Como a maioria de vocês, passei os últimos dois meses em quarentena. Estou um pouco envergonhado de dizer isso, mas assim como a nobreza fugiu das cidades durante as pragas da Idade Média, tivemos a sorte de escapar da densidade de Boston e passar nossos dias na costa em Marshfield, uma pequena cidade ao sul, onde temos uma casa de veraneio. Devo me lembrar constantemente de que poderia ser muito pior.
Um dos benefícios deste local é a oportunidade de passear pelas praias e bairros próximos. Caminhar é de longe a melhor maneira de observar coisas que você geralmente não vê de carro. Um fenômeno que notei, é o número crescente do que estou chamando de Baseless House, ou seja, casas sem base. Estas residências parecem ser elevadas em pilares, como palafitas sobre o terreno, ou em altas fundações de concreto, independentemente do local ou do projeto.
A maioria dessas novas casas não se encaixa na tipologia de projetos contemporâneos, porém algumas, não são tão ruins, como a casa exibida acima, que faz referência as casas do entorno, com os telhados íngremes e as varandas. Outras, já não têm muito sucesso.
Mas o que todas têm em comum, é um espaço infame, bastante esquecido sob a casa. Esse espaço é a consequência direta dos regulamentos da Agência Federal de Gerenciamento de Emergências (FEMA) e dos mapas de inundações emitidos em 2016, que foram adotados em todo o país e tiveram um efeito profundo na altura do pavimento térreo de residências construídas ao longo de pântanos ou cursos de água. O requisito de altura varia de região para região e até de bairro para bairro. Meu próprio bairro agora fica em uma zona AE ,de risco relativamente alto, abaixo de uma zona da zona VE, mais restritiva. As exigências foram definidas considerando o limite de 100 anos de inundação e refletem a influência combinada de elevações de inundação de águas paradas e os efeitos de ondas de menos de um metro.
De uma perspectiva prática, o resultado dessa designação determina qual altura deverá ser mantida na parte inferior do pavimento térreo da casa. Na minha rua, a altura inferior exigida, anteriormente era de 2,70m (9 pés) acima da elevação da inundação básica (BFE), que a FEMA nomeia de inundação anual, com probabilidade de 1% ou inundação de 100 anos. Sob os novos regulamentos da FEMA, a elevação necessária para o meu bairro, agora é de 4,90m (16 pés). As consequências são obviamente significativas. A nova cota de inundação da rua é de 2,40m (8 pés), sendo que, minha elevação atual do térreo é de 3,35m (11 pés), apenas alguns metros acima da cota (veja a foto da escada, abaixo). Se a casa fosse construída hoje, haveria uma diferença total de 2,10m (7 pés). Onde antes apenas alguns degraus levavam ao térreo, hoje, teríamos um lance completo de escada.
Uma diferença de 2,10m (7 pés) significa muito, na realidade, a casa térrea deixa de existir. Os idosos ou os enfermos ficarão sem alternativa e, como resultado, mudanças sociais transformarão os bairros a longo prazo. As regulamentações, consequentemente também deixaram as casas mais altas e as secretarias de urbanismo locais começaram a conceder isenções das restrições anteriores de altura de construção, geralmente em torno de 9 a 10m (30 - 35 pés). Agora, para grande desgosto dos bombeiros, não é incomum ver casas com até 13 metros de altura (45 pés), às vezes fora do alcance de suas escadas - um bom exemplo, embora infeliz, de resultados não intencionais.
Embora todos os efeitos práticos, as consequências estéticas são ainda piores. Fica claro nas minhas caminhadas pelo bairro que ninguém está considerando as implicações arquitetônicas dos novos regulamentos da Agência Federal de Gerenciamento de Emergências. Ao invés disso, em uma espécie de primeira tentativa bruta de mitigação da mudança climática, as casas convencionais do passado estão simplesmente sendo construídas sobre pilares ou altas fundações de concreto, independentemente da aparência.
O conceito de se construir casas elevadas, acima das zonas úmidas, em áreas propensas as inundações, não é nova neste país. No período anterior a Guerra Civil, não era raro ver essas casas. A mistura única de considerações práticas e arquitetônicas poderia ser o modelo perfeito para o nosso tempo. O raciocínio anterior era um pouco diferente, e o pavimento inferior possuía um pé direito completo, mas o elegante resultado visual produziu imagens icônicas, que ainda são admiradas e copiadas até hoje.
Como todas as boas soluções de projeto, a elevação do térreo respondia a várias necessidades, ocasionais, de proteção contra umidade ou inundações, e climáticas, visto que o clima era quente e úmido a maior parte do ano, por isso fazia sentido elevar o primeiro pavimento, garantindo a ventilação cruzada. Os grandes beirais da cobertura e as varandas profundas também contribuíam para o conforto, visto que não existiam sistemas de ar condicionado mecânico. O pavimento inferior, na maioria das vezes, abrigava a cozinha, depósitos ou os quartos dos funcionários. A solução era prática e bonita. Como se diz, toda casa boa possui uma base, um centro e uma parte superior, e as casas pré-guerra são exemplos perfeitos. Nossa atenção não é atraída para um elemento curioso, ao contrário das casas contemporâneas, essas tipologias apresentam o conjunto completo, casas com uma base clara, um centro e uma cobertura.
Deveríamos aprender a partir destes precedentes históricos? Acredito que sim. Vivemos em um tempo diferente e as necessidades são outras, mas os novos regulamentos da FEMA podem se tornar uma oportunidade para que o programa da casa seja revisado em um novo modelo, funcional e bonito. A solução mais óbvia é expor o nível inferior de maneira que ele seja vinculado ao pavimento térreo, ou pelo menos não contraste com ele visualmente. Essa situação era comum nas casas antigas, nas quais, uma linha contínua de colunas se elevava do nível inferior ao pavimento principal.
Nos dois exemplos iniciais que mostrei em minha vizinhança, por que não estender alguns detalhes da guarnição do nível superior para o nível inferior, de modo a filtrar as estacas ou o concreto? Em outras palavras, oferecer à casa uma base melhor, fazendo uso do espaço como garagem ou depósito. Este conceito não é novo, já foi empregado em outros lugares do país, mas, estranhamente, no entorno de Boston, a altura sob a casa cumpre apenas os regulamentos, desconsiderando um possível uso. Dessa forma, por que não aumentar a altura para que seja viável abrigar um estacionamento ou outras áreas adicionais? O aumento de 0,30m (1 pé) faria muita diferença, quando você já é obrigado a elevar 2,10m (7 pés)?
Minha casa em Marshfield, foi comprada há cerca de 10 anos. Na época, atendi os regulamentos locais de altura da FEMA. O lote possuía uma inclinação abrupta até a vertente na parte posterior. Os antigos proprietários haviam deixado as fundações expostas, assim como todos os outros vizinhos. Depois de comprar a casa, alteramos o revestimento, adicionamos algumas janelas com cores vivas e configuramos uma base com ripas horizontais, de forma que sua abertura fosse suficiente para o armazenamento seguro e o acesso do barco - uma forma simples e talvez uma maneira de tornar o dilema contemporâneo das novas regulamentações, aceitável.
Não há dúvida de que os regulamentos da FEMA vieram para ficar, e terão um efeito significativo na construção civil. Mas, como todo problema é uma oportunidade, o ponto mais importante a ser lembrado é que a mitigação das mudanças climáticas, em todas as suas diversas formas, é essencialmente um problema arquitetônico. Enquanto ando pelo bairro, percebo mais do que nunca que os arquitetos têm uma oportunidade única de oferecer diretrizes ou novos modelos de projetos de casas para o futuro, muitas vezes com estratégias não visíveis aos olhos comuns.
Este artigo foi publicado originalmente no Common Edge.