O “Caminho Histórico Glória-Lavapés” é composto pelas ruas da Glória e do Lavapés, que interligam os bairros da Liberdade, Glicério e Cambuci situados na região central do município de São Paulo. Apesar de ter sido tombado em março de 2018 e homologado em julho de 2019 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP), esse lugar ainda enfrenta problemáticas que reiteram e reforçam o apagamento histórico de memórias importantes compreendidas ao longo dessa extensão como a memória de ocupação negra, a memória morfológica do traçado da cidade colonial e a memória visual e topográfica da condição acidentada do terreno.
O processo de estudo para tombamento do Caminho Histórico se inicia por meio do Inventário Geral do Patrimônio Ambiental, Cultural e Urbano da Liberdade (IGEPAC-Liberdade) publicado em 1987, tendo como meta principal a consolidação da preservação de imóveis e conjuntos urbanos, os quais não são necessariamente grandes monumentos, porém representam diversas camadas históricas da cidade e da ocupação do bairro.
Posteriormente em 2016, impulsionado pela retomada dos estudos sobre a região pelo Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), o CONPRESP atualiza a proposta inicial do IGEPAC-Liberdade, propondo uma revisão no perímetro, a exclusão de imóveis já demolidos, a inclusão de outros imóveis e a divisão do bairro em seis grandes áreas de estudo: Liberdade, Glicério, Glória-Lavapés, Pirapitingui/São Joaquim, Vergueiro e Nossa Sra. Da Conceição.
Nesse contexto, o Caminho Histórico Glória-Lavapés, se estabelece como patrimônio através de suas diversas camadas históricas, que compreendem memórias visuais, morfológicas, territoriais, de ocupação - entre outras - constituídas ao longo do tempo, que não podem ser entendidas isoladamente, carregando consigo o imaginário coletivo da construção da cidade.
O enfoque da paisagem cultural permite, assim, superar um tratamento compartimentado entre o patrimônio natural e cultural, mas também entre o material e imaterial, entendendo-os como um conjunto único, um todo vivo e dinâmico. Permite compreender as práticas culturais em estreita interdependência com as materialidades produzidas e com as formas e dinâmicas da natureza. —Simone Scifone, Paisagem Cultural.
Por mais significativa que seja a compreensão desse território enquanto bem patrimonial, a preservação dessas camadas históricas mostra-se fragilizada. Embora o antigo percurso conserve seu traçado inalterado, as edificações que compõem essa paisagem se encontram descaracterizadas, o que explicita tanto o atual contexto político-econômico quanto a falta de diálogo entre órgãos patrimoniais, urbanísticos e população.
Compreendido por duas das ruas mais antigas de São Paulo, esse trajeto se inicia no triângulo histórico e direciona-se ao litoral em sentido sul, criando a conexão entre a cidade e o porto de Santos. Seu traçado, mantido inalterado até a atualidade, está atrelado ao córrego do Lavapés, o que resulta em um caminho com forte caráter paisagístico, ora pelo traçado de suas ruas, ora pelas visuais existentes por sua conformação topográfica acidentada. Diante da oposição entre Santos e Rio de Janeiro, a região configurava espacialmente os fundos da cidade colonial e, por isso, foi onde se instalaram atividades e populações marginalizadas pelas classes mais altas.
No século XIX a zona central da cidade, onde localiza-se o Caminho Histórico, caracterizava-se pela forte presença da população negra, que em 1872 chega a compor um terço dos habitantes de São Paulo. Essa área constitui-se desta forma por apresentar oportunidades de ofícios para os libertos e escravizados evadidos das fazendas. Dentre os pontos importantes dessa territorialidade estão os quilombos urbanos, mercados, espaços das irmandades religiosas. Dentro de um contexto já existente de disputa pela memória urbana, na década de 70 intensifica-se a ocupação oriental na área, criando novos embates em que a nova camada populacional ganha seu reconhecimento ao mesmo tempo que reitera os apagamentos já existentes no local.
Embora o Caminho Histórico Glória-Lavapés tenha sido uma peça chave para o desenvolvimento urbano no período colonial, ele nunca esteve localizado em uma área nobre, tendo sido sucessivamente ocupado por minorias. Isso pode ser percebido na imagem construída a partir das produções cartográficas oficiais dos anos 1810, 1841, 1868, 1877, 1881 e 1890, pois mesmo sendo uma das ruas mais antigas da cidade poucas vezes é representada e é constantemente desconsiderada, aparecendo em mapas por meio de representações extremamente simples, frequentemente em lápis, sem o uso de adornos ou qualquer forma de enaltecimento da área. Além disso, a mancha urbana da cidade por mais que crescesse significativamente por meio da ocupação da população negra, não aparece no âmbito cartográfico, sendo inclusive evidente uma não linearidade em sua representação que se expande e diminui enquanto desenho ao longo desses anos.
No entorno do Caminho Histórico há um processo de apagamento da memória negra. No período colonial foram implantados diversos aparatos do uso da força os quais serviram como símbolo do Estado absolutista da época. Entre eles está o Largo da Forca (atual Praça da Liberdade), cujo entorno foi utilizado como primeiro cemitério público da cidade de São Paulo, denominado como Cemitério dos Aflitos, destinado a escravizados, indigentes, condenados à morte e não batizados, tornando-se um espaço de diversos cultos religiosos, com forte raiz africana. Em 1774, no mesmo local, é construída a Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, que, embora mantida pela Santa Casa de Misericórdia, recebia forte influência africana em seus cultos católicos. Embora a construção represente um resquício e, portanto, resistência da memória negra, encontra-se em péssimo estado de conservação.
Como podemos ver na imagem “Cartografia de Vulnerabilidade Social: Negros e Pardos por Setor Censitário no Perímetro do IGEPAC-Liberdade” realizado com dados do IBGE do último censo (2010), ainda há uma considerável presença negra na região, mas dentro do imaginário popular é como se essa população não existisse nem nunca tivesse existido no local, reiterando o apagamento dessas pessoas na história das ruas da Glória, do Lavapés e de seu entorno.
Infelizmente, a memória negra não é a única em processo de apagamento, existem sérias ameaças à preservação da memória na região, principalmente no que diz respeito às suas visuais morfológicas e arquitetônicas. Para começar a explicar isso é importante expor que as transformações urbanas ocorridas no início do século XX são dadas no eixo que ligava o centro da cidade à Santo Amaro, tendo seu traçado marcado pela linha do bonde, que no ano de 1886 é inaugurada por completo entre as estações São Joaquim e Santo Amaro.
Em 1900 o grupo empresarial Light and Power compra a linha para Santo Amaro e passa a implantar o sistema elétrico de tração nos bondes. Em 1901 instala sua sede em um grande terreno localizado no centro expandido da cidade na Rua do Lavapés – o maior terreno perceptível em todos os mapeamentos aqui expostos.
A nova camada de apagamento histórico ocorre quando os galpões do grupo empresarial, importantes para a compreensão e conformação urbana da cidade além de serem um ponto referencial da memória industrial na região, são derrubados em 2014, formando assim o maior terreno vazio do centro expandido de São Paulo. Por se tratar de uma área com grande potencial, tanto por seu tamanho quanto por sua localização, torna- se alvo de grandes empreendimentos imobiliários.
Essa forma de ocupação do território em que o capital ganha mais voz que interesses urbanísticos e patrimoniais, cada vez mais vem sendo adotada pelas cidades brasileiras, distancia-se do entendimento do local e de suas potencialidades. Assim, perde chances de elaboração de projetos urbanos que conformam as diversas carências dessa região, causando um estranhamento pela falta de diálogo entre a densa verticalização e a paisagem urbana histórica onde estão inseridos.
Com a aprovação da construção do conjunto residencial Pátio Central pela incorporadora Direcional nesse terreno, os órgãos patrimoniais e urbanísticos acabam demonstrando seu lado frágil, tanto pelo longo tempo destinado aos estudos de salvaguarda e operações urbanas, quanto pela falta de técnicos nos departamentos, pouca integração com a população e pela falha no diálogo entre ambos, onde acabam se perdendo com a dinâmica de construção da cidade.
O terreno discutido também possui um grande potencial de memorar o caminho dos tropeiros, pois a passagem deles no percurso do centro de São Paulo a Santos possuía como marco a divisão entre o perímetro urbano e o rural ao passar por um córrego. Na imagem “Cartografia Hídrica do Contexto IGEPAC-Liberdade” podemos vê-lo por meio das massas de água de 1855 que cruzam o Caminho Histórico Glória-Lavapés e, automaticamente identificar o terreno em questão, pois encontra-se delimitado aproximadamente entre os dois córregos que cruzam o percurso dentro do recorte do IGEPAC – Liberdade.
Importante também para a compreensão da paisagem urbana desse lugar onde o empreendimento se implanta, é o Morro do Piolho cuja conformação topográfica acentuada contribui para grandes aberturas visuais para o trecho final do trajeto, para a Várzea do Tamanduateí e para o centro da cidade. Toda essa região é estruturada através de casas de gabaritos baixos (de um ou dois pavimentos) na maior parte de seu trajeto, possibilitando a conexão visual e paisagística da região. Justamente por isso, como podemos ver na imagem “Cartografia dos Gabaritos e Cone Visual do Contexto IGEPAC-Liberdade”, o processo de tombamento definiu um cone visual para valorar a vista da região, mas esse feito não foi o suficiente para a salvaguarda da vista pois dentro desse cone visual está justamente a primeira fase de construção das torres do Pátio Central que já está aprovada.
Ao analisarmos a infraestrutura urbana em direção à Rua do Lavapés saindo da área comercial oriental do bairro da Liberdade, percebemos uma escassez de recursos, evidenciando mais uma vez o descaso recorrente do poder público com a área. Um espaço que já carece de uma sensação de pertencimento e de comunidade não tem força para manifestar-se contra empreendimentos imobiliários que, frente a uma realidade de completa negligência e abandono, soa como uma alternativa bem recebida pelos moradores da área justamente porque está desamparada, porque não possui infraestrutura urbana e não valoriza a memória coletiva do local.
A Direcional está desenvolvendo um projeto de construção de 35 torres residenciais com 5.500 unidades na área, denominado Pátio Central com cerca de 107 mil m2. A proposta do projeto prevê a divisão da gleba em seis lotes onde cada um deles representará um condomínio residencial murado e formado por duas torres. 60% das moradias propostas se enquadram nas faixas de 1 e 2 do Minha Casa Minha Vida e 40% estão enquadrados em apartamentos de médio padrão.
Existe uma relevante importância em trazer habitação de interesse social para áreas centrais que é incontestável, porém isso não exclui as diversas problemáticas de projeto no que diz respeito às múltiplas memórias apagadas reiteradamente no local. Questiona-se, então, no projeto apresentado os diversos lotes murados alterando irreversivelmente a morfologia urbana, os altíssimos gabaritos das torres residenciais comprometendo o cone visual e também a ausência de um partido no projeto que valorize as diversas camadas de memória na área.
Ainda que a população nem sempre reconheça a importância histórica da área, ela é reconhecida em um âmbito que transcende o do bairro e atinge diversas camadas da memória da cidade. A participação do mercado imobiliário como agente estruturador do território urbano resulta em diferentes atuações no espaço, privilegiando aquelas que lhe convém e contribui para diversos apagamentos históricos e urbanísticos, tornando vulnerável a memória afetiva do espaço.
O empreendimento imobiliário que está sendo implantado no terreno desconsidera o contexto histórico local e suas diversas camadas temporais no que diz respeito à morfologia, à paisagem cultural e às ocupações de maneira a ocultar o passado cultural de diversas populações que habitaram o local. Além disso, o projeto mostra-se incoerente com a malha urbana existente tanto por representar uma escala de construção e mobilização de pessoas incompatível com a capacidade de transito das ruas, quanto por um desrespeito com o desenho urbano das quadras ao seu redor ao criar um desenho completamente destoante de seu contexto.
A crítica a esse empreendimento imobiliário não significa negar habitação de interesse social para a região; ao contrário, atualmente essa área encontra-se carente de investimentos e melhorias para sua valoração e requalificação. Não obstante, ressaltamos a negligência do projeto em relação ao contexto urbano e suas múltiplas memórias. Trata-se de uma questão de qualidade e respeito.
Beatriz Vilela Hubner, Fernanda Bueno Galloni, Paloma Neves e Stela Mori Neri Silva são alunas do curso de graduação em arquitetura e urbanismo da Escola da Cidade. O presente artigo é consequência da iniciação científica realizada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Escola da Cidade (São Paulo) – em convênio com o Departamento de Patrimônio Histórico do Município, pelas alunas Beatriz Vilela Hubner, Fernanda Bueno Galloni, Paloma Neves e Stela Mori Neri Silva orientadas pela profa. Dra. Marianna Boghosian Al Assal.
Referências bibliográficas
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