Tóquio é uma cidade caótica, no sentido de não ter se desenvolvido a partir de um planejamento urbano coordenado para toda a cidade. No século 18, já tinha cerca de 1 milhão de habitantes, em uma configuração onde a maioria da população vivia em condições semelhantes às favelas brasileiras da atualidade. Os densos subúrbios de Tóquio lembram as periferias brasileiras, com construções baixas mas próximas umas das outras, em terrenos estreitos e com uma ampla diversidade de usos. Além disso, Tóquio apresenta uma multiplicidade de tipologias arquitetônicas, diferentes meios de transporte dividindo o mesmo espaço e, não diferente das cidades brasileiras, outdoors e fios elétricos aparentes destoando na paisagem urbana.
Mesmo assim, Tóquio apresenta um urbanismo de excelência, que mostra que, para atingir alta qualidade urbana, não é necessário uma uniformidade visual ou uma rígida regulamentação de usos enquanto se permite outros fatores que levam à vitalidade e diversidade urbana. Assim, tentamos identificar como podemos aprender com a maior cidade do mundo, inspirando nossas cidades a se tornarem mais acessíveis, humanas, dinâmicas e diversas de forma sustentável.
Espaços compartilhados
Espaços compartilhados seriam espaços que integram o espaço viário, colocando a calçada e a faixa de rolamento no mesmo nível e no mesmo calçamento, de forma a equalizar todas formas de locomoção. Também é comum em espaços compartilhados a eliminação de placas de trânsito que, ao longo do tempo, podem confundir mais do que ajudar. A faixa viária comum exige atenção e maior bom senso para todos, e é comum a redução de acidentes quando aplicados os espaços compartilhados.
Eles também são vistos como uma radical transformação do espaço público em cidades, e alguns urbanistas já argumentaram que não fariam sentido em grandes cidades. Londres seria um exemplo contrário, tendo implementado um espaço compartilhado na Exhibition Road.
Enquanto o mundo vê estes espaços como algo excepcional, no Japão os espaços compartilhados são a regra. Apenas em vias mais largas de trânsito rápido é possível ver uma diferenciação entre calçada e faixa de rolamento. As ruas internas, normalmente muito estreitas, tem apenas uma pintura para orientar o espaço dos pedestres que, na prática, não é respeitada de fato. Mesmo assim, as ruas japonesas são consideradas muito seguras, e é possível ver crianças andando sozinhas em diversas horas do dia.
Viadutos úteis
No Brasil, viadutos normalmente são grandes barreiras físicas que dividem as cidades. As estruturas dificultam a acessibilidade de pedestres no seu entorno e, assim, não apenas criam uma barreira aos modos de transporte de massa — que tem o acesso a pé desde a origem —, como também desvalorizam os imóveis ao seu redor. Por falta de atividades e, muitas vezes, de iluminação sob os viadutos, a passagem a pé acaba se tornando perigosa à noite, dada a falta de visibilidade desses locais. O caso do Minhocão, em São Paulo, é emblemático, e muitos continuam defendendo a derrubada da estrutura mesmo após a decisão de torná-lo um parque, com o argumento de que ele simplesmente destrói o espaço urbano debaixo dele.
Em Tóquio são raros os casos onde isso acontece, pois a parte inferior dos viadutos é quase sempre utilizada para pontos comerciais de todo tipo, ativando as áreas ao seu redor. Aliado a calçamento e iluminação, a presença dos viadutos se torna muito mais integrada ao ambiente urbano, e a experiência de passagem ao seu redor, em muitos casos, é quase idêntica à caminhada em uma rua normal repleta de atividades.
Atualmente a Prefeitura de São Paulo planeja fazer concessões para o uso da parte inferior dos viadutos na cidade. No entanto, as áreas deverão ser abertas, usadas principalmente como espaços públicos de lazer. A proposta é louvável, mas é difícil tornar atraentes estes espaços para este tipo de uso justamente por sua natureza menos iluminada debaixo da estrutura, e provavelmente São Paulo teria mais ganhos ao permitir o uso comercial normal, aproveitando o fato de que a cobertura já está construída pelo próprio viaduto. Se é comum vermos comércio informal debaixo de viadutos, porque não aproveitar esta demanda já percebida e regularizar estas atividades com espaços construídos de qualidade?
Terrenos pequenos
No Brasil, desde 1979 com a lei 6766, loteamentos só podem ter terrenos maiores que 125 m² e com, no mínimo, 5 metros de largura. Embora o intuito dessa lei seja aumentar o conforto dos moradores, estudos indicam que a legislação restringiu a oferta de terra para moradia de baixa renda. Ao exigir este tamanho mínimo, construções pequenas são restritas e, assim, as pequenas casas e pequenos comércios e serviços.
O modelo pouco restrito da urbanização de Tóquio levou a um resultado bem diferente. O tamanho médio dos terrenos é de 112 m² e terrenos abaixo de 100 m² são extremamente comuns. Devido à existência dos mini-kaihatsu, também são comuns os terrenos de 60 m².
Enquanto essas dimensões podem parecer pequenas, em Tóquio isso significou amplo acesso à moradia, além de ruelas extremamente caminháveis onde a continuidade de pequenas e variadas atividades em pequenos lotes tornam as ruas sempre vivas.
Zoneamento por “classes de incomodidade”
Diferente de muitas cidades do mundo, Tóquio nunca possuiu um zoneamento que dividisse explicitamente áreas comerciais de residenciais, gerando uma grande diversidade de atividades por toda a cidade. Embora existam zonas residenciais, o zoneamento é baseado por “classes de incomodidade” — a partir das externalidades de cada atividade — e, na grande maioria das zonas residenciais, usos comerciais de baixo impacto também são permitidos. Já em zonas comerciais ou industriais, por exemplo, muitas residências também são permitidas, dado que se trata de um índice de incomodidade considerado menor.
Tal diversidade de usos permite não apenas ruas vibrantes durante o dia todo mas também uma diminuição do deslocamento para exercer determinadas atividades, desde tarefas simples ao longo do dia, assim como a possibilidade de morar próximo ao trabalho.
Investimento em infraestrutura
Uma das características mais impressionantes de Tóquio, e do Japão como um todo, é a quantidade e qualidade da sua infraestrutura. Embora o investimento tenha sido feito de forma insustentável durante os anos 80, ele criou uma base sólida para a rápida urbanização e aumento de acessibilidade da população como um todo. Mesmo após os anos 90, a chamada “década perdida”, o país continuou investindo valores significativos em infraestrutura.
Tóquio possui uma das redes de metrô mais complexas do mundo, construída ao longo de quase um século. Até o início do século 20, grande parte da malha ferroviária era privada, o que desenvolveu os subúrbios da cidade em torno das linhas. No final do século 20 houve um novo processo de privatização, considerada um sucesso devido ao desenho do seu modelo, e bastante diferente do modelo usado no Reino Unido. Hoje existem diversas empresas atendendo a região metropolitana de Tóquio, com redes que se sobrepõem e, em muitos casos, concorrem umas com as outras de forma única no mundo.
As obras de infraestrutura não se limitam à rede ferroviária, que já é impressionante. A cidade é exemplo global nos projetos de Land Readjustment, que visam melhorar a eficiência da infraestrutura dos espaços públicos. Em uma metrópole dessa magnitude, também foi executado um dos maiores projetos de drenagem urbana do mundo, investindo 2 bilhões de dólares ao longo de treze anos e contando com uma “catedral subterrânea” para acúmulo de águas em casos extremos.
Recuos focados no espaço público
Maioria das cidades brasileiras exigem atualmente que as edificações sejam recuadas das suas divisas, tanto laterais quanto de frente e de fundos. As prerrogativas para isso são várias, mas é possível dizer que uma das maiores é a tentativa de garantir ventilação e insolação adequada no interior das edificações que, como sabemos, nem sempre se confirma. Recuos muitas vezes acabam inviabilizando o uso do terreno e diminuindo a caminhabilidade das ruas, além de gerar uma série de situações onde os apartamentos abrem diretamente para a janela dos vizinhos, situações onde os recuos não são amplos o suficiente para garantir as qualidades almejadas e prejudicando a privacidade dos moradores.
Em Tóquio a grande preocupação do planejamento urbano não é o interior dos apartamentos, que tem soluções diferentes dependendo da situação específica de cada terreno e empreendimento. Os limites de altura e de recuos são exigidos traçando uma linha diagonal do eixo das vias, de forma a preservar a incidência de luz solar nos espaços públicos. A qualidade dos ambientes dos terrenos privados não seria, assim, responsabilidade do setor público mas sim dos proprietários e empreendedores dos terrenos privados.
Do ponto de vista da gestão urbana municipal, este critério está mais alinhado à função principal do urbanista, pensando no espaço público e não no espaço privado que, por sua vez, já teria um arquiteto responsável.
Atendimento à demanda por moradia
Um dos principais desafios das cidades brasileiros é o atendimento à demanda por moradia. Temos mais de 11 milhões de brasileiros morando em favelas e, com raras exceções, grandes cidades não tem conseguido suprir o déficit habitacional. Programas habitacionais desde os tempos do BNH ao Minha Casa, Minha Vida, ora não conseguem produzir unidades suficientes ora, quando conseguem, atendem uma demanda meramente quantitativa mas não qualitativa: conjuntos habitacionais normalmente são pouco integrados ao ambiente urbano, de uso monofuncional e com pouco acesso a serviços públicos, e frequentemente se transformam em guetos de violência e segregação.
O sistema de subsídio público à moradia em Tóquio é relativamente pequeno e não pretende resolver, por si só, o déficit habitacional. A metrópole japonesa possui somente cerca de 200.000 unidades públicas de moradia. Comparativamente, em um período de apenas dez anos, o Minha Casa, Minha Vida construiu quase o dobro de todas as unidades públicas de moradia do Japão. Também não é esperado que estes moradores continuem nas unidades durante toda sua vida, mas que sirva de um auxílio financeiro durante um período difícil, limitado entre 5 e 10 anos.
O que faz, então, com que Tóquio seja uma das grandes cidades de países desenvolvidos com maior acessibilidade à moradia? Tóquio permite que o mercado habitacional atenda quantitativamente e qualitativamente a demanda por unidades de todos os tipos. Segundo matéria da Next City, “entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1970, o Japão construiu mais de 11 milhões de unidades habitacionais, aumentando o estoque de moradia em surpreendentes 65%. Corporações privadas e entidades públicas providenciaram apenas uma pequena parte disso — a grande maioria foi criada a partir de residências unifamiliares ocupadas pelo proprietário e ‘pequenas unidades para aluguel construídas e operadas por partes privadas’.”
Conforme artigo recente de Robin Harding no Financial Times, Tóquio teve 142.417 lançamentos no ano de 2014, comparado com 137.010 de toda a Inglaterra, que possui uma população mais que o triplo de Tóquio. Como comparativo, Nova York, embora metade do tamanho de Tóquio, aprova apenas cerca de 20.000 unidades por ano, e São Paulo uma média histórica de 30.000 unidades por ano.
Além disso, Tóquio historicamente teve padrões mínimos construtivos extremamente baixos, desde o tamanho dos seus terrenos até a qualidade da moradia em si. Por muito tempo a cidade era uma grande favela, regulando os padrões construtivos principalmente para evitar incêndios, mas não para determinar um padrão de consumo mínimo para uma população que ainda era muito pobre e que sofreu diversas vezes com a destruição da cidade. Era pouco realista aumentar os padrões mínimos construtivos em uma sociedade abalada pela pobreza e por destruições em massa causadas por terremotos e guerras. Diferente das cidades brasileiras, apesar de ter passado por uma série de desastres, Tóquio não contou com iniciativas públicas de destruição de cortiços ou de moradias populares. O que melhorou as condições construtivas japonesas ao longo do tempo foi o enriquecimento da população que, gradualmente, investiu na melhoria das edificações de forma espontânea.
Via Caos Planejado.