mais do que uma tecnologia de construção evidenciando um passado colonial, lusitano, repleto de histórias de violência e emancipação: ela é também o índice da cidade de outrora que era domínio dos pedestres, traduzido pelo grafismo horizontal em branco e preto ainda remanescente nas calçadas do centro velho de São Paulo. Estes padrões vêm cedendo espaço ao pavimento de concreto, como um desenho do cotidiano que se esvai gradualmente em virtude de serviços de manutenção realizados, após os quais as pedras portuguesas não são recolocadas. Como uma espécie de nota de rodapé, registrada sucintamente na parte inferior da página de um livro, Calçadão é um comentário sobre a controvérsia da manutenção: mais vale facilitar o reparo da infraestrutura urbana ou priorizar o modo como lidamos com a memória coletiva, como nos lembramos de nossas histórias cotidianas e como discutimos sobre o nosso passado comum? Calçadão se complementa com um passeio no Centro sobre as histórias das calçadas de pedra portuguesa, incluindo uma conversa com artesãos responsáveis pelos seus padrões e manutenção.
Arquitetura como sociedade renderizada
Por Andrés Jaque / Office for Political Innovation (OFFPOLINN) (Espanha/Estados Unidos)
Convidado a intervir na fachada de vidro do Sesc 24 de Maio, Andrés Jaque / Office for Political Innovation (OFFPOLINN) propôs uma videoinstalação intitulada Arquitetura como sociedade renderizada. Como uma investigação sobre a fachada transparente do edifício, Arquitetura como sociedade renderizada explora este elemento imponente em todo o seu engenho e em suas camadas, indagando sobre a obsessão do emprego do vidro em edifícios para, em última análise, desvendar a construção cotidiana de uma sociedade. A videoinstalação reúne micro-narrativas que contam como a fachada foi fabricada e montada, revelando a origem de seus componentes e as trajetórias de seus fornecedores, e examinam sua performance tecnológica e social: como, para quem e por quem é mantida. Para isso, Andrés Jaque e sua equipe realizaram um trabalho de pesquisa, incluindo uma série de entrevistas com um grupo interdisciplinar de interlocutores, que inclui os arquitetos, a equipe de limpeza do edifício e alguns dos maiores especialistas em questões urbanas e ambientais de São Paulo. A videoinstalação convida visitantes e espectadores a refletir sobre como os aspectos mais triviais de uma construção podem revelar mecanismos políticos, econômicos e sociais profundos e desconhecidos.
Água
Por Edelaar Mosayebi Inderbitzin Architekten (Suíça); Elli Mosayebi, Lukas Burkhart
A equipe liderada por Elli Mosayebi aborda o valor da água tanto ecológica quanto esteticamente, apontando para o paradoxo entre a alta poluição ambiental da água no Rio Tietê e o cuidado corporal em São Paulo e no Brasil. Os brasileiros tomam banho em média 12 vezes por semana (2015, Euromonitor), muito acima de outros países da América Latina, como a Colômbia (9 vezes) ou o México (8 vezes). Os 108 minutos que os brasileiros passam no chuveiro é o maior tempo do mundo (estudo Hansgrohe 2014). É notável que estes dois padrões - no que diz respeito à manutenção do corpo e do ambiente - são contraditórios, uma vez que diferem em escala, mas são comparáveis em conteúdo. Água, o projeto que Elli Mosayebi e sua equipe conceberam para um dos banheiros mais utilizados do Sesc 24 de Maio, reúne estas duas escalas, com o objetivo de tornar visível o consumo de água na manutenção diária do corpo, como um processo lidando com um recurso extremamente valioso.
Descrição dos projetos fornecida pela 12ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo. Para saber mais sobre o evento, acompanhe nossa cobertura.