O Show de Truman é um filme de comédia dramática de 1998 estrelada por Jim Carrey como Truman Burbank, a estrela principal - ainda que inconsciente - de um reality show em uma cidade cenográfica vigiada 24 horas por dia. A cidade de Truman, Seahaven, é um gigantesco estúdio de televisão construído para filmar a vida de Truman através de milhares de câmeras escondidas que transmitem a vida do pacato cidadão para bilhões de espectadores ao redor do mundo.
A cidade cenografia de Seahaven é uma cidade litorânea nem muito grande tampouco muito pequena. Desde o primeiro momento, os espectadores (principalmente os não americanos) se deparam com uma artificialidade imperante, uma cidade cinematográfica que se assemelha àquelas de outros tantos filmes gravados nos subúrbios norte-americanos entre os anos oitenta e noventa, incluindo o clássico de Spielberg E.T. (1982), Curtindo a vida adoidado (1986) e Esqueceram de mim (1990). Entretanto, a tranquila cidade de Seahaven não parece ser assim tão diferente para os telespectadores norte-americanos, uma vez que esta paisagem suburbana foi (e ainda é) idealizada por muitos, vistas como a cidade ideal, um território localizado entre as oportunidades da cidade grande e a qualidade da vida no campo.
Essa idealização do subúrbio americano tem um fundo de verdade: a maioria das cenas externas ambientadas em Seahaven foram gravadas, na verdade, em Seaside, Flórida, uma cidade cujo projeto e construção inspiraram o nascimento de um movimento chamado de New Urbanism. Nos Estados Unidos, o Novo Urbanismo foi um movimento utópico e sentimental da década de 1980, baseado na crença de que “a sociabilidade do espaço poderia ser estimulada através de um conjunto específico de elementos arquitetônicos e espaciais”, conforme descrito por Alex Krieger, professor de Projeto Urbano na Universidade de Harvard, em seu livro “City on a Hill: Urban Idealism in America from the Puritans to the Present”, que será lançado em breve pela Harvard University Press.
City on a Hill nos convida a um passeio através da história do urbanismo americano - ou melhor, pela história do ambiente construído dos Estados Unidos, devido ao viés anti-urbano geralmente associado à cultura norte-americana.
Krieger afirma que ideias utópicas ajudaram arquitetos e urbanistas a dar forma às cidades americana do século XX, devido principalmente à necessidade constante e insaciável de experimentar diferentes formas de sociedade, moldadas segundo princípios econômicos, políticos, sociais, religiosos e até ambientais. Segundo o autor, diversas sociedades utópicas foram idealizadas e projetadas, desde os puritanos que buscavam construir uma Nova Jerusalém, a república agrária concebida por Thomas Jefferson, os subúrbios americanos projetados em resposta ao caos das grandes cidades, os paisagistas que queriam trazer a natureza de volta para a cidade, a horizontalidade anti-urbana promovida pelo pensamento fordista até as mega-cidades inteligentes idealizadas por nossos contemporâneos.
Enquanto esmiuça os detalhes deste idealismo, Krueger reconstrói simultaneamente a história do seu país, expondo as questões filosóficas que emergem - desde a sua fundação - da busca dos Estados Unidos em se tornar o país mais poderoso do mundo: o cabo de guerra entre o progresso e a natureza. Essa disputa muitas vezes se expressa através da ideia de 'destino' (segundo a narrativa americana imperialista e colonialista) e em outros momentos de 'ameaça' ( idealizando a natureza como elemento fundamental da qualidade de vida). Não chega a surpreender que os discursos presidenciais americanos, ao anunciar intervenções militares em países estrangeiros, se assemelhem muito à alegação do jornalista John Louis O'Sullivan em 1854 reivindicando “o direito natural e manifesto outorgado pela Providência Divina aos Estados Unidos da América para expandir seus territórios e governar todo o continente que nos foi confiado.”
Por sua vez, Krieger está mais interessado em identificar os contextos nos quais estas utopias surgiram do que em julgar as suas glórias e fracassos. A crítica a um urbanismo extremamente dependente de veículos motorizados, ganha novas nuances quando consideramos que para as cidades americanas do início do século XX, o carro inicialmente era o ideal de limpeza, de uma cidade livre de cavalos e tudo aquilo que eles deixavam para trás; nossa compreensão da própria arquitetura se transforma de forma semelhante quando analisamos diferentes questões em diferentes contextos históricos, como quando Frederick Law Olmsted defendia a volta à natureza como um método de reforma social.
Um dos pontos altos do livro é que os maiores problemas enfrentados pelas nossas cidades hoje em dia, praticamente não mudaram muito ao longo do tempo - desigualdade social, interferência do estado na economia e as consequências ambientais do progresso a qualquer custo. Krueger nos recorda que os românticos americanos da primeira metade do século XIX já estavam preocupados com a apreciação da natureza, rejeitando o materialismo e o utilitarismo quando confrontados com as consequências da revolução industrial. Hoje, as alegorias criadas por Thomas Cole em The Course of Empire (1833-1836), em busca de alertar a sociedade sobre as terríveis conseqüências ambientais do desenvolvimento urbano, parecem mais atuais e relevantes do que jamais foram um dia.
Em uma época em que o futuro parece mais sombrio do que nunca, Alex Krieger nos lembra de como ideias utópicas ajudaram a forjar o urbanismo americano, revelando que nossas principais inquietações nos dias de hoje - não serão combatidas com sonhos - e sim com novas utopias.
O livro de Alex Krueger, City on a Hill: Urban Idealism in America from the Puritans to the Present, será publicado pela Harvard University Press com lançamento previsto para o próximo dia 29 de outubro de 2019.