Habitamos um mundo com cicatrizes históricas e maltratado por nós, uma humanidade que insiste em se descolar e subjugar a natureza à qual pertence. No ritmo acelerado do capitalismo global esquecemos, em realidade, de nós mesmos, esquecendo que temos um olhar próprio, e isso acaba como esquecimento do mundo em si.
Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair e cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? ⎼ Ailton Krenak
Começamos este ensaio com a provocação do ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas, Ailton Krenak, a fim de que seja um convite à você para se juntar a nós através deste texto, feito coletivamente, fruto de leituras, práticas e devaneios discutidos ao longo de nossa existência enquanto laboratório colaborativo, mas também em todas as trocas e encontros que tivemos nessa caminhada e, principalmente, durante o período atual. Buscamos, através de algumas reflexões compartilhadas aqui, abrir questões e instaurar debates acerca das inquietações que este cenário nos provoca. Um cenário que não é novo. Estamos imersos nele há muito tempo. O caos provocado pela pandemia é apenas um sintoma que deixa latente uma estrutura falida, doente. Uma situação - esta sim, nova - de catástrofe que nos convoca a enxergar e pensar sobre isso.
Milton Nascimento, em sua "Janela para o Mundo" dizia: olhar o mundo é conhecer tudo aquilo que eu já teria que saber. E é isso que perdemos. Perdemos a capacidade natural de contextualizar, os seres, as coisas. Perdemos a capacidade de comunicação, entre as partes, e das partes com o todo, a qual só acontece através da compreensão; compreender, do latim, é colocar junto todos os elementos de uma explicação - não um, todos, diversos.
O filósofo camaronês Achille Mbembe fala sobre a humanidade estar em jogo, sobre esta pandemia revelar que nossa história na Terra não está garantida, que é plausível a continuação da vida sem a gente. De fato, enquanto os ecologistas veem, nesta pausa súbita no sistema de produção, a chance de fazer avançar um outro modo de fazer e de pensar, os adeptos e defensores da mercantilização da vida (que vai desde os aspectos materiais até os mais subjetivos, como, por exemplo, o tempo livre) também veem nesta pausa, infelizmente, uma grande oportunidade. Não esqueçamos a consciência que estes têm quanto à mutação ecológica e todos os seus esforços nos últimos tempos em negar a importância das mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, em escapar de suas consequências, construindo fortalezas que possam garantir seus privilégios, inacessíveis àqueles que terão que ser deixados para trás.
A força da globalização sempre foi o argumento de contraposição àqueles apresentados pelos ecologistas, mas é justamente o caráter de globalizado, de padronizado, do repetitivo substituindo a unicidade que torna frágil o desenvolvimento. A diversidade é o que protege e fortalece relações sistêmicas saudáveis, exatamente o contrário de toda essa homogeneização.
Hoje nos deparamos com uma condição que, para garantirmos a não propagação do vírus, e a garantia da preservação de vidas humanas, é exigida uma grande suspensão das atividades econômicas. A pausa pedida, necessária, escancara cada vez mais desigualdades e privilégios que nasceram junto com o nosso país. Quem pode fazer home office, se isolar e cumprir orientações para a quarentena? Como ficar em casa quando não se tem uma casa? Como lavar as mãos quando não se tem água? A última coisa a fazer seria voltar a tudo o que fizemos antes. Não estamos todos no mesmo barco, mas deveríamos estar.
É aqui, portanto, que devemos começar a nos questionar. Uma circunstância que nos chega, perturba e chacoalha, atingindo a todos em graus e escalas diferentes, mas que também abre fissuras para novas coisas surgirem. É tempo de reinvenção. Faz-se necessária, mais do que nunca, a construção de uma consciência planetária, entendendo que todos os problemas estão amarrados uns aos outros, que a humanidade vive um destino comum.
Estamos acostumados a nos perguntar apenas 'o que fazer?'. Este momento nos pede que comecemos a nos perguntar o 'como fazer?'. Pede que prestemos mais atenção aos meios, aos processos, num agir que implica presença, um devir atento ao ter lugar das coisas, dos seres, contra o esmagamento atual da pluralidade de existências justificado pela urgência. Se perguntar apenas 'o que fazer?' reforça o agir atarefado dentro da divisão de um tempo sempre produtivo, urgente, sem reflexão. A vida não deve ser uma prosa que se faça por obrigação. A vida é viver poeticamente na paixão, no entusiasmo, e, necessariamente, no coletivo. Como pensar em novas maneiras de viver? Como elaborar modos de vida que sejam também modos de luta, políticas do ter lugar?
Trata-se de romper com a lógica vigente. Não cabe mais considerar que a injustiça e o erro moram apenas na redistribuição dos frutos do progresso, mas sim na própria maneira de fazer o planeta produzir os frutos.
O problema é estrutural, sabemos. Nos voltemos, portanto, ao que está ao nosso alcance, voltemo-nos à compreensão, à contextualização de nós no mundo. Busquemos ser mais autônomos com o que está disponível, o que nos é oferecido diariamente pela natureza e que desperdiçamos.
O reconhecimento dos recursos presentes no território faz parte da Permacultura, no desenvolvimento de um projeto de arquitetura podemos atuar neste sentido, ou seja, gerando processos de fortalecimento das interações sociais e soluções de projeto que resultem em conhecimento a respeito do recurso disponível, propondo tecnologias apropriadas às pessoas (evitando o uso da tecnologia como mercadoria, o que muitas vezes cria dependência ou alienação) e ao lugar, gerando maior autonomia podendo estimular nas pessoas perspectivas de como melhorar a qualidade de vida. Neste caminho a Permacultura é para nós não apenas base, mas se apresenta enquanto metodologia de ação e projeção, uma maneira de encarar os elementos de um processo de forma integrada. A Permacultura é a cultura do permanente, não o permanente fixo e estático, mas sim o flexível e em movimento, acompanhando o habitar, a paisagem, a vida. Um pensamento do possível a procura das possibilidades contidas no real, a tal presença.
Nosso como fazer, o projetar, é, portanto, imaginar o real. Projetar com a paisagem, com o contexto, não é nada além do que criar algo que já estava ali e que ali continuará, permanecerá. A invenção revela o que já ali estava, libera e desvela, assim, um novo plano da realidade. O critério é antes de qualquer coisa a pertinência, entendendo o projeto enquanto algo dinâmico, assim como o local ao qual ele pertence. A intenção projetual só tem realidade ao se exercer sobre um sítio determinado e transforma as resistências próprias do sítio em possibilidades, ocasiões, incitações e, assim, não faz mais do que prolongar-lhe a natureza.
O projeto que se desenha é, portanto, inconcluso, e o papel de quem o realiza é exatamente este: ser o portador da inconclusão, ou seja, das reservas de significados. Daí o papel de quem o habita: desvendar esses usos e significados, dando movimento e conclusões ao espaço.
A arquitetura, neste sentido, é geradora de processos de vida: antes – no projeto; durante – na obra; depois – na vivência do espaço construído. Quanto mais integrada, maior a vitalidade e consequentemente a capacidade de propor um mundo melhor, isto é, se no projeto existe diálogo e reconhecimento de valores entre as partes, se as soluções projetuais na obra favorecerem um processo pedagógico com troca de saberes e se no uso do espaço o movimento estimular a transformação da energia em recurso ao invés de poluição, será possível dizer que a arquitetura desencadeou um processo de cura e de cuidado, a experiência se transformou em cultura. Entenderemos que depois desta catástrofe, se erotizarmos a nossa prática - no sentido trazido por Franco Berardi, da erotização enquanto "ver o outro como uma fonte de prazer e não como ferramenta" -, o mundo mudará do distanciamento para o afeto.
Organização do texto por Ana Beatriz Paro Giovani
Sem Muros Arquitetura Integrada é um laboratório colaborativo de arquitetura com base na Permacultura. O projetar, experimentar e construir é para nós uma oportunidade de aprendizado e promoção de autonomia àqueles envolvidos, caminhando através de uma arquitetura integrada social, ambiental e economicamente, preservando os sistemas de manutenção da vida.
Bibliografia
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