Os habitantes do planeta Terra passam quase 90% do tempo em espaços internos; aproximadamente 20 horas por dia em salas fechadas e 9 horas por dia em nossos próprios quartos. As configurações arquitetônicas desses espaços não são aleatórias, ou seja, foram projetadas ou pensadas por alguém, ou pelo menos um pouco "guiadas" pelas condições de seus habitantes e seus entornos. Alguns, com sorte, habitam espaços especialmente criados de acordo com suas necessidades e gostos, enquanto outros adaptam e se apropriam do design projetado para outra pessoa, talvez desenvolvido décadas antes de nascerem. Em ambos os casos, a qualidade de vida pode ser melhor ou pior, dependendo das decisões tomadas.
Entender a importância de projetar cuidadosamente nossos interiores, priorizando o acesso e o aproveitamento da luz natural, foi o objetivo do 8º Simpósio VELUX Daylight, realizado entre 9 e 10 de outubro de 2019 em Paris. Desta vez, mais de 600 pesquisadores e profissionais reafirmaram sua importância, apresentando uma série de ferramentas concretas que podem nos ajudar a quantificar e qualificar a luz, projetando sua entrada, gerenciamento e controle com maior profundidade e responsabilidade.
Luz natural para nutrir o espaço físico e impactar na vida das pessoas
Os arquitetos parecem concordar: hoje, mais do que nunca, é essencial que edifícios e residências incorporem luz natural e ar fresco como parte fundamental de suas condições ambientais. Sejam novos projetos ou transformações de edifícios existentes, a luz natural - adequadamente manipulada - pode proporcionar grande parte da qualidade de vida que a densidade das grandes cidades torna cada vez mais difícil de alcançar. Embora pareça óbvio, outras questões geralmente são priorizadas, principalmente quando os recursos ou o conhecimento técnico são escassos.
Nós, humanos, podemos passar 3 semanas sem comida, 3 dias sem água, mas apenas 3 minutos sem ar. E os problemas de saúde associados a um espaço não saudável (pouco iluminado, mal ventilado, barulhento, excessivamente frio ou quente) resultam em um gasto muito alto para as pessoas e, em maior escala, para os governos. Portanto, esse problema é mais complexo do que apenas 'adicionar janelas'. Seu arranjo não deve ser aleatório e o entendimento das condições ambientais deve ser profundo, fornecendo soluções específicas e de acordo com o espaço arquitetônico e suas funções.
Nesse sentido, Nicolas Michelin, fundador do escritório da ANMA, apresentou uma série de projetos nos quais a luz natural é usada a favor de seus ocupantes, associando-a a grandes espaços centrais para reuniões. No campus universitário da ARTEM, em Nancy, na França, por exemplo, os arquitetos projetaram uma galeria com ventilação natural de 700 m de comprimento coberta com vitrais.
Aqui, a luz é gerenciada e filtrada para criar um espaço coletivo singular: "A galeria é ao mesmo tempo um foco para a vida estudantil e um novo espaço público. Está destinada a se tornar um ponto focal essencial para a cidade, único em suas dimensões e qualidades espaciais", asseguram na descrição do projeto.
Uma operação semelhante foi desenvolvida pelos arquitetos do Cui Kai Studio no projeto do Pavilhão da China para a Exposição Internacional de Horticultura de Pequim 2019. Seu amplo espaço interior é coberto por uma estrutura de aço e vidro fotovoltaico, que absorve a energia do sol e também coleta e armazena água da chuva. Nesse caso, a luz solar não apenas nutre e ativa as funções do interior, mas também incorpora soluções sustentáveis de alto impacto para seus usuários e contexto.
Pesquisa e novas tecnologias: ferramentas para o projeto focado na luz natural
Realidade virtual, simuladores, softwares preditivos, mapas de saliência e sistemas de medição inovadores. Uma série de pesquisas e avanços recentes nos permitiram desenvolver novas metodologias para quantificar e qualificar a iluminação e as condições ambientais gerais de nossos projetos. E, embora cada lugar do mundo apresente um clima específico, estudos como o apresentado por Clotilde Pierson, Candidata a PhD na Universidade de Louvain (BE), garantem que pessoas de diferentes culturas não mostrem diferenças significativas em relação à percepção subjetiva da luz natural em interiores. A observação do comportamento humano, a aplicação das ferramentas de medição apropriadas e uma pitada de intuição podem resultar em contribuições valiosas para o projeto dos edifícios do futuro. Como pensar essa arquitetura baseada em luz natural?
Projeto moldado por condições ambientais
Em sua apresentação intitulada 'Can natural lighting shape architecture?' (A iluminação natural pode moldar a arquitetura?), os arquitetos da A2M, Aline Branders e Sebastian Moreno-Vacca, destacaram a importância do desenho moldado por 'fluxos' como energia, umidade e luz. Seu enfoque é responder a essas condições a partir da sensibilidade do projeto passivo, usando as ferramentas e tecnologias disponíveis para orientar empiricamente o processo:
"As novas ferramentas e softwares nos permitem reconhecer com precisão as implicações da envoltória do edifício assim que o primeiro esboço é criado. Nosso objetivo é projetar edifícios que não dependam de alta tecnologia e sistemas mecânicos para serem confortáveis, mas do design físico do próprio volume. Significa confiar nas capacidades físicas dos materiais (isolamento, massa, sombreamento, vidro) em vez da energia mecânica dos sistemas (aquecimento, resfriamento, luz artificial). "
Projeto focado na criação de espaços saudáveis
É claro: uma sala mal iluminada é um espaço perfeito para a incubação de micróbios. Segundo uma pesquisa liderada por Kevin Van Den Wymelenberg, PhD, da Universidade de Oregon (EUA), "comunidades microbianas são encontradas em cantos empoeirados de edifícios, pisos, paredes e no ar. A poeira interna inclui material partículas depositadas no ar, afetando sua qualidade e fornecendo a umidade e os nutrientes necessários para que as comunidades microbianas prosperem no interior ".
Para aumentar esse entendimento, Van Den Wymelenberg e sua equipe de pesquisadores desenvolveram espaços experimentais e controlados, replicando diferentes condições de temperatura, umidade relativa e exposição à luz do dia. Os resultados do estudo, após 90 dias, permitiram concluir que a luz solar inativa certos táxons em comunidades microbianas, reduzindo sua floração e propagação.
Projeto concebido a partir das necessidades das pessoas
Ofuscamento ou desconforto térmico, por exemplo, são condições que podem afetar a todos nós. E embora eles possam ser controlados por sistemas gerenciados pelo usuário, como persianas ou telas solares, há sistemas automatizados e responsivos que podem ser muito mais eficientes e precisos ao lidar com os níveis de sombra de um espaço interior.
Os mapas de obstrução apresentados por Andy McNeil, especialista em comportamento de fachada da Kinestral Technologies (EUA), permitem, por exemplo, verificar a posição do sol em tempo real e, assim, determinar o 'estado de sombra' de uma janela específica: " Esses mapas permitem que fachadas dinâmicas admitam a luz difusa do dia, quando uma janela fica na sombra por um longo período de tempo, melhorando o conforto de seus ocupantes ". Além disso, eles fornecem um registro visual das condições de luz de um edifício ao instalar o dispositivo.
No caso de pessoas com mobilidade reduzida, existem softwares que permitem identificar e classificar os possíveis riscos visuais em um espaço, ajudando-nos a projetar ambientes mais seguros e acessíveis em relação aos diferentes graus de iluminação e sombra. Por exemplo, em uma determinada hora do dia, a borda de um degrau pode passar despercebida por causa de uma luz de baixo contraste e causar acidentes. Situações como essas poderiam ser evitadas usando ferramentas preditivas, como o protótipo apresentado por Rob Shakespeare, designer de Iluminação da Universidade de Indiana (EUA) e membro do grupo Designing Visually Accessible Spaces (DeVAS).
Design baseado em eficiência e lucratividade
Vivian Loftness, professora da Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh (EUA), apontou em sua apresentação que "um certo grau de quantificação é essencial para os investidores optarem por soluções de luz natural de alta qualidade". A ideia é poder demonstrar com dados concretos as economias geradas pelas decisões de projeto, por exemplo, quantificando o número de anos em que o investimento realizado será recuperado, optando por uma solução específica. "Precisamos de sistemas que sejam desligados o maior tempo possível; prédios que 'surfem' por horas, dias, meses e estações", acrescentou.
Da mesma forma, a capacidade de garantir com precisão a quantidade de luz natural que os diferentes interiores de uma propriedade receberão pode ajudar a aumentar sua lucratividade. O estudo apresentado por Christoph Reinhart, chefe do programa MIT Construction Technology em Cambridge (EUA), o valor de um arrendamento em apartamentos bem iluminados em Manhattan, Nova Iorque, é em média 5% maior do que naqueles com pouca iluminação natural. No estudo, a métrica utilizada foi a autonomia espacial da luz do dia (Spatial Daylight Autonomy ou sDA), que descreve a 'porcentagem de área habitável' que recebe luz natural suficiente. Para ser considerado 'bem iluminado', um espaço deve receber pelo menos 300 lux por pelo menos 50% das horas em que é usado.
A importância da escuridão
A apresentação de Suzanne Deoux, doutora em medicina e professora da Universidad d'Angers (FR), nos recorda que os níveis de escuridão em um espaço interior são tão importantes quanto seus níveis de luz. A iluminação natural sincroniza nossos ritmos biológicos, e a escuridão, principalmente, é responsável pelo nosso corpo secretar melatonina, um hormônio que regula o ciclo do sono e da vigília. A contaminação luminosa e acústica noturna é potencialmente prejudicial à saúde das pessoas, afetando o desenvolvimento de doenças como câncer de mama, diabetes ou obesidade. Portanto, deve-se considerar ao projetar com a luz em mente, certificando-se de que as mesmas aberturas que permitem a entrada da luz do dia possam proporcionar a escuridão necessária, em quantidade e qualidade, para que o relógio interno funcione corretamente.
Passamos quase 90% do tempo em ambientes fechados, sempre será assim?
Essa porcentagem é repetida como um mantra. Climas cada vez mais extremos e cidades cada vez mais povoadas não sugerem uma imagem muito diferente. Enquanto isso, as maneiras pelas quais habitamos esses interiores compactos estão mudando gradualmente, impulsionando o desenvolvimento de tipologias abertas e coletivas, como as apresentadas por Carla Cammilla Hjort, cofundadora e diretora do SPACE10 (DK), com base em sua pesquisa chamada 'Como viveremos no ano de 2030?'
Um profundo entendimento da interação entre prédios, luz solar e condições ambientais naturais é essencial neste caminho, permitindo-nos guiar corretamente essas tendências e garantir, pelo menos, uma qualidade ambiental decente para os milhões de pessoas que continuarão a fazer de nossas arquiteturas, seus lares.
Confira as palestras completas, apresentadas no 8º Simpósio VELUX Daylight, nesta Playlist do Youtube.