Entre fevereiro de 2014 e setembro de 2015 – poucos meses antes de seu precoce e inesperado falecimento – a arquiteta Zaha Hadid esteve no centro de um acalorado e polêmico debate. Debate esse que teria como foco, de um lado as crescentes e cada vez mais graves denúncias sobre as condições de trabalho no Qatar de forma geral, e em específico nas obras empreendidas para a realização da Copa FIFA – Fédération Internationale de Football Association, de 2022 (ITUC, 2014; Amnesty International, 2016); e do outro o projeto do Al Wakrah Stadium – elaborado pelo escritório de arquitetura sediado em Londres que leva seu nome, e assinado por Hadid e Patrik Schumacher, para o referido evento.
O primeiro episódio dessa trama aconteceu em Londres, durante a reabertura do Olympic Aquatics Centre – também projetado pelo escritório de Hadid – em 25 de fevereiro 2014. Certamente motivado pelas pesquisas sobre o Qatar empreendidas pelo The Guardian em sua linha investigativa “Modern day slavery in focus”, e pela denúncia publicada uma semana antes pelo jornal de que entre janeiro de 2012 e fevereiro de 2014 cerca de 500 trabalhadores de origem Indiana teriam morrido no Qatar (GIBSON, 2014), o repórter do jornal britânico perguntaria à arquiteta sobre sua posição frente a tais denúncias e sobre sua eventual proximidade a tais fatos, dada a elaboração do projeto para um dos estádios da copa de 2022 naquele país. A tais questionamentos Zaha Hadid teria respondido que se tratava de uma questão ou problema de governo, que não estava ao seu alcance fazer nada a respeito e que embora tais questões a preocupassem – como outras mortes e problemas de desigualdade em diversas partes do mundo – acreditava não ser sua responsabilidade como arquiteta resolve-las ou combatê-las.
Uma nova notícia em agosto de 2014 de que a arquiteta teria aberto um processo por difamação contra o The New York Review of Books acerca do mesmo assunto, serviria como renovado estopim para o debate – provavelmente mais do que o próprio texto que dera origem ao processo legal. Em sua resenha sobre o livro do jornalista, crítico e arquiteto Rowam Moore, “Whywe build: power and desire in architecture”, inicialmente publicado em junho de 2014, Martin citaria as constantes solicitações públicas para que arquitetos passassem a exigir dos governos locais melhores condições de trabalho nos sítios de construção e a insensibilidade de Hadid a tal questão em função de supostas mortes ocorridas nas obras de seu estádio do Qatar – a partir da citada entrevista de Londres. Informação essa que seria corrigida em carta de pedido de desculpas dois meses depois através, do esclarecimento de que, no momento da entrevista de Londres, as obras do Al Wakrah Stadium ainda não tinham sido iniciadas e que, portanto, a morte de trabalhadores migrantes teria acontecido em outras obras e situações de risco relacionadas ao trabalho no Qatar e não na construção do projeto de Zaha Hadid Architects.
O último episódio público emblemático desse acalorado debate teria ocorrido em setembro de 2015, também seguido de uma carta de desculpas. Em meio a uma entrevista ao vivo na rádio londrina BBC, Hadid seria questionada sobre a relação entre os significativos índices de mortes de trabalhadores imigrantes no Qatar e as obras de construção de seu projeto de estádio. A negação da entrevistada de qualquer relação existente e a insistência da entrevistadora, nessa e em outras questões polêmicas, resultariam em um final abrupto da entrevista com a saída de Hadid do estúdio de gravação. O pedido de desculpas mais uma vez ressaltaria que não haviam evidência de que qualquer das mortes ocorridas entre trabalhadores imigrantes no Qatar teria acontecido no canteiro de obras do estádio projetado por Hadid (WAITE, 2015).
Durante o período em que esse debate acontece – ou mesmo depois – alguns fatores que merecem destaque parecem alimentar as discussões. Certamente o primeiro e o mais importante deles são os continuados abusos de diretos ocorridos no Qatar e as sucessivas investigações e relatórios produzidos, que procuram denunciar tais situações. São significativos nesse sentido os relatórios produzidos pela International Trade Union Confederation (ITUC, 2014) e Amnesty International (2016). [2]
O Documento do ITUC (2014) procura denunciar as práticas correntes no mercado de trabalho local – sobretudo no que tange os imigrantes – e as discrepâncias entre as leis trabalhistas do Qatar e as leis internacionais, apontando a Copa FIFA 2022, e sua preparação, como processos fundamentais em seu potencial poder catalisador de mudanças. São assim apontadas no relatório relações abusivas como a prática conhecida localmente como “kafala system” baseada nas leis trabalhistas locais que, de forma mais do que desigual, coloca nas mãos do empregador de trabalhadores estrangeiros não apenas o poder de emissão do documento de identidade nacional do empregado, mas também a possibilidade de se negar a conceder autorização para uma nova contratação no Qatar ou mesmo para a saída do país. A oferta cada vez mais expressiva de postos de trabalho em uma indústria da construção pujante acaba por articular, como aponta o relatório, um sistema complexo que embora não sirva exclusivamente o mercado da construção, tem nele uma significativa participação. Sistema esse que inclui agências ilegais de recrutamento em outros países com a cobrança previa de significativas somas para os trabalhadores interessados em migrar para o Qatar; a manutenção desses trabalhadores, uma vez no país, em campos de moradia de condições cruelmente precárias muitas vezes administrados e vigiados direta ou indiretamente pelas companhias contratantes; um sistema legal extremamente desigual que estabelece relações empregado-empregador que frente às leis internacionais podem ser facilmente entendidas como condições análogas à escravidão; e, por fim, um sistema estatal absolutamente falho em fiscalizar direitos mínimos concedidos e o silencio conivente das – não poucas – empresas internacionais que atuam no Qatar (ITUC, 2014).
São mais especificamente essa precariedade não fiscalizada nas condições cotidianas de trabalhadores da construção no Qatar e a conivência do sistema econômico empresarial global com tais condições, os temas do relatório produzido dois anos mais tarde pela Amnesty International (2016), endereçando então especificamente as obras de modernização e adequação aos padrões exigidos pela FIFA para a recepção dos jogos de uma copa mundial do Khalifa International Stadium, bem como a responsabilidade dos sistemas governamentais e das diversas organizações e empresas envolvidas (2016). O quadro desenhado a partir de entrevistas feitas com 234 homens, todos migrantes sobretudo de países do Sul da Ásia, que em 2015 trabalhavam nas obras do Khalifa International Stadium, é triste e alarmante: as promessas feitas como condição para migração não haviam sido cumpridas; os salários eram baixíssimos e em grande parte gastos com o pagamento de empréstimos contraídos; as condições de trabalho eram exaustivas e de moradia eram precárias; e a vários trabalhadores havia sido negado mesmo o direito de sair do Qatar (Amnesty International, 2016). Tais condições são ainda assustadoramente discrepantes quer seja das descrições sobre o caráter de ponta das novas instalações, quer seja das regras estabelecidas pelo comitê central da FIFA para a contratação de trabalhadores – que parecem claramente operar apenas como instrumento de proteção legal da própria instituição, sem grandes fiscalizações ou qualquer eficácia.
O segundo fator ou ponto recorrente a alimentar as discussões – do caso Hadid – que merece destaque, trata-se dos impasses acerca da responsabilidade profissional do arquiteto e a distinção que por vezes se faz entre a responsabilidade legal estabelecida por contratos e leis – normalmente nacionais – que regulamentam o exercício da profissão, e a responsabilidade moral ou ética tacitamente estabelecida pelo campo profissional da arquitetura. Por um lado o nível de autonomização do campo arquitetônico e a internacionalização de seus mercados consolidados ao longo do século XX – que tem como expoentes justamente os escritórios internacionais reconhecidos como parte do chamado star system – levam à separação entre a responsabilidade da elaboração do projeto e do acompanhamento de obra, tornando legalmente impossível responsabilizar, por exemplo, um escritório em Londres por questões ocorridas em um canteiro de obras no Qatar, a não ser que haja um contrato que explicitamente declare tal responsabilidade. Por outro lado, o desenrolar da história da arquitetura ao longo do século XX fez com que a noção de responsabilidade social da arquitetura ou do arquiteto se tornassem temas inescapáveis – quer seja para afirmá-la ou negá-la – ainda que com contornos ou definições pouco claras sobre sua extensão ou significados. Mesmo que distantes de bordões como “arquitetura ou revolução”, diversos são os arquitetos absolutamente inseridos no mercado internacional de grandes obras de assinatura que – certamente atentos ao papel simbólico e validatório que a arquitetura sempre teve e ao caráter propagandístico que as últimas décadas do século XX ressaltam – questionarão o posicionamento ético em atender encomendas de governos pouco ou nada democráticos. Note-se, entretanto, que as questões relacionadas às condições de trabalho no canteiro parecem ser tabus normalmente menos abordados nas discussões sobre responsabilidade social do arquiteto na contemporaneidade do que já foram anteriormente – talvez deixadas de lado com algumas das ideologias de esquerda desacreditadas.
O terceiro fator a alimentar as discussões envolvendo Zaha Hadid e o Qatar, embora não seja o foco do presente texto, merece ser colocado por seus significados, mas também por sua recorrente menção. Trata-se da questão de gênero e do fato de que – para além do argumento de que essa ou aquela atitude, essa ou aquela afirmação não seriam feitas se ela não fosse uma mulher – sua suposta insensibilidade frente às condições precárias dos trabalhadores no Qatar parece ser apontada como ainda mais repreensível frente a sua condição feminina. Mesmo que, evidentemente, sem levar a sério tal tendência, parece importante perceber o tom que as discussões em geral sobre o caso assumem, e que aqui tornam-se bastante evidentes. Frente à pergunta chave levantada a partir desses episódios – qual a responsabilidade do arquiteto frente a processos ou questões ocorridas no canteiro de obra, e qual ou como pode ser o seu papel em melhorá-las? – as respostas parecem sempre recair em discussões individualizadas, como se fossem escolhas, posições ideológicas ou responsabilidades individuais a serem assumidas pelo arquiteto em seu exercício profissional.
É fundamental compreender que casos como o do Qatar não são fatos isolados ou de exceção, mas que constituem parte do mercado de produção da arquitetura na contemporaneidade, empregando e envolvendo profissionais espalhados pelo mundo. E mais do que isso, se certamente não se pode culpar exclusivamente arquitetos ou o campo da arquitetura por tais condições, também não é possível negar os laços intrínsecos que certa arquitetura de caráter monumental e sofisticação tanto espacial quanto tecnológica parecem possuir com os circuitos de exploração de mão de obra, ao menos pela recorrência. Para além de sua exuberância estético-espacial, por vezes inegável, para que e para quem serve essa arquitetura? E como ela se aproxima da máxima dimensão tecnológica sem que seja capaz de afastar as péssimas condições de trabalho em sua construção, e sim, pelo contrário, tendo-as como parte constitutiva do processo?
Essa discussão também torna urgente um avanço nas reflexões sobre os impactos das novas tecnologias digitais na cidade e na arquitetura e pela forma como as noções de fabricação ou parametrização têm sido absorvidas pelo campo. Torna urgente também um posicionamento crítico frente a tal tecnologia, certamente não como negação, mas que compreenda de forma mais ampla como seu apelo à mecanização e diminuição do trabalho humano, acaba por resultar, tantas vezes, em seu inverso – a intensa exploração no canteiro de obras –, mascarado na abstração da forma final resultante. Talvez esse seja um dos caminhos possíveis e fundamentais para ultrapassarmos a discussão das conexões entre a arquitetura contemporânea de ponta e os sistemas de exploração do trabalho em termos menos ideológicos, e que possam contribuir de maneira mais efetiva para seu enfrentamento.
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Artigo originalmente publicado no livro "Contracondutas" (Editora da Escola da Cidade, 2017) com o título "Arquitetura, imagem e (des)construção". O volume "Contracondutas" trata de uma pesquisa feita através de um Termo de Ajuste de Conduta quando, por decisão do Ministério Público do Trabalho de Guarulhos, parte da verba do TAC, endereçado à construtora OAS, foi destinada à Associação Escola da Cidade para a elaboração de um projeto que problematizasse e impactasse o debate público sobre as grandes obras de infraestrutura, a migração e o trabalho análogo a escravo na contemporaneidade. Para saber mais acesse aqui.
Principais Referências Bibliográficas
Amnesty International. The ugly side of the beautiful game. Exploitation of migrant workers on a Qatar 2022 world cup site. Londres: Amnesty International, 2016.
ARANTES, Pedro Fiori. Forma Valor e renda na arquitetura contemporânea. ARS, vol.8, n.16, p.84-108, 2010.
FILLER, Martin. The insolence of architecture. The New York Review of Books, 5 jun. 2014.
GIBSON, Owen. More than 500 Indian workers died in Qatar since 2012, figures show. The Guardian, 18 fev. 2014.
ITUC –International Trade Union Confederation. The case against Qatar, host of the FIFA 2022 World Cup – ITUC Special Report. Bruxelas: ITUC, 2014.
RIACH, James. Zaha Hadid defends Qatar World Cup role following migrant worker deaths. The Guardian, 25 fev. 2014.
The Guardian. About modern day slavery in focus. The Guardian, 21 nov. 2014.
WAITE, Richard. BBC apologises to Hadid over Qatar allegations. The architect’s journal, 25 set. 2015.
WBYA? – Who builds your Architecture?. Who builds your Architecture?, 2011.
Marianna Boghosian Al Assal: Arquiteta e Urbanista, Mestre e Doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP. Diretora Adjunta do Conselho Científico da Associação Escola da Cidade onde leciona na graduação e pós-graduação.