Na continuação da série de artigos sobre o estudo da habitação social na América Latina, Nikos A. Salingaros, David Brain, Andrés M. Duany, Michael W. Mehaffy y Ernesto Philibert-Petit apresentam uma reflexão sobre a imagem idealizada da casa desejável e a importância de levar a sério as expectativas das pessoas.
- Desenho capaz de estabelecer 'pertencimento emocional'
- Antipadrões da habitação social na América Latina
- Habitação social na América Latina: geometria do controle
- Habitação social na América Latina: biofilia, conectividade e espiritualidade
- Aplicando o trabalho de Christopher Alexander na habitação social
- Estratégias de construção para habitação social na América Latina
- Exemplos de padrões e códigos geradores
- Estratégias de projeto para habitação social na América Latina
- Habitação social na América Latina: Sequência de desenho
- Conselhos práticos para o futuro da habitação social na América Latina
- A necessidade de materiais adaptáveis na habitação social latino-americana
- Estratégias de financiamento de pequena escala
- Trabalhar com (ou contornar) o sistema
- Estratégias de manutenção
- 22 Passos para projetar habitação social
- Ferramentas eficientes para projeto e recuperação
- Problemas e soluções
Urbanismo como libertação
A tecnológica “imagem da modernidade”
Contrariamente aos hábitos de grande parte do desenho e do planejamento modernista, as necessidades físicas e psicológicas devem ser entendidas não em termos de quantidades abstratas, mas em termos da capacidade de respostas locais, adaptativas às necessidades e aos desejos. As vidas dos indivíduos são experenciadas como parte de comunidades vivas particulares. O processo alternativo proposto aqui pode ser aplicado de maneira geral para chegar a soluções de desenho não estandardizadas e vivas — vivas porque elas são conectadas, enraizadas localmente, e habitadas com o espírito assim como com o corpo.
É muito fácil de reconhecer a diferença entre morfologias orgânicas e industriais, baseado na sua complexidade percebida. Aqui estão três critérios que qualquer um pode usar:
- (a) A geometria em todas as escalas, desde o tamanho do projeto inteiro até o detalhe de 2mm, é complexa (única, variada) ou simplista (vazia o simplificada demais)?
- (b) Há uma transição geral regular das grandes para as pequenas escalas, sem saltos abruptos? Ou, se há passagens abruptas, elas terminam com geometrias mais complexas na próxima escala?
- (c) Se a geometria é visualmente complexa, a forma cresce e se adapta às necessidades humanas físicas e psicológicas ou ela é de um complexo “alto desenho” imposto arbitrariamente?
Estes três critérios distinguem um tecido urbano vivo das formas industriais mortas. (O terceiro critério é mais difícil de aplicar sem alguma experiência).
Paradoxalmente, o segmento da sociedade (isto é, intelectuais progressistas e ativistas promotores de causas sociais) mais interessado em auxiliar as pessoas é também aquele que, por razões políticas e ideológicas, de maneira naïve assume que a solução deve estar de acordo com a tecnológica “imagem da modernidade”. Eles não podem pensar fora das imagens sedutoras do paradigma militar / industrial do século vinte. Eles sinceramente acreditam nas promessas de liberação feitas pelos ideólogos modernistas, mas falham em ver que estas formas e geometrias são basicamente inumanas. Por contraste, aqueles privilegiados indivíduos que conseguem criar um ambiente quente, vivo e que responde (e que sabe como implementá-lo) o fazem principalmente para si mesmos, mantendo-se despreocupados com as necessidades dos pobres.
A imagem irreal que as pessoas possuem sobre casa ideal
Há um ponto que nós não discutimos ainda, e que pode sabotar a melhor intenção da habitação social humana. È a imagem que o potencial residente tem da “mais maravilhosa casa no mundo”. As pessoas carregam consigo imagens de desejo, freqüentemente o oposto do que eles realmente requerem.
A propaganda funciona convencendo as pessoas a consumirem o que elas não precisam, a gastarem seu dinheiro em coisas frívolas ou perniciosas, ao invés de comida saudável, medicina ou educação. Da mesma maneira, nossa cultura propaga imagens artificiais de casas “bonitas” na mente do pobre urbano, e mesmo no mais isolado dos moradores rurais. Quando um indivíduo migra para a cidade, ele/ela irá trabalhar para adquirir a casa que corresponde à imagem dos seus sonhos. Este é certamente o caso quando esta imagem choca-se com as tipologias das casas adaptativas.
Como arquitetos e urbanistas nós estamos constantemente competindo em um universo de imagens e idéias que são validadas por propriedades icônicas mais do que por qualquer outra contribuição a ambientes adaptativos vivos (Alexander, 2005; Salingaros, 2006). A percepção humana do espaço construído é governada por valores não declarados e sutilezas. É uma batalha frustrante, porque as pessoas são distraídas da consideração do que é bom ou saudável. A arquitetura vernácula maravilhosamente adaptativa é identificada com a herança da qual os pobres estão tentando escapar. Eles estão fugindo de seu passado com a sua miséria. As pessoas originárias do campo abandonam as tipologias tradicionais rurais: elas estão abandonando os símbolos do campo com todas as suas restrições e correndo para a cidade “libertadora”. Uma nova casa naquele estilo iria desencadear um profundo desapontamento. Prover casa humana, desta forma, entra em conflito com manter a “imagem de modernidade”.
Um morador do campo que se muda para a favela, ou alguém ali nascido, não deseja ver isto recuperado: ele/ela deseja desesperadamente se mudar, logo que for possível, para um apartamento de classe-média. A favela não representa a “imagem de modernidade” amplamente aceita, ao contrário, carrega um estigma social. Escapar da pobreza, na mente de um morador da favela significa escapar da geometria da favela. E esta idéia é reforçada pela dramática transformação na geometria que se vê nas casas da classe média. Residências de classe média tendem a ser monótonos complexos modernistas de apartamentos ou casas isoladas pseudo-tradicionais com gramado e cerca. Aquelas insípidas imagens de modernidade dominam o pensamento das pessoas pobres, que as ingerem de programas de televisão e outros meios de marketing.
Um novo projeto de habitação social que seja de sucesso em nossos termos, inevitavelmente assemelha-se às tipologias tradicionais urbanas e arquitetônicas locais, simplesmente porque estas se desenvolveram para ser as mais adaptáveis às necessidades humanas. Esta semelhança, no entanto, condena sua imagem como não progressista. Muitos residentes esperam ver suas novas casas construídas à “imagem da modernidade”, como elas são definidas pelas casas dos ricos e famosos em todo o mundo.
Casas e escritórios em estilo modernista high-tech são constantemente mostradas em filmes e na televisão junto a seus ricos residentes. Os pobres aspiram a este sonho. Por outro lado, os ricos aristocratas, que vivem e trabalham em mansões coloniais não são mais modelos para serem copiados, devido a suas associações com o passado pré-modernista e a ordem política conservadora. Isto é uma pena, pois as tipologias construtivas do século XIX contém muito da herança arquitetônica de um país, e oferece soluções adaptáveis que não tem nada a ver com qualquer ordem política ou social. (As pessoas esquecem que o estilo tecnocrático atual representa agora o domínio econômico global de uma elite poderosa).
Consideramos seriamente as aspirações das pessoas
Como foi notado anteriormente, acreditamos que o problema é, inescapavelmente, cultural em sua natureza. E parece para nós que o “x” da questão é valorização — como a comunidade valoriza suas opções e, então, toma suas decisões de acordo com elas. Ou, mais propriamente, se é a questão de um sistema verdadeiramente inteligente (isto é, que se auto-corrige e aprende) de tomar decisões coletivas que está funcionando. Então, nossa tarefa não é apenas oferecer escolhas, mas também oferecer um quadro (ou a escolha de um conjunto de quadros) que permita fazer aquelas escolhas ao longo do tempo.
Se os moradores escolhem “riqueza” como é definida em simples termos reduzidos pelos mercados monetários, então eles irão logicamente concluir que o caminho ótimo é arrasar o sítio e colocar ali um único edifício de apartamentos com um Big-Box-Mart ao lado. Se eles tem uma definição de longo-termo para “valor” — que inclua noções de “qualidade de vida” que sejam mais sutis, mas não menos vitais — então eles tem a base para acessar e modificar seu ambiente construído de uma maneira mais complexa, mais inter-relacionada e mais “orgânica”. Isto é o que uma cultura tradicional é e faz, por definição.
Esta simples noção de “riqueza”, nos termos reduzidos dos mercados monetários, não pode distinguir entre os sutis processos de vida. Por esta razão, ele não pode combinar os recursos de-cima-para-baixo, como as “instalações molhadas” (caixas de concreto contendo o banheiro e a cozinha com a pia) ou caminhões cheios de material de construção aparecendo nos limites do sítio, com recursos “de-baixo-para-cima” tais como pessoas trabalhando em suas próprias casas, economias locais de pequena escala, ou seguindo códigos geradores adaptáveis.
Combinar métodos de-cima-para-baixo com métodos de-baixo-para-cima é o “x” do problema, e irá requerer uma complexa abordagem integradora, ao invés de uma aplicação linear dos recursos e das soluções de variáveis-simples. Este é um problema complexo, com multi-variáveis de auto-organização e de complexidade organizada, e requer um conjunto de ferramentas diferente daquele que as pessoas estão acostumadas a usar.
Como, então, nós consideramos as aspirações das pessoas seriamente, sem necessariamente valorizar o que pode ser um desejo manipulado deles, um que encoraja a troca de um valor insubstituível de longo prazo por um perecível ganho de curto prazo? Como nós vimos, em um moderno contexto econômico, as culturas tradicionais são desafortunadamente muito vulneráveis a este tipo de troca desigual. Como conselheiros profissionais nós temos a responsabilidade de tomar seriamente suas aspirações, mas também de tomar seriamente suas necessidades de longo prazo, mesmo que eles não as estejam realmente considerando. Nós não devemos agir em seus lugares — isto seria arrogante — mas ter um tipo de conversação, onde nós, profissionais, apontaríamos as opções possíveis de uma maneira mais conectada e mais completa.
O que é óbvio para nós, não é necessariamente considerado positivo por uma ampla parte da população. Isso faria sentido e evitaria os perigos, se viesse a partir de um processo colaborativo que estivesse grandemente em mãos dos locais. Isto precisa ser a tradição vernácula deles. De outra maneira há o perigo real deste esforço aparecer como presunçoso e condescendente. Há aí um equilíbrio muito delicado entre o respeito pela cultura local, que é muito uma cultura da pobreza — o urbanismo do dia-a-dia, em certo sentido — e o reconhecimento das aspirações, mesmo dentro desta cultura (e nos indivíduos) por alguma coisa que eles imaginam ser melhor.
Com freqüência, as pessoas precisam aprender a apreciar o que eles realmente possuem (isto é, as capacidades, a riqueza e a beleza de suas adaptações culturais particulares às circunstâncias). Isto é ainda mais urgente porque nós estamos numa cultura global que é principalmente dedicada a dar às pessoas fome pelo que elas não têm. Nós estamos bem conscientes, por exemplo, da tendência das comunidades de baixa renda a defenderem o Big-Box-Marts. Se nós tentamos expor todos os problemas sérios causados pelo Big-Box-Marts como resultado da forma do prédio ou pelo modelo de negócios, as pessoas podem nos acusar de racismo: “Porque vocês não querem que a gente tenha o resto do que vocês já têm?”.
É uma coisa muito delicada quando se está trabalhando com pessoas na pobreza — como respeitar aquilo a que o respeito é devido e também reconhecer onde as coisas poderiam estar melhores, sem ofender? Isso requer um processo que irá utilizar a energia criativa e a auto-confiança da cultura local.
Tradução para Português: Lívia Salomão Piccinini.
Versão anterior deste artigo foi apresentada por NAS como uma palestra no Congresso Ibero-Americano de Habitação Social, Florianópolis, Brasil, 2006. Publicado em URBE: Revista Brasileira de Gestão Urbana, Vol. 3 No. 2 (Julho/Dezembro 2011), páginas 293-308.
Bibliografia
- Christopher Alexander (2001-2005) The Nature of Order: Books One to Four (Center for Environmental Structure, Berkeley, California).
- Nikos A. Salingaros (2006, 2014) A Theory of Architecture (Sustasis Press, Portland, Oregon).