A pandemia global provocada pelo coronavírus tem demandado ações emergenciais para salvar vidas que, por sua vez, demandam medidas complementares para preservar empregos e renda, especialmente da parcela mais vulnerável da população. No campo da arquitetura e do urbanismo não é diferente: a precarização de parte significativa dos profissionais se agrava em função da imposição do isolamento social como medida absolutamente essencial para enfrentar a pandemia. Sem reservas para garantir condições mínimas de sobrevivência, muitas arquitetas e arquitetos estão sem alternativas. Medidas emergenciais, como a renda básica, em discussão no Congresso, são urgentes. Acertadamente focam em pessoas de baixa renda, mas ações adicionais são necessárias, dada a dimensão da crise.
Diante desse contexto, apresentamos uma proposta de Plano de Emergência para o Campo da Arquitetura. O plano tem duas metas. A primeira é melhorar a qualidade da habitação da população de baixa renda que não tem acesso à arquitetura de qualidade ̶ condição que favorece a transmissão de doenças, como as causadas pelo Covid-19. Para isso, defendemos a promoção da ATHIS (Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social) para a melhoria das condições de mais de vinte mil casas, com impacto direto na saúde de ao menos 72 mil brasileiros. Por meio de um amplo debate público, pode-se incorporar outras ações ao plano, tais como o desenvolvimento de projetos emergenciais para transformar equipamentos ociosos em hospitais ou abrigos temporários.
A segunda meta do plano é gerar um ciclo virtuoso de reativação da economia com impacto positivo no setor da arquitetura e construção. Por meio de editais do Conselho de Arquitetura e Urbanismo, é possível desenvolver, com início imediato, mais de vinte mil projetos de habitação de interesse social, gerando renda de R$ 100 milhões (R$ 4.500,00 por projeto) para os profissionais de arquitetura. Os projetos podem ser selecionados por meio de editais emergenciais do CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo), com recursos de parte de suas reservas. Terminada a quarentena, o poder público investiria então R$ 570 milhões em obras emergenciais para gerar cerca de 22 mil empregos (7 mil formais e 15 mil informais, diretos e indiretos). Tal cenário beneficiaria cerca de 23 mil domicílios em situação precária, especialmente os habitados por populações consideradas de risco. Municípios, Estados ou União financiariam as intervenções de emergência.
Propomos um Plano de Emergência para o Campo de Arquitetura com quatro ações:
1. Financiamento de projetos de habitação de interesse social via edital emergencial com recursos do superávit do CAU de 2020
O superávit médio anual do CAU-SP entre 2012 e 2019, sem correção da inflação, foi de R$ 9 milhões. Mesmo diante da previsão da redução de receitas provenientes da emissão de registros de responsabilidade técnica (que correspondem a 50% das receitas do CAU-SP), haverá também redução das despesas com diárias, deslocamentos e serviços prestados por pessoas jurídicas ao Conselho. É importante ressaltar que mesmo nos anos em que a crise econômica foi mais severa, 2015 e 2016, houve significativo superávit (ver gráfico abaixo).
Assim como o CAU-SP, o CAU-BR e alguns CAUs-UF também têm historicamente apresentado superávits anuais, recursos que poderiam ser mobilizados ̶ ao menos em parte ̶ neste momento de crise. Acreditamos que a somatória do superávit do CAU, excluído o CAU-SP, represente um valor estimado de R$ 5 milhões.
Propomos, portanto, que R$ 14 milhões da arrecadação do CAU ̶ recursos que não serão investidos em 2020 - sejam destinados para o financiamento de projetos de ATHIS.
2. Financiamento de projetos de habitação de interesse social via edital emergencial com recursos imobilizados do CAU
Os recursos remanescentes do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de cada ano são reservados apenas para investimentos em patrimônio. Uma regra específica ampliou a possibilidade de aplicação de 25% desses recursos em projetos especiais. Diante da atual crise, propomos a alteração dessa regra, apenas neste ano, para que 60% dos recursos disponíveis possam ser utilizados. Com isso, estimamos que se poderia investir cerca de R$ 104 milhões em projetos especiais. Considerando um valor médio de R$ 4.500,00 para cada projeto, seria possível contratar vinte mil projetos. No caso de ATHIS, os recursos ficariam disponíveis imediatamente, em três parcelas mensais. No entanto, em função do período de quarentena, o prazo de entrega dos produtos deve ser estendido até o fim do ano.
3. Cadastro da demanda prioritária via convênio com municípios e estados
Paralelamente às duas ações descritas acima, propomos que seja feita uma chamada para que municípios e estados cadastrem suas demandas prioritárias (habitações precárias em áreas de vulnerabilidade, especialmente aquelas cujos moradores sejam considerados de risco). Experiências de convênio similares já existem, de forma que basta replicar os procedimentos para atingir a meta inicial de vinte mil atendimentos.
4. Financiamento das reformas via Governo Federal
Com os projetos especiais desenvolvidos para atendimento de demandas prioritárias, como reforma de habitações precárias (ATHIS) e abrigos emergenciais de pessoas em situação de risco, será necessário então garantir os recursos para as obras. Para tanto, considerando o valor médio de R$ 25.000,00 por unidade de ATHIS (resguardadas as variações e diferenciação de custos regionais), o Governo Federal deveria aportar cerca de R$ 570 milhões. Empresas de menor porte da construção civil em situação de recuperação econômica seriam priorizadas.
Para implementar essas quatro ações, acreditamos que o planejamento e a gestão do plano devem ser responsabilidade dos CEAUs (Colegiado das Entidades de Arquitetura e Urbanismo), composto por entidades de arquitetura e urbanismo brasileiras, organizadas nacionalmente e regionalmente.
Diante da crise, reconhecemos a relevância da decisão tomada pelo CAU de adiar o prazo para o recebimento das anuidades devidas em 2020. Entretanto, acreditamos que o CAU tem capacidade para implementar outras importantes ações com o objetivo de minimizar os impactos negativos da crise do Covid-19 sobre a classe de arquitetos urbanistas, como já sinalizou. Com isso, o Conselho estaria ao mesmo tempo colaborando para enfrentar a questão habitacional no país, com efeitos positivos para saúde pública também no médio e longo prazo. Esperamos o mesmo esforço solidário dos demais atores dos quais esta proposta depende: os municípios, organizando a demanda prioritária e aportando recursos, quando possível; o Governo Federal, no financiamento das obras; e, por fim, a sociedade civil, na formulação e acompanhamento de propostas.
Convidamos as entidades de arquitetura e urbanismo, os profissionais da área e demais interessados a debater publicamente em caráter de urgência.
Autores
- Fernando Túlio, arquiteto urbanista, mestre em gestão e políticas públicas pela EAESP-FGV e doutorando em planejamento urbano e regional pela FAU-USP. É presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil - São Paulo;
- Gabriela de Matos, arquiteta e urbanista e especialista em sustentabilidade e gestão do ambiente construído pela UFMG. É fundadora do projeto Arquitetas Negras. Pesquisa o racismo estrutural e suas influências no planejamento urbano, e arquitetura contemporânea produzida em África e sua diáspora. É vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil - São Paulo;
- Hannah Machado, arquiteta urbanista pela FAU-USP e mestre em gestão e políticas públicas pela EAESP-FGV. É segunda vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil - São Paulo.
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