Dando sequência à série de artigos sobre habitação social na América Latina, Nikos A. Salingaros, David Brain, Andrés M. Duany, Michael W. Mehaffy e Ernesto Philibert-Petit apresentam uma reflexão sobre os problemas e soluções para as favelas.
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Problemas e soluções
A re-urbanização e a promoção sanitária da favela
Embora este artigo analise o processo de construção de assentamentos sociais NOVOS, nossa abordagem pode ser ajustada para a re-urbanização de favelas. Em termos ecológicos, a partir da competição, nós aceitamos e aprendemos, ao invés de tentar exterminá-las, (no espectro mais baixo do urbanismo, as “espécies”). Os governos desejariam simplesmente que as favelas desaparecessem (recusando, mesmo a desenhá-las nos mapas das cidades) e que seus residentes espontaneamente se mudassem para o campo, mas poderosas forças econômicas globais garantem que isso não vá acontecer. Nós, como urbanistas preocupados em abrigar os pobres, precisamos aceitar as favelas como um fenômeno social e urbano, e tentar fazer o melhor possível dentro da situação existente.
Não é sempre possível, e mesmo desejável, aceitar uma favela existente e transformá-la em um melhor lugar para viver.
Primeiro, porque é freqüente que as ocupações cresçam em solo poluído ou tóxico, ou em solo instável, em altas declividades ou em áreas inundáveis. Periodicamente seus habitantes são mortos por desastres naturais e há pouco que possa ser feito para re-urbanizar um assentamento localizado em um solo perigoso de maneira a torná-lo mais seguro.
Segundo, os assentamentos irregulares invadem reservas naturais que são necessárias para regenerar o oxigênio necessário para a cidade inteira. Estes são os “pulmões” de uma população urbana, e precisam ser preservados da destruição e de serem invadidos.
Terceiro, os assentamentos irregulares produzem poluição e dejetos humanos que causam danos ao resto da cidade. Este problema não pode ser ignorado. Mesmo se o governo não deseja legitimar uma favela particular, tratar o lixo beneficia a cidade inteira.
Vamos assumir, por um momento, que os problemas sociais (que são particularmente presentes e ameaçadores nas favelas) possam ser atacados independentemente dos problemas provenientes da forma arquitetônica e da forma urbana. Alguém pode facilmente ir a um assentamento existente e tentar repará-lo, com o auxílio dos correntes ocupantes. John F. C. Turner (1976) fez exatamente isto, estabelecendo um precedente para várias intervenções de sucesso, na América Latina, especialmente, na Colômbia. O único obstáculo — e esse é um muito profundo — é a convicção filosófica de que a geometria da favela está ultrapassada em uma sociedade moderna. Para este tipo de pensamento, qualquer “reparo” torna-se destruição e substituição. Nós precisamos verdadeiramente compreender o processo de reparação e de auto-cura do tecido urbano, sem as influências dos preconceitos correntes.
Discordando das crenças do planejamento convencional, nós aceitamos a geometria da favela e chamamos a atenção para as suas principais deficiências: falta de serviços, falta de condições sanitárias e de espaços naturais. Na maioria dos casos o tecido urbano é perfeitamente adaptado à topografia e às características naturais da paisagem (simplesmente porque os proprietários-construtores não tiveram acesso a buldozzers e dinamite). O que usualmente falta são espaços verdes e árvores. A triste verdade é que as árvores existentes são cortadas e utilizadas como material de construção. A vegetação compete com as pessoas pelo espaço. A pobreza da favela freqüentemente inclui pobreza em plantas vivas: isso é um luxo aqui devido às extremas condições de vida. Mesmo assim, muitos residentes tentam manter um pequeno jardim, se isso for possível.
Um processo de reforço
Nosso método é altamente flexível e seus princípios se mantêm válidos mesmo se a situação muda. Uma série de passos, dados pouco a pouco (e, portanto, muito econômicos) pode recuperar o complexo tecido urbano da favela. Mais do que qualquer coisa, nós advogamos um processo de REFORÇO, adotando muito da geometria ali presente onde ela parece funcionar e intervindo para substituir as estruturas patológicas. Os encanamentos e as instalações sanitárias são fundamentais. Os passeios são as coisas mais importantes e extremamente necessárias em uma favela, que é basicamente o reino do pedestre.
A existência de passeios verdadeiros eleva a favela a uma tipologia urbana de mais “alta-classe” e mais permanente. As fachadas frontais existentes determinam exatamente onde os passeios devem ser construídos. As ruas de uma favela são usualmente de má qualidade, isso se elas forem pavimentadas, então as redes de água, esgoto e eletricidade devem ser introduzidas sob as ruas. Depois que muitos prédios sejam reforçados, pode-se finalmente, pavimentar a via.
A adoção de medidas sanitárias, imediatas, pode minimizar a sujeira e a doença. Não é preciso destruir a favela para ter uma área mais saudável. Certamente, isso não irá aumentar os níveis de renda de seus residentes, nem melhorar suas condições sociais. Botando as mesmas pessoas em apartamentos do tipo bunkers de concreto pode aparecer bem em uma fotografia, mas na verdade corta as suas conexões societais, tornando piores, em última análise, suas condições. Nós sabemos que quando os pobres são forçados a se mudarem de um bairro de escala humana para blocos de apartamentos em altura, a situação de coesão social piora catastroficamente. Por outro lado, muitos problemas sociais não são solucionáveis através da morfologia urbana por si só.
Uma favela é usualmente construída de materiais frágeis e não-permanentes. O governo pode auxiliar seus residentes a reconstruir suas casas gradualmente usando materiais mais permanentes. Nós não queremos dizer, com isso, em substituir a tipologia das suas casas, mas em substituir uma cobertura instável ou as paredes (usando esta oportunidade para inserir as canalizações de água e de eletricidade). Uma casa feita de papelão e de telhas corrugadas de maneira semelhante, usando tijolos, blocos de concreto e painéis mais sólidos providos de maneira barata pelo governo. Algumas vezes os residentes estão apenas esperando até receberem um documento legal para a terra onde eles estão vivendo, e então eles reconstroem suas casa com materiais mais permanentes, financiados pelas suas economias acumuladas. Não sendo assim, eles são relutantes em investir o mínimo que seja na estrutura.
Alguns leitores irão objetar em aceitar a super-ocupação que existe nas favelas e talvez até mesmo achem ultrajante que se sugira manter estas altas densidades. Aqui nós temos que estudar as altas densidades dos assentamentos de alta-renda, na mesma sociedade, para decidir quanta densidade pode ser tolerada. Não é a densidade por si só que é objetável, mas as condições difíceis de vida que resultam desta densidade. Então se pode ver que porções do tecido urbano podem ser mantidas com altas densidades quando possuem melhores condições sanitárias. Infelizmente, estas sugestões têm sido execradas até agora.
As intervenções urbanas em pequena escala
Em alguns lugares, aceitar as favelas e legalizar seus lotes tem vindo sob uma crítica poderosa da parte de vários ativistas sociais, que vêm aí uma solução fácil a ser tomada pelos governos. A acusação é de que ao simplesmente legalizar um assentamento não saudável, o governo se desresponsabiliza de construir habitações sociais mais permanentes. Em nossa opinião a magnitude do problema representado pela habitação social é tão vasta, ao ponto de ser quase impossível de ser resolvido. A simples questão econômica põe uma solução ampla fora das possibilidades. Nossa abordagem atua com um passo a cada momento, re-urbanizando aquelas porções da favela que podem ser tornadas mais saudáveis, e, ao mesmo tempo, construindo novas habitações seguindo o paradigma orgânico. Se estes passos acontecem, então eles podem ser repetidos definitivamente, progredindo na direção de uma melhoria no longo prazo.
Os bancos, os governos e as companhias construtoras são cativados pela economia de escala e são menos sensíveis às economias do lugar e da diferença necessárias para restaurar uma vizinhança. A partir de uma percepção limitada e utilizando relativamente primitivos instrumentos econômicos, eles preferem arrasar um assentamento e construí-lo de novo. Fazer isto é muito menos problemático e menos custoso em termos monetários. Mas claro que a insustentabilidade deste modelo econômico desequilibrado (e seu terrível custo para a sociedade) está se tornando dolorosamente evidente.
Os governos são relutantes em preocupar-se com as intervenções urbanas em pequena escala, e ao contrário, financiam somente os de larga-escala, o que economiza a contabilização dos custos (Salingaros, 2005, Capítulo 3). Mais ainda, um tecido urbano vivo tem que ser mantido por um enorme número de intervenções de pequena-escala, que é uma parte essencial do processo de reparo orgânico. Instituições como os bancos (com a exceção antes notada de micro-financiamento do Banco Grameen) não querem se incomodar com pequenos empréstimos para a construção de pequena escala nas áreas pobres.
No entanto, todos os bancos operam também em pequena escala, administrando pequenos empréstimos e contas. Eles possuem a habilidade técnica para servir pequenos empréstimos, fazendo isto rotineiramente com cartões de crédito, financiamento de carros e as linhas de crédito pessoal. A tecnologia desenvolveu-se na direção da diferenciação e da customização, ajudada em parte pela revolução na tecnologia dos softwares. Estas inovações têm ainda que ser aplicadas no reino da habitação social, que tende a seguir os velhos e inflexíveis formatos institucionais.
Em uma visão mais positiva, muitos grupos descobriram soluções de pequena escala de enorme valor. Por exemplo, em anos recentes, conceitos do tipo micro-financiamento, geração de micro-energia, centros de mães, centros de tecnologia, fazendas urbanas, banheiros de compostagem e outras idéias vem sendo implementadas com sucesso. Estes processos de pequena escala podem, eventualmente, fazer grandes diferenças, tanto para as favelas como para a habitação social. Elas estão de acordo com nossa insistência na pequena escala como um mecanismo de auto-ajuda nestas comunidades e também em estabelecer um sentido de comunidade para uma população disfuncional (Habitatjam, 2006). Estas soluções de pequena escala que representam independência de recursos, oferecem uma alternativa saudável às forças que atuam tentando impor um controle central.
Versão anterior deste artigo foi apresentada por NAS como uma palestra no Congresso Ibero-Americano de Habitação Social, Florianópolis, Brasil, 2006. Publicado em URBE: Revista Brasileira de Gestão Urbana, Vol. 3 No. 2 (Julho/Dezembro 2011), páginas 293-308.
Tradução para português: Lívia Salomão Piccinini.
Bibliografia
- Habitatjam (2006) World Urban Forum Website. https://unhabitat.org/wuf/
- Nikos A. Salingaros (2005) Principles of Urban Structure (Techne Press, Amsterdam, Holland). Algunos capítulos han sido traducidos en Español. http://zeta.math.utsa.edu/~yxk833/POUS-online.html
- John F. C. Turner (1976) Housing by People (Marion Boyars, London). Edición en Español (1977) Vivienda, todo el poder para los usuarios : hacia la economía en la construcción del entorno (Hermann Blume, Barcelona).