A pandemia do COVID-19 caracteriza-se pela abrangência territorial de seu contágio. Não se trata de uma epidemia restrita a um local específico. O contágio ocorre por meio de uma rápida proliferação que se aproveita do mundo urbanizado em que vivemos. O vírus espalha-se pelas aglomerações nos espaços públicos e nos equipamentos privados de serviços, pelos terminais e estações de transporte, pelos assentamentos precários sem saneamento e, em última instância, pelo intenso fluxo nacional e internacional de pessoas e mercadorias que ocorre na rede de cidades que caracteriza o mundo urbano. A rede de aeroportos foi a grande entrada do vírus pelo mundo. Mas, a rede de trabalhadores informais que percorre as ruas da cidade entregando mercadorias em meio à pandemia e que não deixa o comércio parar parece ser uma das faces mais frágeis desse risco. Mas, se a vida urbana facilitou o contágio, alguns padrões de urbanização também podem ajudar a combatê-lo.
Estratégias territoriais de combate a doenças
A proliferação de doenças já foi motivo de reformas urbanas. A partir das experiências sanitaristas, no início do século XX no Brasil, ocorreu uma regulação do espaço urbano pelos princípios da higiene pública. Orientadas pelos saberes médicos, os equipamentos hospitalares e os cemitérios foram transferidos para os pontos altos da cidade no objetivo de minimizarem as possibilidades de contaminação pelos casos em tratamento, já que se acreditava que a nova implantação proporcionaria maior circulação de ar nos ambientes, conforme as ideias predominantes naquele período. As teorias sanitárias tornaram-se fundamentais para estruturar alguns trechos das cidades orientando os traçados urbanos e a implantação de edifícios de saúde pelo princípio da circulação e do afastamento dos fluidos, cujo maior exemplo foi a reforma da cidade de Santos projetada pelo engenheiro Saturnino de Brito (1905) que buscou resolver o problema de saneamento com um projeto urbanístico.
A evolução tecnológica e os avanços do conhecimento científico para os tratamentos de saúde possibilitaram certa autonomia dos hospitais em relação à topografia e sua implantação pôde ocorrer de forma desimpedida e mais vinculada com os sistemas de circulação. Esse avanço permitiu a implantação de redes hospitalares regionais, como ocorre no Estado de São Paulo, correspondendo à descentralização do tratamento e a aproximação desses tratamentos ao cidadão que mora longe das metrópoles. Uma dezena de polos urbanos espalhados pelo estado concentra hospitais regionais de diferentes especialidades. Condição que permite, por exemplo, ao governo estadual utilizar essa rede hospitalar interiorizada para combater a pandemia. As principais especialidades ainda se concentram na capital paulista, em quantidade e qualidade, mas o estado mantém um importante sistema de atendimento regionalizado. E é essa estratégia que pode ser potencializada aproveitando-se de um padrão polarizado de urbanização capaz de capilarizar o atendimento para além dos centros altamente especializados. Mais do que nunca a saúde pública, o Estado e as estratégias territoriais são fundamentais para o sucesso das ações.
A experiência da vizinhança hospitalar
Nesse contexto, contudo fica evidente um velho problema que reside numa relação pouco equacionada entre o hospital e a cidade. Não é só a falta de leito que, por si só, representa a maior gravidade na emergência do assunto e que exige a construção imediata de hospitais de campanha. Iniciativas que, diga-se, são louváveis e tem exigido das equipes técnicas esforços que devem ser reconhecidos. Mas, importa olharmos para o contexto urbano nos quais estão inseridos os hospitais existentes, sobretudo os regionais.
Esses hospitais atraem vários tipos de aglomerações, algumas delas insalubres que se instalam ao seu redor que vão desde o comércio informal de roupas e alimentos que ocorre na rua; a pensões e quartos de aluguéis pouco propícios aos pacientes e seus acompanhantes. Esses ambientes colaboram na dissipação de doenças e em nada contribuem para o tratamento. E seus serviços não são interrompidos no período das crises de saúde porque são parte vital desse processo.
A experiência que o Hospital de Amor (conhecido como Hospital do Câncer) realizou junto do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP (IAU-USP), na cidade de Barretos-SP, apontou soluções para a vizinhança do hospital levando em consideração a transformação do espaço público e da regulação do solo a partir das demandas específicas geradas pelo hospital.
A proposta partiu de um problema local: a concentração, a circulação e a permanência de 172 mil pessoas/ano num bairro de cidade média que não foi planejado para essa finalidade. A partir desse contexto, o projeto estruturou-se por um sistema de corredores verdes e um sistema de praças, ambos integrados por uma marquise urbana que irradia de uma praça central localizada em frente ao Hospital e destinada aos modais de mobilidade. Essa marquise conecta-se com os principais equipamentos, pousadas, comércios e áreas livres conferindo ao pedestre mais conforto no acesso aos espaços públicos e privados. A proposta une plano urbanístico e desenho urbano pela articulação da escala regional à escala urbana. E se desenvolveu a partir dos principais equipamentos do seu entorno, das ocupações de classe média e baixa, dos vazios urbanos, dos espaços livres e dos cursos d´água existentes.
As escalas do projeto
Sistema de corredores verdes
Às áreas vazias e de expansão urbana localizadas ao redor do Hospital foram propostas diretrizes para o parcelamento do solo incluindo áreas de preservação ambiental ao redor dos cursos d´água existentes. Esse sistema de áreas verdes deve contribuir, a curto prazo, com a renovação do ciclo hidrológico e a qualificação das bacias hidrográficas dos rios Pardo e Grande que são importantes rios do Estado de São Paulo. Em médio e longo prazo, o sistema de áreas verdes deve contribuir com a melhora das condições climáticas pelo combate ao aumento da temperatura e pela melhora das condições de conforto urbano. A previsão é de constituir vias arborizadas e parques urbanos nesses corredores como, por exemplo, o uso da área verde lindeira ao Hospital como parque municipal integrado com as habitações sociais por espaços de lazer.
Sistema de praças
O sistema de praças é formado por praças com diferentes funções públicas com o objetivo central de inclusão social: praça central, localizada em frente ao hospital, recepciona os visitantes e a partir dela é possível acessar o transporte público para toda a cidade; mini-praças; diluídas na vizinhança hospitalar, são formadas pelos alargamentos de calçadas para uso de lazer; praças lineares formadas por vias compartilhadas nas ruas Ranulfo Prata e Ébano, nos limites do hospital, valorizam as permanências junto das atividades comerciais; a praça Nossa Senhora do Guadalupe, existente, recebeu novo programa de atividades culturais integradas às necessidades dos moradores do seu entorno; e a praça coberta, destinada à relocação do camelódromo que se instalou nos arredores do hospital.
Marquise urbana
A marquise urbana, elemento central do projeto, integra os dois sistemas (de corredores verdes e de praças) e proporciona sombra e proteção a um percurso de pedestre integrado com todos os principais equipamentos públicos e privados do entorno. Conecta-se diretamente ao hospital e tem uma função simbólica de demarcar a paisagem urbana. Ao longo desse percurso foram adotadas soluções de acessibilidade universal para garantir segurança aos pedestres.
O projeto, realizado pelo Grupo PExURB (Práticas de Pesquisa, Ensino e Extensão em Urbanismo) do IAU-USP, contou com a colaboração da equipe administrativa e técnica do hospital, com a participação dos comerciantes, dos pacientes e de seus acompanhantes por meio de pesquisas de campo e com os técnicos da prefeitura. Os comerciantes informais sugeriram as possibilidades econômicas viáveis para a nova localização de suas atividades. Epidemiologistas e assistentes sociais foram ouvidos e colaboraram na construção de diretrizes urbanísticas que revelam a importância da paisagem urbana, do bairro e, em última instância, da cidade na melhora física e mental dos pacientes.
Cidade como infraestrutura de saúde
Certamente o mundo não será o mesmo depois da pandemia do COVID-19. Mas, compreendendo a realidade como oportunidade de transformações, temos que aprender com os problemas e nos preparar para mudanças de nossos hábitos e das cidades em que vivemos. A começar pela urbanização dos assentamentos precários e universalização do saneamento, assuntos prioritários cuja complexidade vai além do tema da saúde pública. E é necessário olharmos para o papel do hospital na cidade, pois não podem ser concebidos como equipamentos isolados do tecido urbano ou distantes das áreas mais pobres porque seus usuários colaboram para um convívio social de cooperações. Urbanistas, sanitaristas, profissionais da saúde, engenheiros, planejadores e gestores públicos têm responsabilidade em compreender a cidade, entre outras funções, como uma infraestrutura de saúde.
Elaboração do Projeto
- Autoria do Projeto: PExURB – Grupo de Práticas em Pesquisa, Ensino e Extensão em Urbanismo / IAU-USP
- Coordenadores: Jeferson C. Tavares e Marcel Fantin
- Responsável: Arquiteto e Urbanista Jeferson C. Tavares
- Consultoria de Arquitetura da Paisagem: Luciana B. M. Schenk
- Consultoria de Mobilidade: Daniela Vanessa R. Lara
- Equipe: Ana Victoria S. Gonçalves, Anna L. P. Rossi, Bárbara T. Postali, Breno Malheiros de Melo, Caroline B. Scapol, Júlia C. S. V. C. Rosas, Luiza P. B. C. L. Beltramini, Marcela Martins, Marcelo Fernández B. dos S., Maria B. S. Custodio, Natália Jacomino, Renan S. Gomez, Vinícius V. Granato
- Colaboradores:
- Equipe de Funcionários do Hospital de Amor
- Gestores Públicos da Prefeitura Municipal de Barretos
- Comerciantes da vizinhança do Hospital de Amor
- Pacientes e acompanhantes do Hospital de Amor
- Ano de realização e conclusão: 2019
Jeferson Tavares é Professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo-USP, coordenador do Grupo PExURB.
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