O modernismo arquitetônico nasceu na esteira das vanguardas europeias no início do século XX. O movimento estava embalado pelo capitalismo industrial e pelo empolgante avanço tecnológico que ocorria diante dos olhos de todas as pessoas. A ruptura com o passado foi deliberadamente franqueada pelos movimentos intelectuais, artísticos e técnicos desde meados do século XIX. O Palácio de Cristal, por exemplo, projetado por Sir Joseph Paxton, foi construído em Londres para abrigar as grandes exposições de 1851 e representou uma revolução construtiva quanto às possibilidades de uso de materiais leves como o ferro e o vidro.
Le Corbusier, em ‘Por uma Arquitetura’ (1923), definiu sua perspectiva e iluminou o sentido por onde a arquitetura deveria caminhar. Defendeu que os princípios industriais precisavam ser incorporados à produção arquitetônica do mesmo modo como ocorria na produção de automóveis e navios, ícones da produtividade e do avanço técnico da época. Como sua tese estava alinhada ao capitalismo vigente, prontamente ganhou adeptos e tornou-se hegemônica. Os arquitetos e engenheiros colocavam na ordem do dia, questões como: a eliminação dos ornamentos (que possui dupla função: aumentar a produtividade da obra e criar um novo design de linhas simplificadas); a conceptualização da lógica modular para projetos (que ajuda a padronizar elementos construtivos); o incremento de novas técnicas, processos e materiais de construção e a especialização das funções da edificação (que ajuda a aumentar a eficiência das instalações complementares, tais como: climatização, elétrica, hidráulica e esgoto). A ideologia que se forjava estava alicerçada na perspectiva da conquista do progresso humano por meio do domínio técnico.
É preciso lembrar – para entender melhor essa questão – que a filosofia positivista trabalhava nas mentes eurocêntricas desde o século XVIII e ainda se fazia presente naquele início de século XX. O positivismo se assenta no ideário de um desenvolvimento humano a partir das certezas proporcionadas pelo conhecimento científico e da suposta segurança advinda do desenvolvimento tecnológico. Portanto, o progresso técnico-científico-industrial verificado no início dos 1900 podia ser percebido como a concretização da utopia positivista.
A Reitoria no contexto do movimento modernista
O prédio da Reitoria da UFMG, concebido na década de 1950 e construído em 1962, é uma das expressões mais importantes da arquitetura modernista em Minas Gerais. Hoje é patrimônio tombado por Belo Horizonte. O arquiteto e professor Eduardo Mendes Guimarães Júnior liderou a equipe que concebeu o projeto com claras premissas vanguardistas instituídas por Le Corbusier desde o princípio do século XX. Elementos como a planta livre, o volume construído sobre pilotis, as fachadas com janelas contínuas e independentes da estrutura, os panos de vidro estruturados com perfis metálicos e a ideia do terraço jardim, comparecem no edifício e podem ser lidos atualmente como quesitos que ajudam a categorizar o prédio como pertencente ao modernismo arquitetônico.
Entretanto é preciso superar a noção de que o modernismo não passa de um estilo, uma linguagem arquitetônica. O modernismo precisa ser estudado a fundo, pois ele não é um movimento formalista justificado em si, que se define apenas por suas características físicas. O movimento moderno veio embalado em um contexto social amplo, que formou mentalidades. Ele permeou a vida em muitas instâncias, nas diversas artes, na sociologia, na política e na arquitetura. Logo, esse movimento moderno pode ser entendido como um espírito do tempo, que alguns autores denominam: zeitgeist. Esse olhar ajuda a compreender que grande parte das construções modernas não foram feitas por simples escolhas projetuais, foram regidas por interesses sociais, que transcendem o ato de projetar.
Ao ser importando para o Brasil o modernismo arquitetônico cumpriu um papel que não se limitou às questões de inovação no campo do projeto e da construção. A arquitetura modernista europeia foi traduzida em termos convenientes ao Brasil (adaptada ao clima, por exemplo) e utilizada explicitamente como ferramenta político-social, pois carregava um ideário propício e esse fim. Para se demonstrar isso, basta lembrar a construção de Brasília (década de 1950) – ordenada pelo presidente Juscelino Kubitscheck e desenhada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer – e seus predecessores: complexo da Pampulha (década de 1940) e o novo prédio para o MEC - Ministério da Educação, atual Palácio Capanema, (década de 1930).
No famoso caso do MEC, quando o então ministro Gustavo Capanema intervém – anulando o resultado do concurso de projetos, o qual havia premiado uma proposta com linhas ecléticas, historicistas, do arquiteto Archimedes Memoria – e ordena a concepção de um novo projeto com linhas inovadoras a ser feito por um grupo de arquitetos modernistas (no qual estavam Le Corbusier e Niemeyer), explicita-se em grau máximo o uso político-social da linguagem modernista pelos governantes. Nesse contexto se insere a famosa frase: Brasil, o país do futuro (modernista, no caso).
Ocorria no Brasil durante a primeira metade do século XX um crescente movimento de autoafirmação e revisão das perspectivas culturais, sociais e políticas. A Semana de Arte Moderna de 1922 simboliza bem essa questão, assim como o Movimento Antropofágico ilustra perfeitamente como se procedeu a incorporação (ou deglutição) dos movimentos estrangeiros (como o modernismo arquitetônico) e sua transmutação em uma expressão nacionalizada.
Fatores intervenientes para o projeto da Reitoria
Para que se compreendam as razões históricas que resultaram no atual edifício da Reitoria é preciso voltar algumas décadas, anteriores a 1962. A UFMG tem sua gênese em 1892 com a fundação da Faculdade de Direito, antes mesmo da construção da nova capital, Belo Horizonte, em 1897. Nos primeiros anos do século XX outras faculdades independentes foram criadas e instaladas em prédios no centro da nova capital – fato que tem repercussões ainda hoje, pois nem todas as unidades estão no Campus Pampulha. Em 1925 o então governador, Fernando de Melo Viana, propôs a criação de uma universidade, que veio a ser a UMG – Universidade de Minas Gerais, de modo a congregar as faculdades isoladas. Tal proposta abriu a discussão sobre a reunião das faculdades em uma cidade universitária aos moldes dos câmpus universitários dos Estados Unidos.
Inicialmente se propôs que a Cidade Universitária da UMG ocupasse alguns quarteirões do centro da capital. O local escolhido foi estudado e um projeto de ocupação foi desenvolvido pelo engenheiro carioca Eduardo Pederneiras no ano de 1929. Porém, parte significativa da comunidade universitária preferia que a sede fosse estabelecida em uma região com devido isolamento do centro, sentido natural para um campus universitário. Em 1942 um novo terreno foi escolhido, uma antiga fazenda ao lado do recém-criado complexo da Pampulha, que se apresentava como o vetor da modernidade urbanística. Pederneiras foi então acionado para adaptar aquele projeto ao novo terreno, elaborando o ‘Plano Pederneiras’. Ocorre que ambos os projetos – do centro e da Pampulha – foram concebidos com premissas historicistas, de inspiração neoclássica, o que desagrava grande parte da comunidade acadêmica e arquitetônica. Havia no país uma clara tendência vanguardista que fomentava projetos modernistas. Para os críticos não fazia sentido que a nova sede universitária – instituição que deveria voltar-se ao futuro e que seria assentada ao lado da Pampulha – fosse construída com linhas passadistas.
Em 1951, o então presidente do IAB – Instituto dos Arquitetos do Brasil de Minas Gerais, arquiteto e professor Eduardo Mendes Guimarães Júnior defendeu publicamente seu “Manifesto contra o projeto da Cidade Universitária” dizendo que as novas instalações para a UMG precisavam ser feitas sob a perspectiva da modernidade. Sua tese venceu, o ‘Plano Pederneiras’ foi abandonado e novos projetos foram desenvolvidos em equipe pelo ‘Escritório Técnico’ (órgão da Universidade) com a liderança do próprio Professor Eduardo Mendes. Dentre esses novos projetos incluiu-se a Reitoria.
Pode-se dizer que da realização do prédio da Reitoria emergem traços característicos e essenciais daquilo que a UFMG acreditou ser a essência de sua identidade e onde seus membros apoiaram um projeto futuro. - STARLING e DUARTE (2009)
Um importante destaque histórico deve ser feito, uma vez que os fatos sobre o concurso de projetos para o MEC guardam fortes semelhanças com o ocorrido à Cidade Universitária e Reitoria: os projetos passadistas foram descartados e novos projetos modernistas providenciados. Com isso evidencia-se o conflito de interesses e percepções sobre os encaminhamentos da arquitetura naquele momento. A análise formal dos projetos faz brotar uma curiosidade, pois há semelhanças projetuais entre o MEC e a Reitoria. Ambos fazem jogos volumétricos entre dois blocos, deslocados entre si. As soluções construtivas, concepção de usos e a articulação com o urbano (uso do pilotis e vias de carros que passam por baixo do prédio) também são semelhantes.
A Reitoria materializada
A Reitoria foi o prédio que iniciou a ocupação territorial da Cidade Universitária, em 1962. Nessa época a UMG não era federalizada, mesmo assim a cerimônia de inauguração contou com a presença do presidente João Goulart, fato que demonstra a importância política dada à obra. O prédio foi assentado em um ponto central do Campus sobre um platô retificado especificamente para a construção.
A modificação completa da topografia natural para atender ao projeto era prática comum dos modernistas e pode ser observada em fotos da obra. As características urbanísticas adotadas para a Reitoria, tais como: localização, altimetria e volumetria, são elementos que simbolizam, ainda hoje, sua importância.
O prédio se destaca soberano na paisagem. O entorno imediato do prédio é livre de edificações: a sua frente há uma esplanada gramada que vai até o Bulevar Mendes Pimentel (via principal do Campus), pelo lado direito há um bosque e ao fundo localiza-se uma reserva territorial. Essa configuração ambiental libera diversas visadas para o edifício.
O Campus Pampulha foi bastante arborizado ao longo das décadas, é comum que o prédio seja notado como se emergisse do topo das árvores, o que proporciona uma interação entre objeto construído e a natureza. Também, o prédio pode ser visto a partir do interior de outras edificações universitárias, o que cria um diálogo entre as unidades.
Ainda hoje, o atual Plano Diretor, parâmetro normativo que orienta o uso e ocupação do espaço-físico no Campus Pampulha, instrumentaliza as novas concepções arquitetônicas de modo a garantir que a Reitoria seja a figura principal da paisagem. A equipe permanente de planejamento físico-ambiental, garantida pela administração central, trabalha no sentido de manter a concepção original preservando a qualidade do espaço-físico conquistada e que é reconhecida pelos fruidores.
O edifício é composto por dois volumes claramente distintos: um horizontalizado (com dois pavimentos, de planta quadrada) e outro verticalizado (com seis pavimentos e planta retangular). Essa diferença volumétrica também marca uma distinção de usos conforme o princípio funcionalista do modernismo: a forma segue a função.
De acordo com o projeto original os dois primeiros pavimentos se ocupariam das atividades públicas, havendo no 1º pavimento: um hall de acesso e recepção, um amplo foyer (que, com os portões abertos, serve como ‘passagem para as pessoas’ – um atalho para quem se desloca no território universitário – e para ‘exposições artísticas’), um auditório, um pilotis externo (que serve como área de convivência e abriga uma circulação de carros), sanitários, corredor de acesso aos elevadores e um pátio central ajardinado. No 2º pavimento, há: um mezanino (que funciona como um segundo foyer para o auditório), sanitários públicos e um restaurante (hoje desativado).
A torre foi pensada originalmente para abrigar as atividades administrativas, sendo seis pavimentos concebidos em planta livre. As infraestruturas fixas (pilares estruturais, banheiros, copas e circulação vertical) se concentram de tal maneira que a planta fica liberada para ocupação de acordo com a necessidade dos usuários. Originalmente imaginou-se a organização tipo escritório paisagem de divisórias baixas. Com essa configuração as aberturas de janelas (em posição opostas) e o formato especial da laje permitem a ventilação cruzada e a eliminação do ar viciado de maneira eficiente (o formato em V da laje obriga a exaustão do ar do meio para as bordas, em direção às janelas). A concepção estrutural se assemelha à Casa Domino, proposta por Le Corbusier em 1914, com lajes de pisos independentes dos demais elementos, criando grande flexibilidade de uso interno.
Os cinco pontos da arquitetura Corbusiana
As premissas de Le Corbusier foram tão influentes que o projeto da Reitoria atendeu aos cinco pontos definidores para a Nova Arquitetura, sendo:
Planta livre: na Reitoria as divisórias que conformam os ambientes são independentes das estruturas de concreto (lajes, vigas e pilares). Os pavimentos administrativos foram concebidos com o princípio da indeterminação do uso, seu piso é liberado e independente das estruturas (pilares concentradas no eixo da planta) e das infraestruturas inflexíveis (como banheiros, copas e circulações verticais). A indeterminação do uso parte da previsão de variação das necessidades dos usuários ao longo do tempo, e facilita a mutabilidade espacial e reduzindo gastos com obras para reformas. Na foto a seguir, feita em uma etapa de obra sem as vedações externas, observam-se a liberação dos pavimentos. De modo que é possível ver “através do prédio”, enxergando o talude ao fundo.
Pilotis: o volume da torre se eleva do terreno original, sustentado pelos pilares centrais brutalistas. O pilotis funciona como área sombreada para convívio e passagem para pedestres, mas também abriga uma via de carros (a interação ‘edifício’ x ‘vias para carros’ é comum no modernismo).
A lógica de liberação do piso para o fluxo de pedestres é reconhecível no volume horizontalizado. Com os portões de vidros abertos as pessoas podem chegar também ao jardim central.
Terraço jardim: é a ideia de levar a natureza para dentro do edifício e recompor o piso natural perdido pela construção através de um paisagismo, normalmente para contemplação. Essa noção está presente no pátio central do bloco de dois pavimentos.
Fachada livre: as vedações externas da Reitoria são executadas em enormes panos de vidro com caixilhos de alumínio do piso ao teto. Essa solução garante uma ventilação plena, mas sofre com a entrada indiscriminada de sol da manhã, um brise-soleil para resolver a questão nunca pôde ser feito por causa do tombamento.
Janelas em fita: esse ponto não se confunde com o anterior. A lógica para a ‘janela em fita’ é a possibilidade de integração máxima com a paisagem exterior, desse modo a paisagem não fincaria enquadrada em uma pequena abertura (janela tradicional), liberando o olhar para a área externa de tal modo como se o exterior fosse trazido para o ambiente interno. O horizonte seria completamente visualizado graças à janela em fita.
A imagem a seguir mostra a FACE - Faculdade de Ciências Econômicas, que se localiza em frente à Reitoria. Nota-se como o ambiente externo é trazido para o interior do edifício. A atual ocupação da Reitoria é feita em pequenas salas individuais – contradizendo-se à proposta original dos escritórios paisagem, mas evidenciando a flexibilidade organizacional proporcionada pela planta – de modo que a horizontalidade da janela em fita é prejudicada para a contemplação.
Hoje o que se tem é um prédio icônico que representa o pensamento de uma época. Em termos funcionais e práticos o edifício atende muito bem as necessidades dos usuários. As pessoas se impressionam com a beleza e com a imponência do prédio. Os fruidores do Campus Pampulha se beneficiam não apenas de sua beleza, mas também de sua função pública, já que esse oferece sombreamento e infraestruturas para o conforto das pessoas.
Plantas técnicas do projeto original
Referências bibliográficas
CORBUSIER, Le. Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 2014.
GORELIK, Adrián. Das Vanguardas à Brasilia – Cultura Urbana e Arquitetura na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
MACIEL, Carlos Alberto; MALARD, Maria Lúcia. Territórios da universidade: permanências e transformações. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
MASINI, Daniele Forlani. Sob a ótica do projeto: o arquiteto Eduardo Mendes Guimarães Júnior e a Reitoria da UFMG. Dissertação de mestrado (manuscrito). Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2015.
STARLING, Heloisa Maria Murgel; DUARTE, Regina Horta. Cidade Universitária da UFMG - História e Natureza. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
UFMG, Arquitetura Modernista em Minas Gerais. Site da Escola de Arquitetura da UFMG, disponível em: http://www.arq.ufmg.br/modernismomg/index/index1.html. Visitado em outubro de 2019.