Criando governanças na cidade informal: o caso do Jardim Colombo

O cenário das cidades brasileiras se alterna em duas realidades marcantes: de um lado temos a cidade formal, onde a lei é vigente, onde o direito à cidade é exercido, onde existem infra-estruturas de qualidade e investimentos públicos e privados. É também a realidade usada como base para a formulação de leis e diretrizes de planejamento urbano, e onde podemos ver a presença do Estado.

Por outro, temos a cidade informal. Aquela que ocupa as periferias e favelas, com uma identidade marcada por blocos cerâmicos e um adensamento descomedido. Nela, o que domina são as autoconstruções, independentes da propriedade do terreno, a ocupação ilegal e a falta de políticas públicas e infra-estruturas básicas. Faltam espaços de lazer, de cultura e áreas verdes.

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A cidade informal sofre, entre outras coisas, de dois problemas cruciais: a estrutura jurídica do Estado não é pensada encarando a sua realidade, deixando assim sua população vulnerável e muitas vezes forçada a recorrer à ilegalidade, e o descaso por parte do governo com a sua população com medidas que melhorem a sua qualidade de vida. 

Como lidar, portanto, com a informalidade e a falta de atenção do poder público nas periferias e comunidades brasileiras, e criar projetos prósperos e duradouros que beneficiem as populações mais carentes?

Este artigo apresenta o caso do Movimento Fazendinhando do Jardim Colombo, que nasceu com o objetivo de criar um parque para se tornar um projeto de transformação social e cultural com base na construção e fortalecimento de um sistema de governança bem estruturado.

Parte do Complexo Paraisópolis, o Jardim Colombo tem cerca de 18.000 pessoas e fica na zona Oeste de São Paulo. A comunidade tem uma escala pequena, quase de cidade de interior, e isso se reflete nos encontros na rua, no comércio local que faceia a calçada e nas crianças brincando e correndo pelas vielas.

Contexto: A comunidade do Jardim Colombo, na Zona Oeste de São Paulo. Image © Movimento Fazendinhando

A liderança lá é forte. Ivanildo, à frente da União de Moradores, centraliza uma rede de apoio, de contato com o poder público e disseminação de informações, tanto de eventos quanto de cuidados com a saúde, decisões jurídicas sobre processos do poder público, registros, urbanização, limpeza, educação e prazos a serem cumpridos. Sua filha, Ester Carro, mestre em arquitetura, desde cedo atua ativamente na comunidade em diversas frentes.

Em 2017 foi firmada uma parceria entre o Arq.Futuro e o Jardim Colombo e, em meio a caminhadas desbravadoras, o terreno da Fazendinha – nome dado pelo fato de um dia ter sido um local de cultivo de alimentos e animais – foi descoberto, sob um novo olhar: os 1000m2 de lixão passaram a ser vistos como um potencial espaço de lazer para a comunidade – o Parque Fazendinha.

Contexto: O terreno da Fazendinha no coração do Jardim Colombo. Image © Movimento Fazendinhando

Inspirados no êxito do poder de transformação do Parque Sitiê – exemplo de prestígio mundial da construção de um parque em uma zona de descarte no Morro do Vidigal, RJ – o Arq.Futuro, apoiador do projeto, fez a conexão entre seu idealizador e realizador, o paisagista e músico, carioca recém-chegado a São Paulo, Mauro Quintanilha, e a liderança local do Colombo, Ester e Ivanildo. 

Parque Sitiê – Morro do Vidigal, RJ, idealizado e realizado por Mauro Quintanilha. Image © Movimento Fazendinhando

Foi dada então a largada na jornada do que se tornaria o Movimento Fazendinhando.

Após apresentar um desenho prévio de projeto do parque à comunidade, em dezembro de 2017, foram dados os primeiros passos na limpeza do terreno com a remoção de mais de 40 caminhões de resíduos em mutirões realizados com a participação de voluntários. Em seguida, foram intensificadas as conversas sobre como adaptar esse local, atualmente o único espaço aberto na comunidade, para que pudesse ser usado pelos moradores como uma centralidade e um espaço de lazer. Havia vários desafios: a declividade do terreno, o resíduo remanescente, a falta de vegetação, e também a escassez de recursos e mão de obra para dar continuidade à qualificação do Fazendinha e fazer sua manutenção no dia a dia. Além disso, havia um problema maior: como incentivar os moradores a cuidarem daquele espaço, e não voltarem a usá-lo como ponto de descarte? Como promover e valorizar a atitude dos moradores que cuidam e mudar o comportamento daqueles que não se importam?  

Início dos trabalhos no terreno da Fazendinha para preparação para o I Festival de Artes do Jardim Colombo. Image © Movimento Fazendinhando

A solução encontrada foi realizar na Fazendinha um festival de artes, em julho de 2018, permitindo a todos os habitantes do Colombo enxergarem aquele local de uma nova maneira, percebendo o potencial do terreno para lazer e fruição.

O Festival começou a tomar forma no início de junho de 2018, com a chegada de Antonio Moya, estudante do mestrado em Planejamento Urbano do MIT, idealizador do evento, que veio fazer um summer job aqui no Brasil. Nessa época, foi formada a primeira parte da equipe que até hoje está à frente do projeto, com voluntários do Arq.Futuro: Tomás Alvim, Silvia Ferreira e Veronica Vacaro, com moradores do Colombo: Erik Luan, Kamilla Baes e Rubens Costa, e voluntários de comunidades do entorno, sempre sob a liderança de Ester. O grupo passou a se reunir regularmente e promover uma série de oficinas comunitárias para levantar ideias dos moradores sobre possíveis usos para o local e iniciar a adaptação do terreno para eles. Foram feitas oficinas de elaboração de cartazes para divulgar o festival, oficinas de mobiliário urbano com paletes reaproveitados, de paisagismo e estabilização do solo, de produção de vasos com materiais descartados e de fotografia, sempre em paralelo com novos mutirões de limpeza. O terreno era preparado para o Festival com a própria equipe buscando e coletando pneus descartados pelo entorno do Colombo para a construção das muralhas, tirando lixo e terra do terreno diariamente, e articulando o planejamento das atividades. Todo esse trabalho foi idealizado e realizado de forma coletiva e por meio de um processo participativo, envolvendo cada vez mais os moradores, que ministraram as oficinas, participaram delas, contribuíram com ferramentas e materiais, com seu conhecimento e mão de obra. Um morador em especial, o Paulo Balbino, que se tornou essencial à equipe desde o início e até hoje, ao lado de Mauro, lidera a construção do Parque. Dessa forma, o Parque Fazendinha foi, desde sua origem, desenvolvido pela comunidade: é uma criação de todos.   

Trabalho de limpeza do terreno para receber o I Festival de Artes do Jardim Colombo. Image © Movimento Fazendinhando

Paralelamente, foram buscados patrocínios para tornar o festival possível. Qualquer contribuição era bem-vinda, desde dinheiro até paletes ou plantas para transformar a Fazendinha. O projeto foi apresentado para dezenas de pessoas e organizações e rapidamente começou a ganhar apoio. Ao mesmo tempo, foi divulgado - dentro e fora da comunidade - através das redes sociais. 

Equipe Fazendinhando. Image © Movimento Fazendinhando

Nas semanas que antecederam o Festival foram realizados novos mutirões, já promovendo mudanças no terreno como a criação de espaços planos para a instalação de plataformas de paletes em diversos níveis nos quais seriam realizadas as oficinas e atividades no dia do evento, além de barreiras de contenção com o uso de pneus e cimento, pintura de paredes e criação de jardins verticais. Essas mudanças já ativaram a curiosidade dos moradores que passavam por ali, além de terem iniciado um processo de fortalecimento da comunidade, com a formação de um grupo de moradores - cada vez maior - à frente da transformação do terreno. 

Primeira oficina realizada com crianças do Jardim Colombo para desenhar o cartaz de divulgação do Festival. Image © Movimento Fazendinhando

No dia do Festival a mudança de percepção em relação ao espaço era clara entre os moradores. As montanhas de lixo e entulho agora recebiam oficinas, jardins, shows e crianças brincando. E assim, uma semente do parque foi lançada, que serviu para mostrar aos moradores que naquele lixão existia vida e potencial para um espaço público de qualidade. 

A organização do festival foi baseada em três objetivos: 

1. Fortalecimento da comunidade: apesar de ser uma comunidade, se detectou que o Jardim Colombo não contava com um sentimento comunitário forte. Por meio da organização do Festival, foi feita uma tentativa de envolver ativamente o máximo de moradores possível para fortalecer o sentimento de pertencimento. 

2. A arte como fonte individual de inspiração: como festival de artes, um dos objetivos principais consistia em expor aos moradores experiências artísticas com as quais a comunidade não está acostumada. Essa ideia nasceu da convicção de que a arte contribui para a introspecção individual e o crescimento da pessoa. 

3. Coleção de ideias para o futuro Parque Fazendinha: para conseguir conceber o desenho do Parque Fazendinha, foi imprescindível que a comunidade se apropriasse do espaço durante todo o processo de transformação. Para dar o primeiro passo, um dos objetivos principais do festival era coletar o máximo de ideias possíveis e começar a desenhar o parque a partir delas. 

Ofiina de Origami no dia do Festival. Image © Movimento Fazendinhando

O Festival foi um sucesso. Sob vários pontos de vista, o Fazendinhando teve um êxito ressonante: em pouco menos de dois meses o terreno, até então usado como despejo de resíduos, foi transformado e habilitado para acomodar todos os tipos de atividades. Ao ver crianças e jovens correrem entre as plataformas preparadas para o festival ficou evidente que a transformação não fora somente simbólica, mas também real e eficaz. A participação da comunidade também foi muito significativa, tanto no dia do evento como nas semanas que o precederam, com a incorporação progressiva de vizinhos nas diferentes oficinas e mutirões organizados.  

As semanas que seguiram foram dedicadas a reuniões de equipe para pensar como o sucesso do Festival e o material coletado seriam melhor aproveitados e como essa equipe, agora mais consolidada, atuaria. O desenho arquitetônico do parque foi definido com base nos desejos e pedidos da comunidade liderado pelas arquitetas Ester e Veronica. Atividades foram planejadas para as semanas seguintes pensando em aproveitar a euforia gerada pelo Festival. A equipe foi ganhando funções mais específicas, foi criado um comitê de marketing, um de arquitetura e engenharia e um de programação de atividades. Foram feitos workshops com ajuda do Insper para organizar ideias e definir objetivos e rumos.

Nasceu assim o Movimento Fazendinhando que, iniciado com o propósito de transformar o lixão em parque, ganhou força com a formação de uma equipe que se propôs a atuar não só na transformação física, mas também na cultural e social no Jardim Colombo e buscar uma mudança mais profunda por meio da recuperação de espaços públicos e ações de arte e cultura visando a integração da comunidade.  

Iniciou-se então, em paralelo, um processo burocrático extremamente necessário. Para centralizar as ações e tomadas de decisão, e possibilitar a captação de recursos, a já existente Associação Esportiva do Jardim Colombo foi reformulada e transformada em Associação Educacional e Esportiva do Jardim Colombo, para atuar em parceria com a União de Moradores do Jardim Colombo, órgãos públicos, iniciativa privada e sociedade civil.

Nos últimos dois anos foi feita a reestruturação da Associação com um novo estatuto, e com a reeleição de sua diretoria, formada por moradores do Colombo com Ester no cargo de Presidente, Ivanildo como Diretor Esportivo, Erik Luan como Diretor Financeiro e Kamilla Bianca como Secretária. O conselho fiscal e o conselho consultivo foram formados por membros do Arq.Futuro, e contam com formações diversas que contribuem em diferentes papéis, com visões externas de mercado, empresa, comunicação e marketing, arquitetura e urbanismo, e políticas públicas. Desde o início foi enfatizada a importância de definir funções a serem desempenhados pelos membros da equipe para tornar os processos mais eficazes e precisos.

O Estatuto foi reformulado para incluir os novos propósitos da Associação e uma estruturação legal que garantisse segurança jurídica. Foi elaborado com ajuda externa de advogados especializados em terceiro setor. O objetivo principal de todo este processo foi desenvolver um sistema de governança bem estruturado, apoiado em sólidas fundações e, acima de tudo, com total transparência, valor crucial para dar longevidade e credibilidade ao projeto.

Governança leva tempo para ser consolidada. É preciso ganhar a confiança da comunidade e de agentes externos. Para isso deve-se desenvolver uma gestão eficiente e transparente, com capacidade de ação local eficaz, o que requer um entendimento preciso do contexto social e da demanda local para tomar decisões certeiras e responsáveis. A partir do momento que essa solidez da liderança é atingida, é possível lidar com diversas circunstâncias em ações rápidas de grande impacto e de largo alcance. 

Para essa consolidação, são realizadas reuniões mensais de planejamento com o núcleo central onde prioridades são definidas. Os planos de ação e atividades propostas são baseadas nas necessidades locais e momentâneas, sempre com base em análise e observação do contexto, definidos especialmente pelos membros moradores do Colombo. Além disso, mensalmente é feita uma prestação de contas para que haja transparência total no contato com possíveis colaboradores. A contratação de um escritório de Contabilidade e um Conselho Fiscal capacitado e atuante também é fundamental para a solidez da organização.

O resultado dessa dedicação trouxe parcerias muito importantes, tanto para o âmbito estrutural e financeiro quanto cultural, construtivo e educativo. A Rede Papel Solidário, fundamental para a reestruturação do Estatuto, apoio jurídico e orientações organizacionais de terceiro setor;  o grupo dos Engenheiros Sem Fronteiras se tornou fundamental no projeto das obras do Parque; a Editora BEI e o portal Por Quê, com sua série Sem Patrão, retrataram o funcionamento do comércio informal na comunidade mostrando sua importância para a economia local e para a vida de seus empreendedores, Claudia Moreira Salles, grande inspiração na arquitetura e grande apoiadora do I Festival; o Insper, com participação ativa da Professora Paulina Achurra Burgos abriu diversas portas e agregou muito com equipes para mutirões e projetos de diversas frentes na comunidade; a Subprefeitura do Butantã passou ajudar com materiais e ajudar com a coleta de resíduos; a Fundação Aron Birmann permitiu um grande avanço na obra do parque com doação de materiais e a cessão do Mauro Quintanilha, atualmente funcionário do Parque Burle Marx, duas vezes por semana; a RL Higiene periodicamente doa paletes para a construção de plataformas provisórias para a realização de oficinas e atividades no terreno; a Casa Cor participa ativamente na divulgação e incentivo ao projeto com seu vasto alcance no mundo da arquitetura; a Escola Avenues, na qual Ester participa do programa de Fellowship, criou um intercâmbio entre seus alunos e a comunidade, com visitas ao Parque, a discussão da situação e propostas, e a divulgação do projeto na sua rede de pais e alunos. E não podemos deixar de mencionar, mais uma vez, o Arq.Futuro, peça fundamental para as articulações, orientação, apoio, incentivo e estruturação de tudo o que é feito.

No cenário da cidade informal, onde existe uma ordem própria decorrente das necessidades e desafios locais, o entendimento do contexto e a conexão com os moradores têm muito peso, por isso a importância da formação de uma linha de frente que entenda os desafios e aja de forma a envolver, conscientizar e integrar a comunidade. 

É nesse ponto que o Movimento Fazendinhando mais foca seus esforços. Nos últimos dois anos vêm sendo organizados mutirões de limpeza, atividades mensais no espaço do parque com foco em crianças e jovens; interação e atividades com grupos de voluntários; festivais de arte com o objetivo de fortalecer e unir a comunidade, levantamento de ideias por meio de processo participativo para o desenvolvimento do parque e usar a arte como fonte individual de inspiração; atividades para adultos com geração de renda dentro da comunidade; visitas de profissionais e alunos estrangeiros; palestras e exposições sobre o caso Fazendinha em faculdades e eventos externos; articulação de ações em parceria com o poder público e entidades privadas; ações ligadas à saúde pública; distribuição de cestas básicas, produtos de higiene, roupas e livros em períodos de crise.  

II Festival de Artes do Jardim Colombo, realizado em jul/2019. Image © Movimento Fazendinhando

Os resultados são claros e sólidos: o nome Fazendinha se tornou conhecido e comum na boca dos residentes. A apropriação do terreno foi legítima, crianças esperam ansiosamente pelas atividades e têm uma participação ativa na vida do parque. O emocionante envolvimento delas nas atividades de música, dança e pintura provam o poder da arte de transcender o espaço – o parque não é só um espaço verde no coração da comunidade, é também uma porta para mundo dessas crianças e jovens. O Movimento busca, em todas as suas ações, mostrar a eles que se pode ter perspectiva e desejos, e que esse espaço de coletividade potencializa o poder de ação. 

Agora, mais do que nunca, isso está evidenciado. Durante a maior crise dos últimos tempos, em meio ao medo e incertezas, a equipe se mostrou preparada para atuar em diferentes frentes, mudando a vida das pessoas. Como centro de doações, o Movimento Fazendinhando tem agido rapidamente e numa escala enorme fornecendo materiais de higiene, cestas básicas, livros e roupas não só para o Jardim Colombo mas também para comunidades do entorno. Tem se dedicado diariamente na distribuição para as famílias e na propagação de informações que ajudem na conscientização dos moradores e que os mantenham saudáveis e seguros. 

Equipe Fazendinhando distribuindo marmitas para a comunidade em meio à crise da COVID-19. Image © Movimento Fazendinhando

O Movimento Fazendinhando se mostrou pronto para a ação justamente por ter uma estrutura formal sólida e transparente, uma equipe consolidada e uma direção forte que tem muita precisão na avaliação dos problemas e clareza dos rumos que deve tomar, sempre com muita responsabilidade, integridade e legitimidade.

Recentemente ficou evidenciado o poder da cidade informal e sua grandeza quando se trata de coletividade. Na nossa visão é quando a cidade formal enxerga e interage com a cidade informal que é criada a potência da ação que transforma o espaço, o ambiente, a cultura, a educação, a saúde… Afinal, a cidade real é o encontro e união dessas duas.

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Sobre este autor
Cita: Movimento Fazendinhando. "Criando governanças na cidade informal: o caso do Jardim Colombo" 13 Jun 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/941003/criando-governancas-na-cidade-informal-o-caso-do-jardim-colombo> ISSN 0719-8906

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