A segunda era das máquinas, violência baseada em gênero, sul global, cidades em desenvolvimento, infraestrutura precária, influxo, digitalização, sustentabilidade, afro-futurismo? Continuamos ouvindo as palavras da moda repetidas vezes, mas o que tudo isso significa? Como essas noções se cruzam espacialmente em resposta às necessidades do desenvolvimento das cidades? As cidades são como ecossistemas, coletivamente dependentes do ambiente circundante. Quanto maiores e mais complexas elas se tornam, maiores são as pressões e repercussões, a saber: crescimento populacional, expansão urbana e escassez de recursos físicos.
As cidades representam uma especialização das funções humanas que evoluíram de assentamentos para aldeias, aldeias para vilas, vilas para cidades e agora cidades para megacidades. Pode-se dizer que essa tendência exponencial da vida comunitária em larga escala desencorajou a coerência social entre as partes urbanas interessadas, palpável nas crises de governança. O sucesso de uma cidade depende de seus habitantes, de seu governo e da prioridade que ambos dão à manutenção de um ambiente urbano respeitoso. Melhor qualidade de vida e harmonia cívica são definidas pela qualidade da paisagem urbana (Rogers, 1997). Os supostos fundadores do pensamento arquitetônico e urbano - Vitruvius, Leonardo da Vinci, Thomas Jefferson, Ebenezer Howard, Le Corbusier, Frank Lloyd Wright, Buckminster Fuller e outros - já propuseram visões arquitetônicas estáticas das cidades ideais, na esperança de criar utopias.
Com o fracasso registrado de tais tentativas, o planejamento geral contemporâneo deve adotar novas formas de padrões de desenvolvimento cultural, a fim de ser ambiental, social e economicamente sustentável.
Contexto: planejamento urbano no continente africano
Um plano diretor é um plano de ação abrangente que prevê a capacidade física, social e econômica do futuro desenvolvimento de uma cidade (Byron, 2018). Ele fornece um relato detalhado de como uma cidade deve parecer e crescer, no que diz respeito à sua viabilidade e acessibilidade em suas economias, habitação e infraestrutura pública. (Byron 2018). Antes do advento do desenho assistido por computador (também conhecido como CAD), esses sistemas e processos eram conduzidos à mão e por demonstração física. Hoje, desenvolvemos ferramentas tecnológicas, como o Building Information Modeling (BIM), que revolucionou o controle, a precisão e a eficiência do complexo crescimento urbano de desenvolvimento. Infelizmente, o condicionamento histórico do colonialismo ainda está penalizando globalmente o crescimento urbano saudável.
Por exemplo, grandes cidades em países em desenvolvimento, particularmente na África, estão localizadas em alguns dos centros econômicos que mais crescem no mundo. Infelizmente, muitas delas parecem ter planos diretores convencionais, latentes às ideologias urbanas ocidentais que foram impostas pelo planejamento colonial, considerando-as caóticas e inadequadas. As agendas desses planos diretores foram criadas para manter o domínio colonial, isto é, foram projetadas para explorar social e economicamente e segregar as populações colonizadas. Como resultado, os sistemas atuais de governo e economia nas cidades africanas estão desatualizados e mantêm valores desalinhados com o bem vindo desenvolvimento voltado às singularidades do contexto. É essencial que surjam novos quadros de políticas, oferecendo aos cidadãos ferramentas participativas para forjar economias que alavanquem um sistema de valores relevante; um sistema de comunidades e responsabilidade compartilhada.
Estratégia: Inclusão
O objetivo de número 11 do acordo para o Desenvolvimento Sustentável exige cidades “inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis” (Nações Unidas, 2015).
Apesar do amplo reconhecimento e comprometimento em todo o mundo, a construção de cidades inclusivas continua sendo um desafio. Hoje, um terço dos residentes urbanos no mundo em desenvolvimento ainda vive em favelas com serviços inadequados. Além disso, espera-se que a maior parte do crescimento urbano futuro ocorra na Ásia e na África, regiões que abrigam alguns dos países mais pobres do mundo (Banco Mundial, 2019). Se as cidades inclusivas forem efetivamente inclusivas, elas devem se basear em padrões de design que capacitem as pessoas marginalizadas a sair das armadilhas da pobreza, visando melhorar a qualidade de vida. Como Amartya Sen descreve, um desenvolvimento como abordagem de liberdade para o pensamento espacial. Vemos três inclusões principais:
1) Inclusão social: o afro-futurismo como um meio para refletir sobre a identidade e sua pluralidade. Wakanda se torna uma ferramenta sociopolítica de inspiração através da ficção científica.
O afro-futurismo, cunhado em 1993, busca recuperar a identidade negra por meio da arte, cultura e resistência política (Peters, 2018). É uma lente interseccional projetando futuros possíveis mais brilhantes ou realidades alternativas nas quais culturas negras e africanas marginalizadas não se escondem nas sombras do mainstream eurocêntrico. Incorporado ao reino da ficção científica, exalta uma identidade e consciência decididamente africanas. Sendo, portanto, uma ferramenta poderosa para desencadear percepções coletivas de inclusão social. Observa-se Wakanda, a nação de ficção científica da África Oriental conhecida como o país tecnologicamente mais avançado do mundo no filme da Marvel: Pantera Negra (2018) (Manseau, 2018). Pela primeira vez, Wakanda simulou uma representação mainstream de uma nação africana sem pobreza, que marcou um momento extraordinário para os africanos, em todas as disciplinas, em todas as classes. Afinal, filmes afro-futuristas como Pantera Negra alimentam uma espécie de premonição no passado - em um tom assustador e otimista. No caso de Wakanda, o potencial de repensar a forma e as extremidades das cidades baseadas na alteridade catalisou novas ideias que, sim, abordaram a viabilidade de reforçar a experiência de ser um corpo negro ideal dentro de uma utopia negra. Em outras palavras, a importância do afro-futurismo vem de sua capacidade de conectar pessoas de ascendência africana não apenas às suas origens, mas entre si. É aqui que os princípios de design inclusivo podem falhar, evoluir e desenvolver para o possível futuro de uma nação wakandense potencialmente realista.
2) Inclusão econômica: empregar tecnologias inovadoras, como o BIM, para regular de maneira transparente a eficiência financeira e aumentar a governança efetiva do crescimento urbano.
Não é segredo que as economias locais estão ligadas a uma rede global de troca de recursos, altamente influenciada pela governança nacional. Quando a segunda era da máquina começou, a inovação digital transformou a maneira como a sociedade interage com o meio ambiente. A tecnologia tornou-se uma ferramenta política: criar e monopolizar empregos. Portanto, a inovação tecnológica pode influenciar a inclusão econômica dos residentes urbanos, regulando sua capacidade de se beneficiar do crescimento econômico ou não.
É aqui que os poderosos softwares digitais, como o BIM, se tornam críticos para a inclusão urbana. Quando usado de maneira ideal com uma agenda de inclusão, o BIM tem a capacidade de catalisar uma mudança de paradigma de design que sistematicamente traz impossibilidades afro-futuristas à realidade, desconectando a estrita racionalidade da própria digitalização. Devido à falta de governança e manutenção sustentável, a sobrevivência e a navegação nos contextos urbanos africanos são simultaneamente racionais e irracionais em seus pensamentos, espíritos e ações. Mais ainda, onde os mercados informais dominam e caracterizam o funcionamento dos ecossistemas sociais, econômicos e políticos, a necessidade de reconhecer que a interação entre racionalidade e irracionalidade tem potencial para oportunidades avançadas de desenho responsivo localizado.
3) Inclusão espacial: regionalismo crítico como arquitetura de resiliência local e empoderamento da comunidade.
A inclusão espacial exige que necessidades básicas como moradia, água e saneamento sejam atendidas. A falta de acesso à infraestrutura essencial e serviços adequados é uma luta diária para muitas famílias desfavorecidas (Banco Mundial 2018).
Ao promover o engajamento participativo de indivíduos e comunidades no desenho de suas próprias casas, ruas e bairros, esta abordagem poderia revolucionar a qualidade e a relevância da forma urbana. A homogeneidade das cidades modernas neutraliza a variedade de estilos de vida e impede o crescimento do caráter individual - motivo do fracasso destes planos utópicos. Ao reconhecer a presença de idiossincrasias locais, os padrões de qualidade ambiental podem ser aprimorados por novas maneiras de construir estruturas organizacionais baseadas no empoderamento de todos os membros da sociedade através da diversidade e aumento da colaboração. Por meio de um estudo aprofundado de contextos informais, pode-se revelar idiossincrasias, abrindo soluções para uma variedade de processos sociais e padrões de qualidade nascidos fora do contexto. A compreensão dos detalhes nesse sentido torna-se importante para desmascarar os rótulos do informal como ineficaz e do formal como eficaz. Uma abordagem regionalista crítica à flutuação das condições urbanas, como descreve Frampton, procura complementar nossa experiência visual normativa, reajustando a faixa tátil das percepções humanas (Frampton, 1983, p29).
Então, perguntamos... como essas agendas inclusivas interagem na vida real?
Estudo de caso: táxis em alta velocidade e amagwinya quentinha
É uma manhã de inverno na cidade movimentada de Joanesburgo. A maioria dos sul-africanos conta com o sistema informal de microônibus para se deslocar, principalmente os percursos entre trabalho e casa. Dos 50% dos usuários que usam transporte público, 76% deles dependem do sistema informal de microônibus (StatsSA, 2015). Para o trabalhador comum, o dia começa cedo, saindo de casa na madrugada, às 4h, para chegar no início do expediente, que para a maioria dos trabalhadores começa às 7h. Devido às consequências do planejamento espacial do Apartheid, que buscou e foi bem sucedido em separar grupos de acordo com a raça na África do Sul até 1994, a maioria dos trabalhadores de baixa renda ainda vive em municípios e assentamentos informais mais distantes dos centros econômicos, onde o padrão de vida é mais elevado, para não dizer mais digno. Para o trabalhador de baixa renda da África do Sul, o dia começa extremamente cedo e não há tempo para preparar um café da manhã.
Muitos passageiros também dependem de mais de um microônibus, então, o tempo de baldeação aumenta ainda mais a duração do translado. O motorista só dá partida quando o veículo está cheio, geralmente com mais pessoas que o número permitido por lei. Devido à alta demanda de passageiros que necessitam de comida durante esses horários de pico, surgiu outro negócio informal predominante que conta com a existência dessas aglomerações em horário de pico. Nas principais paradas, ou seja, nos pontos onde os microônibus param com frequência e deixam muitas pessoas, existem comerciantes - quase sempre - mulheres. Essas mulheres aguardam uma onda de clientes que saem dos veículos, que então aceleram para pegar a próxima multidão que espera em outro ponto da estrada. Elas esperam, sentadas em tijolos com uma tigela cheia de rosquinhas quentes, conhecidas como amagwinya. O comércio informal tornou-se uma característica comum em todas as áreas urbanas, tanto nas grandes quanto nas pequenas cidades, e onde quer que haja tráfego, como em pontos de ônibus, estações de trem, paradas de caminhões e, é claro, nas ruas (In On Africa IOA, 2013).
Para o trabalhador comum, esses pontos são incorporados na memória por rotina. Sabe-se onde pedir ao motorista para parar, descer e comprar um saco de amagwinya. O sistema informal de microônibus assumiu o papel de sistema de transporte público devido à ineficiência do sistema público oficial. Para qualquer recém-chegado que queira ou precise usar o sistema informal, é difícil se encontrar e navegar pois não existe um mapa informativo. Sistemas de transporte eficientes que atendem às massas têm sinalização reconhecível de familiaridade e navegação. Em Milão, por exemplo, não é necessário entender italiano ou o mapa da cidade para reconhecer um grande "M" amarelo demarcando uma estação de metrô. Obviamente, a demarcação explícita de sinalização requer uma infraestrutura permanente eficaz com paradas e trocas fixas. No entanto, em países em desenvolvimento como a África do Sul, esses sistemas de transporte são dinâmicos, com pontos de parada e trocas mudando de acordo com a oferta e a demanda. Quando um novo centro comercial é aberto, oferecendo novos empregos, rapidamente surge uma nova parada de microônibus na beira da estrada adjacente ao centro comercial. Os veículos param ilegalmente, deixando passageiros no local de trabalho: uma empresa que capitaliza em externalidades. Ocorre um efeito cascata, onde a nova parada se torna um palco para as vendedoras de amagwinya que fornecem comida aos passageiros nos horários de pico: outro negócio baseado em externalidades. Como os passageiros navegam nesse sistema cambiante e flexível? A mesma pergunta pode ser feita sobre as vendedoras de amagwinya. Os locais em que negociam são sim, lugares para ganhar dinheiro, mas de forma alguma atendem as necessidades das mulheres que vendem. Como projetar adequadamente para responder às múltiplas necessidades e potenciais dessa situação?
Projeto: quiosque pop-up de amagwinya
A consideração espacial convencional imediata que surge é a decisão de uma abordagem permanente ou efêmera. No entanto, uma visão afro-futurista do espaço dissolve o pensamento binário de abordar o desenho dessa maneira.
Nossa resposta é descrita por um objeto desobediente (Grindon & Flood, 2014): A caixa-quiosque pop-up de amagwinya. Este objeto dinâmico inicia uma pluralidade de vários compromissos, dando voz ao que normalmente seria simplesmente uma caixa oferecendo um abrigo. O objeto se torna uma estrutura móvel, que pode se adaptar à flexibilidade informal dos nômades urbanos: comerciantes, vendedores ambulantes, motoristas informais, entre outros...
Atender às necessidades dos nômades frequentemente esquecidos do contexto urbano torna-se um começo fundamental no desenvolvimento de uma forma de arquitetura inclusiva, atribuindo relevância e valor àquilo que é informal.
Segundo a lógica do design de objetos, o protótipo é efêmero e transitório, conferindo espaço para capitalizar a condição dinâmica dos fluxos característicos do sul global. Essas estruturas pop-up atendem a vários frequentadores urbanos. Elas indicam os principais nós de transporte em um plano diretor flutuante, permitindo que os fenômenos naturais da espontaneidade ocorram à medida que as externalidades mudam de acordo com os sistemas informais; um ecossistema de fluxo. Esses objetos tornam-se estruturas no contexto urbano, desempenhando um papel de infraestrutura de navegação e comércio. Mais importante, em seu cerne, essas estruturas respondem às necessidades do nômade urbano, melhorando as condições de suas transações econômicas cotidianas e as experiências do movimentado domínio público.
Essa ideia de projeto está sendo prototipada e em breve estará em construção, portanto, todos os desenhos de trabalho e desenho não foram divulgados. Todos os direitos dessa ideia são reservados por Matri-Archi(tecture). Para qualquer dúvida entre em contato com as autoras em wearematriarchi@gmail.com
Referências e mais leituras
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