Na era moderna, seja na teoria ou na prática, a ideia de separação espacial entre casa e trabalho estava relacionada à divisão sexual tradicional de homens e mulheres e ao seu papel na vida cotidiana. Com base nos primeiros pensamentos feministas na arquitetura, este artigo discorre sobre a mudança do papel das mulheres no século XX e seu impacto no espaço construído.
Tudo começou quando as mulheres entraram no ambiente de trabalho.
Em seu artigo “Como seria uma cidade não sexista? As especulações sobre habitação, design urbano e trabalho humano", publicado nos anos 80, Dolores Hayden aborda a noção de que "o lugar da mulher é em casa". Esse princípio implícito do projeto arquitetônico e do planejamento urbano dominou os Estados Unidos no último século. Com as mulheres passando a fazer parte da força de trabalho remunerada, essa noção forçosamente se adaptou.
Para Hayden, e para todas as mulheres em geral, era crucial desenvolver um “novo paradigma de lar, bairro e cidade; começar a descrever o desenho físico, social e econômico de um assentamento humano que visa apoiar, em vez de restringir, as atividades das mulheres trabalhadoras e de suas famílias”. Com efeito, era hora de reorganizar as experiências domésticas e profissionais.
Em tempos anteriores, após trabalhar o dia inteiro em uma fábrica ou escritório, em uma cidade industrial, a figura masculina voltava para sua serena casa suburbana, mantida por sua esposa. Essa ideia de casa dos sonhos era na verdade "um estímulo ao trabalho remunerado masculino e um contenedor para o trabalho feminino não remunerado". Quando as mulheres entraram no ambiente de trabalho, surgiram questões sobre a servidão do lar convencional. Naquela época, qualquer que fosse o tipo de casa, ela era sempre organizada em torno do mesmo conjunto de espaços: cozinha, sala de jantar, sala de estar, quartos, garagem, exigindo, basicamente, alguém responsável por "cozinhar, limpar e cuidar das crianças".
Chegara a hora da mudança.
As mulheres, por natureza, estão muito ligadas à conexão entre diferentes atividades e os espaços que as sustentam, diz Karen A. Franck em seu ensaio "Uma abordagem feminista à arquitetura", de 1989. Assumindo diferentes formas, esse conceito pode ter muitas interpretações projetuais, conectando as pessoas que utilizam esses lugares: espaços sobrepostos e interdependentes, redução das distâncias entre atividades e domínios públicos e privados, conexões espaciais e visuais mais próximas, uso misto, flexibilidade etc.
As primeiras noções de espaços comunitários compartilhados não comerciais ou creches comunais começaram a surgir. Embora condenadas pela lei em áreas residenciais tradicionais, as mulheres buscavam moradia, emprego e assistência infantil simultaneamente, em um ambiente eficiente que pudesse unir todas as três necessidades. Uma primeira solução veio da Escandinávia, no início do século XX, com a introdução de instalações habitacionais chamadas casas de serviço ou casas coletivas, fornecendo creches e alimentos cozidos, além de casas para mulheres empregadas e suas famílias. Esta solução orientada para o projeto visava "substituir o" trabalho feminino "anteriormente privado realizado em casa”.
Mais tarde, na década de 70 na Alemanha, começaram a surgir moradias públicas com serviços de apoio, integrando diferentes tipos de pessoas em novos tipos de residências e complexos habitacionais. A casa monoparental foi desenvolvida, projetada para facilitar o compartilhamento do serviço de babás, com uma creche aberta para os moradores do bairro e áreas de recreação infantil integradas. A reabilitação de moradias existentes estava se tornando mais desejável, com unidades únicas convertidas em várias unidades, garagens particulares e depósitos convertidas em espaços comunitários.
“Abordar a divisão convencional entre espaço público e privado era uma prioridade feminista na década de 1980”. A noção de estritamente privado ou estritamente público estava desaparecendo, os paradigmas de planejamento urbano estavam ruindo e os blocos foram reorganizados. Era necessária uma zona de atividade maior, com todas essas novas atividades sociais e espaços verdes ao ar livre. Surgia a noção de vida comunitária de bairro.
Embora a maioria das mulheres empregadas não estivesse interessada em viver em famílias comunitárias, elas precisavam de serviços comunitários para atender as necessidades de seus lares. A ideia era manter unidades de habitação e jardins privados e acrescentar a eles esses novos espaços coletivos.
Essas primeiras tentativas de lidar com a divisão sexual e espacial dos lares e locais de trabalho abriram caminho para outras grandes reformas, não apenas para as mulheres, mas para todos que vivem as cidades. “Residências, bairros e cidades projetadas para mulheres 'do lar' restringem as mulheres física, social e economicamente”, afirma Hayden. Se arquitetos e urbanistas reconhecessem todas as mulheres empregadas e suas famílias como parte fundamental do planejamento e projeto, como seriam os nossos bairros, casas e cidades?
"Construímos o que sabemos, e essas construções são profundamente influenciadas por nossas experiências iniciais e pela natureza de nosso relacionamento com o mundo", diz Karen A. Franck. Com efeito, as mulheres têm experiências diferentes, e talvez esteja na hora de deixá-las criar seu ambiente construído.
Nota do Editor: Este artigo foi publicado originalmente em 09 de março de 2020.