Pandemia de coronavírus e a automatização completa das cidades

A medida que a pandemia de coronavírus continua a se espalhar rapidamente pelos quatro cantos do planeta, levantando uma série de questionamentos e perguntas ainda sem respostas, a única resolução possível para este momento para a maioria dos países afetados (e até agora a nossa mais eficaz arma para combater a disseminação do vírus), foi a implementação de medidas de quarentena à população. O isolamento social serve para evitar a circulação do inimigo invisível, minimizando as possibilidades de contágio. Como resultado de tais medidas restritivas, espaços públicos e privados foram fechados, muitas vezes, por tempo indeterminado. Tais medidas, recebidas inicialmente com certo ceticismo e depois com certa resignação, não apenas têm se mostrado bastante eficientes na diminuição de novos contágios e consequentemente das mortes, mas também provocaram um alvoroço no cenário econômico mundial, levantando uma pergunta com duas conotações bem diversas: e agora? o que vamos fazer? Enquanto alguns se perguntam como seguir trabalhando neste momento de contenção, milhões de pessoas se perguntam se terão o que comer no dia seguinte.

No universo dos trabalhadores formais, estamos testemunhando uma massiva migração para o “home office”, o que desde já nos faz questionar qualquer prognóstico sobre o futuro do transporte público e da mobilidade urbana. Muitas pessoas se surpreenderam com o efeito positivo das restrições impostas na circulação de pessoas e mercadorias, provocando uma substancial diminuição da poluição nas grandes cidades do mundo todo. A considerável economia de tempo em deslocamento, agora que estes trabalhadores não precisam mais sair de casa para ir ao trabalho, também foi recebida com muito entusiasmo – finalmente eles podem ler aquele livro que tanto queriam, navegar pelos acervos digitalizados dos museus ou assistir aos melhores documentários de arquitetura. Algo semelhante vem acontecendo no contexto acadêmico, a transição forçada para o ambiente virtual está fazendo tanto alunos quanto professores refletirem sobre as vantagens e desvantagens do sistema presencial - questionando principalmente o acesso público à educação, e como um sistema não presencial poderia colaborar com a diminuição dos custo com infraestrutura. As empresas que já operam apenas no âmbito digital também devem estar aproveitando este momento para refletir - robôs e drones nunca fizeram tanto sentido como agora.

Ao passo que a maioria dos trabalhadores formais foram convidados a ir para casa e trabalhar remotamente pelas próximas semanas – que poderiam ser meses–, a maioria dos trabalhadores, neste caso informais, não podem se dar esse luxo, se é que eles continuarão tendo “trabalho”, que neste caso, significa “renda”. Operários e motoristas, entre muitos outros trabalhadores informais não possuem o mesmo privilégio, sendo que para a maioria deles, deixar de trabalhar significa não ter o que pôr na mesa. Este é um problema explicado de forma muito esclarecedora por Martín Caparrós em seu livro El Hambre: “todos nós conhecemos a fome, estamos acostumados a ela, sentimos fome duas, três vezes ao dia. Não há nada mais frequente, mais tangível em nossas vidas que a sensação de fome e, ao mesmo tempo, para muitos de nós, nada mais intangível que a verdadeira sensação de estar faminto.”

Neste contexto, ou em situações de subemprego e informalidade, a realidade é muito menos aprazível. Na prática, não são livros nem flores que os trabalhadores informais encontram em casa, apenas incertezas e inseguranças. Uma crise já anunciada, antecipada durante o último Fórum Econômico Mundial, o qual estimava alguns anos atrás que entre 2015 e 2020 mais de 7 milhões de postos de trabalho seriam extintos a medida que a “inteligência artificial, a robótica, a nanotecnologia e outros fatores socioeconômicos permitissem dispensar o uso da força humana em certos frentes de trabalho.” Ou seja, esta crise sanitária só está acelerando um processo que já estava em andamento, e que a maioria das pessoas – principalmente nossos governantes – não estavam dispostas a encarar de frente.

Uma das mais devastadoras pandemias na história humanidade, a peste bubônica, foi responsável pela morte de até um terço da população da Eurasia ao longo do século XIV, provocando uma repentina escassez de mão de obra. Para muitos historiadores, a peste negra foi um dos principais indutores das inovações que posteriormente culminariam com a chegada do Renacimento e tudo aquilo que ele trouxe consigo. A revolução provocada pela invenção da prensa móvel por Gutemberg provocou uma profunda transformação na maneira como circulavam as informações, e consequentemente, como as pessoas se relacionavam umas com as outras. Paralelamente, em contraposição à cidade medieval, iniciou-se a busca pela cidade ideal, ou configurações urbanas que favorecessem a ventilação e a iluminação natural finalmente resultando em estruturas urbanas mais higiênicas. No início do século XIX, em resposta à disseminação da Tuberculose na cidade de Paris, desenvolveu-se o chamado movimiento higienista, ao ponto de definir critérios específicos para garantir a otimização da ventilação e iluminação natural dos ambientes fechados. Muito daquilo que conhecemos por arquitetura e urbanismo hoje, nasceu em resposta as maiores crises sanitárias que aterrorizaram o mundo no passado. Muitos dos critérios e regras especificas que temos que lidar todos os dias em nossa prática profissional de arquiteto e urbanista chegaram por este mesmo caminho e são testemunhas destas crises que já passamos, das que estamos passando e daquelas que ainda vamos passar.

A preocupação que deriva do estimado crescimento exponencial da população mundial ao longo das próximas décadas não é assunto menos importante – especialmente em como isso afetará as relações de trabalho e de mobilidade urbana em nossas cidades. Digno de nota é a pertinência do tema da Bienal de Veneza deste ano “Como viviremos juntos?”, recentemente adiada pela pandemia de coronavírus. Não seremos apenas dez bilhões de habitantes no planeta Terra em 2050, seremos quase dez bilhões de pessoas vivendo em cidades. Como o risco de novas pandemias seguirá existindo, a questão é: qual a lição que devemos aprender com a atual crise sanitária mundial e como devemos nos preparar para enfrentar os desafios futuros na “era” da informação e da automação?

Novas tecnologias, novos materiais e inovações na indústria da construção civil estão cada dia mais acessíveis, redefinindo as relações de trabalho e a maneira como se faz arquitetura. Arquivos open source para baixar, imprimir e construir os seus próprios móveis. Robôs de alvenaria que estão transformando a indústria da construção civil. A consolidação da era de ouro da impressão 3D. Estaríamos realmente a só um passo do canteiro de obras sem operários?

O professor e escritor israelense Yuval Noah Harari faz uma pergunta muito pertinente em seu livro Sapiens: Uma breve história da humanidade, publicado em 2011, indagando se somos mais felizes agora do que éramos antes da revolução agrícola dos séculos XVIII e XIX – que culminou com a revolução científica e industrial – ou se caímos em uma armadilha. “A revolução agrícola não foi planejada assim como ninguém questionou a nossa dependência do cultivo de cereais. Uma série de pequenas decisões, tomadas para obter um pouco mais de segurança, foram se acumulando até o momento em que os antigos caçadores-colhedores passaram apenas a carregar seus arados sob um sol de justiça”. Chegou o momento de ponderar as coisas, de pensar onde estamos gastando a nossa energia, de repensar o que estamos fazendo e o que é que nos faz mais felizes – ou que poderia fazer um número maior de pessoas felizes – e então, construir cidades que apresentem soluções para nossos problemas.

Neste meio tempo, enquanto a gente não se decide como pensar nossas cidades, uma pandemia está nos mostrando como devemos lidar com elas.

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Sobre este autor
Cita: Dejtiar, Fabian. "Pandemia de coronavírus e a automatização completa das cidades" [¿Una pandemia acelera la digitalización y automatización en las ciudades?] 25 Mar 2020. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/936058/pandemia-de-coronavirus-e-a-automatizacao-completa-das-cidades> ISSN 0719-8906

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