Quando se fala em indígenas sempre parece algo longe de nós, que não nos pertence, que está lá longe, na mata, na história etc. Para essa parcela da população, é reservado somente preconceitos e estereótipos. Até mesmo o termo “cultura indígena” costuma ser usado de forma romântica por quem se diz do meio, por desconhecimento, falta de acesso a informações mais coerentes ou preguiça. Mas o fato é: sempre tivemos indígenas entre nós.
Já nos séculos XIV e XVIII, há registros de cidades indígenas brasileiras, latino-americanas e dos povos polinésios. Somente no Brasil temos mais de 10 mil anos de presença humana. No estado de São Paulo, no mínimo 1700 anos levando em consideração exemplos de vestígios de cerâmica Guarani achados no interior do estado ao longo do Caminho do Peabiru, antiga e gigante trilha indígena que começava em Cuzco no Peru e terminava entre São Paulo e Rio de Janeiro, ou registros arqueológicos em cidades que até hoje mantém seu nome indígena, como por exemplo Indaiatuba. Também é sabido que na Amazônia brasileira tivemos cidades indígenas, assim como no nordeste.
Os indígenas sempre foram presentes na construção do que hoje chamamos de Brasil, embora muitas vezes isso não seja lembrado nas aulas de história. Acontecimentos importantes, como a Revolução Farroupilha, a Guerra de Canudos e a Guerra do Paraguai, tiveram intensa participação indígena. Outros feitos se tornaram quase desconhecidos em nossa construção histórica, mas tiveram grande protagonismo indígena, como a Guerra (ou Confederação) dos Tamoios, Batalha dos Guararapes, Guerra dos Emboabas e Revolução Guaranítica. Nessa última, a morte de Sepé Tiaraju, um dos principais líderes da revolta, instituiu o Dia Nacional da Luta dos Povos Indígenas (7 de fevereiro).
Esse pequeno histórico nos mostra que se pouco sabemos sobre a questão e a presença indígena na história, o que de fato sabemos sobre eles atualmente?
A questão dos indígenas em contextos urbanos é extremamente invisível e apagada perante a sociedade, inclusive no movimento indígena tradicional. Porém, indígena é indígena em qualquer lugar, inclusive nas cidades. Hoje, a maioria dos centros urbanos acima de 50 mil habitantes têm indígenas, e essa é uma realidade que se perpetua desde o começo de nossa história. Afinal, não foi a aldeia que chegou na cidade, mas a cidade que chegou na aldeia.
Essa é uma realidade que não se aplica somente ao Brasil. Existem inúmeros exemplos de povos indígenas em cidades do mundo, como os Sàmi na Noruega e Finlândia, os Ainu em Tóquio e outras cidades japonesas, os Aymaras em La Paz e outras cidades bolivianas, os Maori na Nova Zelândia e ilhas próximas, os Sioux e Navajo em Nova York… O fato é que as cidades nunca deixaram de ter indígenas, especialmente as capitais e as maiores. A diferença é que ao longo dos anos muitos vieram como migrantes.
Até o fim do século XIX, pode-se considerar três categorias de migração indígena: os povos horticultores, ou seja, grupos que eram mais fixos no território e plantavam; povos coletores, ou grupos indígenas mais nômades; e por fim, os invisíveis que tratamos nesse texto, indígenas que migraram para a cidade em busca de trabalho ou outra atividade e não se identificaram como indígenas ou não foram identificados como tais.
Já entre o final do século XIX e este século XXI o aspecto migratório começa a ter muitas variáveis. Fugas de invasões de terras ou de violência, busca de trabalho, estudo, tratamento de saúde e melhores condições de vida se tornaram também motivações para a migração. Por volta de 1940, essa migração intensifica-se especialmente por causa da enorme industrialização e constante remoção de comunidades.
Porém, a ideia de que um indígena o deixa de ser por morar na cidade, e assim “civiliza-se”, é extremamente preconceituosa. Pensar o indígena em contexto urbano exige atuar contra estereótipos. Ao se afirmar que o indígena não é mais indígena ao viver na cidade é negá-lo direitos fundamentais: o de ir e vir e o direito de ser o que originalmente se é. A cidade também deve ser um local de afirmação dos direitos indígenas!
A migração para as cidades pode ser voluntária ou forçada e em muitas situações envolve violação dos direitos humanos, como nos casos em que é motivada pela expulsão de suas terras de origem, insegurança econômica, ausência ou precariedade de serviços básicos ou ainda conflitos armados.
Ainda é muito recente a reflexão sobre direito à cidade para povos indígenas, no entanto a questão indígena no contexto urbano é um debate essencial dentro da Agenda do Direito à Cidade. O direito à moradia, reconhecido como um direito humano fundamental pela ONU, considera que para que a moradia seja avaliada adequada ela deve respeitar e levar em conta a expressão da identidade cultural dos seus moradores. Do ponto de vista como entendemos o direito à cidade, também acreditamos que este só estará garantido quando a diversidade e identidade cultural de todas as pessoas forem acolhidas pela cidade.
Ao mesmo tempo, no contexto de migração forçada, a vinda para a cidade pode ser motivada pelo desejo de "solucionar" as carências vivenciadas na terra de origem. Neste sentido, ao se pensar em políticas públicas para indígenas em áreas urbanas é preciso considerar as duas “pontas”: a cidade e a terra de origem. Sendo assim, para garantir o direito à cidade aos indígenas, é necessário se somar ações às políticas indígenas já instaladas nas áreas não urbanas e garantir todas as condições para sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições nas terras de origem. Sem essa garantia a permanência na terra original, a cidade será sempre violadora de direitos.
Pensar em um projeto de cidade como bem comum e de todas e todos tem a responsabilidade de reduzir as privações e exclusões dos povos indígenas em áreas urbanas, geradas pela insuficiência e inadequação das políticas públicas de preservação e desenvolvimento desses povos.
Embora o IBGE aponte no último Censo cerca de 13 mil indígenas na região metropolitana paulistana, o grupo de estudos Índios na Cidade considera que esse número pode chegar a 90 mil pessoas, pertencentes a mais de 54 povos diferentes, vindos praticamente de todas as regiões do país e falantes de mais de 18 dialetos diferentes. Todas as 39 cidades que formam a região metropolitana têm presença indígena, e não de “descendentes indígenas”. O descompasso entre os dados oficiais pode ser atribuída ao tipo de abordagem dos órgãos oficiais, e também ao autorreconhecimento ou autoafirmação de cada pessoa. Se não sabemos que existe essa diversidade indígena, o que sabemos deles, de suas vidas, de suas realidades, de suas demandas, de suas ocupações?
Grande parte da população indígena em meios urbanos vive nas periferias, e sofre todos os tipos de desafios de quem vive as severas desigualdades socio-territoriais: quase não têm acesso a bens e serviços (quando tem é precário) e a políticas sociais, e tem pouco poder aquisitivo.
Quando se trata dos índios presentes em cidades, as discussões no Brasil sobre seu direito à terra e moradia tomam delineamentos menos nítidos do que nos contextos não urbanos e são de caráter muito recente. Permanece como desafio ainda a definição de políticas públicas que contemplem adequadamente o direito à moradia dos indígenas que habitam as cidades, respeitando as suas especificidades culturais. Nada temos de concreto neste sentido definido no âmbito federal, no entanto já começamos a ver algumas experiências no âmbito estadual e municipal.
No âmbito estadual temos o caso do Mato Grosso do Sul que desenvolveu o programa que beneficiava os índios nas cidades, com o subprograma “casa do índio”, programa que propunha a melhoria habitacional da população indígena no estado, respeitando as suas especificações culturais e, podendo também atender aos indígenas em contextos urbanos. No âmbito municipal, já existem também algumas iniciativas visando garantir terra e moradia às comunidades indígenas nas cidades. Em algumas situações houve a preocupação em atender as especificidades da realidade e cultura indígena, como nas aldeias urbanas em Campo Grande.
Além da exclusão territorial, há também a exclusão cultural. É comum ouvir que o indígena que vive na cidade não é mais indígena pois “perdeu a sua cultura”. Com isso, nega-se mais um direito: o de ser indígena.
Mais do que vestimenta, ou pinturas corporais, ou hábitos alimentares, é preciso olhar como os indígenas vivem seu dia a dia em sua casa e entre os seus. O que faz do indígena ser indígena é o tripé tradição, cultura e espiritualidade. E é nesse tripé que vem também a diversidade, pois cada um destes mais de 54 povos têm suas peculiaridades. Pankararu, um dos maiores grupos indígenas de São Paulo, é diferente de Pankararé (outro grupo grande em SP), que é diferente dos Guarani, que é diferente dos Pankará, Xavante, Yanomami, Tariano, Kariri Xocó, Kaingang, Guarani Kaiowá, Pataxó, Terena, Guajajara, Pipipã, Tembé, Mayuruna, Wapichana etc.
Essas pessoas, além de terem acesso escasso às políticas públicas de forma geral, quando estão no contexto urbano também não são contempladas pelas políticas dedicadas aos povos indígenas. Por exemplo, as campanhas de vacinação da gripe priorizam os indígenas como grupo de risco. Mas esse direito é negado para os indígenas que vivem nas cidades. Acesso ao sistema de cotas em universidades públicas e acesso ao mercado de trabalho são também dificuldades cotidianas destes povos.
A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) é responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) no Sistema Único de Saúde (SUS). No que tange aos beneficiários do subsistema de atenção à saúde indígena é importante enfatizar que a legislação não faz qualquer distinção entre indígenas que estão nas terras originais e indígenas que estão em contexto urbano. No entanto, quando se trata de indígenas em áreas urbanas a possibilidade de acesso aos serviços de saúde indígena são bastante diferenciadas daqueles que se encontram em áreas reconhecidas como terras regularizadas ou em processo de regularização.
No atual contexto de pandemia pelo COVID-19 esta situação fica muito agravada, pois são justamente os indígenas em contexto urbano que estão correndo o maior risco de infecção, no entanto, em entrevista para o instituto sócio ambiental (ISA), o titular da Secretaria de Saúde Indígena, Robson Santos da Silva, afirmou que estrutura do órgão é preparada para atender moradores em Terras Indígenas e fora de centros urbanos. Comprovadamente os indígenas são biologicamente mais frágeis aos vírus da gripe, ainda não se sabe como reagem ao Coronavírus, mas provavelmente estão entre o grupo de risco. Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação do Povos Indígenas no Brasil (APIB) afirma ter medo de que haja um genocídio entre os indígenas no contexto da pandemia atual. "Temos um histórico muito perverso de doenças contagiosas que dizimaram etnias inteiras no passado."
A invisibilidade dos indígenas nas cidades também passa pela falta de dados. As prefeituras não sabem quantos de seus funcionários e habitantes são indígenas, as escolas, as empresas, as delegacias, o movimento LGBT, movimentos culturais. Para nossa sociedade, o indígena que vive na cidade é um ser inexistente. Ou seja, eu o vejo mas ele é invisível a mim, e portanto destituído de tudo, inclusive de ser.
Em momentos de crise, como a atual pandemia, isso é intensificado. A precarização do trabalho, a má remuneração e a falta de acesso a atendimentos médicos são ainda mais acentuados para a população indígena.
Sobre os autores
Marcos Júlio Aguiar – indigenista atuante a mais de 22 anos com indígenas que estão em contextos urbanos. Coordenador do Programa “Índios na Cidade” – ONG Opção Brasil e da Página Indígenas em Contexto Urbano no Facebook, que é a maior página no tema (além de outras paginas e grupos).
Danielle Klintowitz é urbanista e Coordenadora Geral do Instituto Pólis
Fernanda Correia é documentarista e integra a equipe de comunicação e incidência política do Instituto Pólis.