No livro “Order Without Design”, Alain Bertaud menciona que indicadores são importantes na gestão urbana para que a cidade tenha uma visualização em tempo real do que está acontecendo com a cidade. Um indicador interessante relacionado à acessibilidade da moradia é o chamado “Price/Income Ratio”, ou “Razão Preço/Renda”. É, basicamente, a divisão entre o preço médio de um imóvel na cidade e a renda média de um morador. Ele é um indicador bastante genérico, não levando em consideração as diferenças entre imóveis, como a sua localização, nem aborda imóveis de aluguel (ainda uma minoria no Brasil), mas dá uma noção geral sobre a acessibilidade à moradia em uma cidade.
A acessibilidade à moradia no Brasil normalmente é medida pelo déficit habitacional, índice publicado normalmente pela Fundação João Pinheiro. No entanto, os números divulgados medem somente a quantidade de moradias que são precárias, que possuem coabitação, que enfrentam ônus excessivo de aluguel ou onde há adensamento excessivo. É difícil saber, olhando apenas para os números do déficit habitacional, o quanto uma cidade é mais ou menos cara para se morar em relação à outras, e a Razão Preço/Renda pode nos dar uma direção em relação a isso.
No livro, Bertaud cita a pesquisa da Demographia, que analisa a Razão Preço/Renda em 92 mercados habitacionais diferentes. Neste estudo podemos ver que este indicador pode mudar significativamente entre diferentes cidades. No gráfico abaixo, por exemplo, vemos dados de áreas metropolitanas com mais de 5 milhões de habitantes.
Uma série de fatores podem influenciar neste indicador. Cidades em crescimento populacional que possuem ora restrições geográficas, ora restrições artificiais à oferta de moradia em seu planejamento urbano tendem a ter uma Razão Preço/Renda mais elevada. No entanto, cidades em crises econômicas, que apresentam uma demanda inferior por espaço, tenderão a ter indicadores mais baixos. Infelizmente, o Demographia não cobre países em desenvolvimento dado que ainda possuem uma grande quantidade de imóveis (e de empregos) informais, onde as transações não são adequadamente registradas.
Mesmo assim, é interessante ter uma ideia da Razão Preço/Renda para as transações conhecidas em grandes cidades brasileiras, utilizando, ao menos, os dados existentes de renda e de preços médios de imóveis. A metodologia que utilizei aqui é bastante simples: utilizei os dados de renda por trabalhador do IBGE e o valor médio por metro quadrado publicado pela FIPE/ZAP. Na ausência de dados sobre o tamanho médio de imóvel em cada uma dessas cidades utilizei o mesmo valor de 80 m² — certamente muito impreciso, mas algo para começar. Talvez minha abordagem seja simplista, mas achei que seria interessante escrever a respeito para, eventualmente, ver esta análise evoluindo no Brasil a partir de acadêmicos e pesquisadores profissionais.
Os números são relevadores e, de certa forma, refletem o contexto de cada cidade, que pode indicar a validade do modelo. O Rio de Janeiro lidera a lista com uma Razão Preço/Renda de 14,89, o que talvez possa ser explicado pela severa restrição à expansão imobiliária na cidade, tanto geograficamente, como pela sua legislação: na Zona Sul, por exemplo, os limites de construção legais são inferiores aos praticados pelos prédios já construídos, tentando induzir uma oferta ainda menor que a existente. Fortaleza é a segunda colocada: a cidade teve um crescimento populacional relativamente alto e, entre as 11 cidades analisadas, tem a menor renda per capita, o que sinaliza um grande desafio de providenciar moradia a preços acessíveis na cidade. Já Brasília, apesar de ter a região do Plano Piloto congelado para novas unidades, dependendo de cidades satélites para expansão, provavelmente teve o indicador reduzido por ter disparado a mais alta renda per capita entre as cidades analisadas. Como já mencionei em artigo anterior, Goiânia é a cidade mais acessível da lista, provavelmente por ter uma das menores restrições à construção de nova oferta de moradia do país. Já Porto Alegre pode representar um caso à parte: apesar de ter alta renda per capita, encontra-se em uma das piores situações financeiras não apenas estaduais mas também municipais entre as capitais brasileiras e com o menor crescimento populacional entre as cidades listadas, sinalizando estagnação econômica. A capital gaúcha provavelmente fica com uma Razão Preço/Renda mais baixa devido à falta de atratividade do mercado, e não por ter ampla oferta à moradia.
Caso o indicador calculado aqui seja comparável ao estudo da Demographia, cidades brasileiras realmente apresentam um cenário preocupante na sua acessibilidade, dado que a Demographia considera acima de 5 “severamente inacessível” e “acessível” apenas abaixo de 3, valor que Atlanta, nos Estados Unidos, chega próximo de ter, com 3,1, mas que nenhuma destas grandes zonas metropolitanas analisadas possui. Nas notícias internacionais uma série de reportagens falam sobre os altos preços de moradia de cidades como Londres ou Nova York, mas não podemos esquecer que a renda per capita nessas cidades é de cinco ou seis vezes as cidades que analisamos aqui: acessibilidade à moradia é uma condição relativa à realidade de cada cidade.
Aqueles que tiverem interesse podem acessar a planilha de dados utilizada através deste link.
A renda utilizada nesta análise não foi a renda per capita, mas a renda por trabalhador, um valor superior.
Via Caos Planejado.