Annie Beauchamp é uma designer de produção que me contactou de surpresa após ter lido um artigo sobre a série Black Mirror e o futuro da arquitetura – algo emocionante já que ela foi responsável pelo cenário de Striking Vipers, o primeiro episódio da quinta temporada. Ainda mais impressionante é a sua vasta experiência ao trabalhar em inúmeros filmes como Bela Adormecida, Pássaros Amarelos, Adoração, Top of the Lake China Girl, LEGO Ninjago e como diretora de arte em, nada mais nada menos que, Moulin Rouge.
Conversamos com Beauchamp para conhecer suas ideias sobre a relação entre o cinema e a arquitetura. A seguinte entrevista explora os seus inícios e inspirações, o seu processo de trabalho e sua visão da era da computadorização, ao mesmo tempo em que dá dicas para a nova geração interessada no design de produção.
Fabián Dejtiar (FD): O que a inspirou no início? O que a motivou a ser a pessoa responsável pelo aspecto visual das histórias filmadas?
Annie Beauchamp (AB): Quando eu era criança, meu irmão fez filmes com Super 8 e lembro-me de sentir uma sensação mágica, como se eu estivesse sonhando enquanto via os seus filmes projetados na parede. Eu, frequentemente, atuava nestes filmes e também o ajudei a montar as tomadas. Essa foi a minha primeira introdução às filmagens.
Quando era jovem, fui inicialmente para a escola de artes com a intenção de me tornar fotógrafa, mas o caminho acabou por me levar à escola de cinema onde me especializei em design de produção. Experimentei um pouco de tudo, montagem, som, direção, animação quadro a quadro com uma câmara Oxberry e fiz alguns curtas-metragens. A escola de cinema ensinou-me sobre colaboração e como articular o enquadramento visual de um filme; foi onde materializei as minhas paixões criativas.
FD: Como especialista em design de produção, como você sabe quando um determinado espaço ou lugar pode contribuir para a história?
AB: O design de um filme pode descrever sua história com grande precisão e isolar seus momentos mais íntimos. Pode ser quase como um personagem, estabelecendo o estado de espírito e o sentimento de uma cena. O trabalho do designer ajuda a conduzir o enredo, descreve as circunstâncias dos personagens e pode enfatizar metáforas e subtextos.
Em geral, eu sempre fui fascinada pela arquitetura. Acho que é uma linguagem universal. Por meio dos edifícios, vemos como as culturas se manifestam e como as pessoas vivem. É um aspecto muito importante do ser humano.
Por exemplo, com Striking Vipers de Black Mirror fiquei muito entusiasmada em encontrar a conexão com a identidade de gênero, a brincadeira entre os papéis assumidos e a sexualidade em um jogo de realidade virtual. Isso me deu uma licença para brincar, inventar e criar. Eu senti que tanto o "mundo do jogo" quanto o "mundo real" tinham que estar visualmente conetados e, acima de tudo, eu sentia que podia brincar com isso.
Striking Vipers foi originalmente ambientado no Reino Unido, porém, mais tarde, mudamos o cenário para os EUA pois sentimos que isso destacaria os subúrbios e a rotina do casamento de Danny e Theo, os personagens principais do capítulo. Isso acabou nos levando a filmar inteiramente em São Paulo, Brasil, pela distopia futurista que procurávamos. Com minha pesquisa encontrei uma estilização sutilmente maior nesses locais brasileiros. São Paulo é única: praticamente não tem publicidade e muitos dos prédios são apresentados em uma delicada paleta de cores pastéis suaves. A cidade está repleta de uma arquitetura incrivelmente inspiradora com edifícios de Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi, Paulo Mendes da Rocha, Piratininga Arquitetos Associados e o icônico Alphaville que me convenceu a montar o cenário do nosso episódio de Black Mirror.
Com o design, imaginei um jogo de repetição, quadrículas, o uso de texturas e materiais mínimos e, após diligente pesquisa para o nosso mundo virtual, fui inspirada pelo artista japonês de anime Hiromasa Ogura em combinação com a estética do Street Fighter. O escritor e showrunner Charlie Brooker havia escrito ambientes de jogo diferentes, mas eu propus um tema japonês para criar um design mais coerente e tanto o diretor Owen Harris quanto Charlie o aceitaram. Este tipo de colaboração foi incrivelmente gratificante e uma vez construída esta estrutura de design pudemos imaginar e enriquecer a história com todas as nossas decisões de design em colaboração com o diretor de fotografia Gustav Danielsson. Refinamos nossa paleta de cores, desenvolvemos a ideia de molduras dentro de molduras, o uso de espelhos e texturas para filmar através de superfícies de vidro e criamos um mundo visualmente unificado.
FD: Você poderia nos contar mais sobre seu processo de trabalho? Como você lida com os prazos a partir da velocidade exigida pela indústria cinematográfica atual? Que gama de experimentações você utiliza?
AB: A primeira leitura do roteiro é um processo muito instintivo e procuro permanecer aberta ao material, imaginando os personagens e os ambientes com a emoção e o subtexto em primeiro plano. Cada roteiro é muito diferente e isso me dá uma licença para brincar, inventar e criar ideias específicas para cada um deles.
Primeiro, começo a pensar em maneiras de projetar e fazer algo com o que, superficialmente, não parece ser tão interessante. Eu começo com o roteiro e depois começo a investigar. Penso mais em criar configurações harmônicas sobre o que deve ser sentido do que o que deve ser visto nestes estágios iniciais. Então, eu crio um guia de referências visuais. Sou muito orgânica com este processo. Algumas imagens são marcadoras de posição, outras marcam as sensações ou humor, outras consideram questões de design e paleta de cores, e outras são ideias para o diretor ou cineasta.
Logo, escrevo uma lista de todos os requerimentos de imagem para poder visualizar praticamente como o projeto todo. Contrato colaboradores-chave como o supervisor do direção de arte, ilustrador de conceitos, diretor de arte, decorador de cenários, coordenador de construção e artista de cenários, todos com experiência na indústria do cinema. Compartilhamos a visão e, como equipe, podemos oferecer o aspecto geral de um filme dentro de um limite orçamentário e segundo o previsto.
Quando sinto que realmente conheço a história e os personagens, e as ideias de desenho estão claras na minha mente, trabalho na arte conceitual. Em seguida, eu coloco todos os cenários e locais na ordem do roteiro no departamento de arte e depois adiciono mais detalhes sob referências visuais, telas, amostras de tinta, figurinos e desenhos de cenários. Todos podem entender a história visualmente e eu acho que esta é uma ferramenta muito útil para o diretor do departamento de arte, DP e atores verem como o filme inteiro vai parecer.
A partir de agora, em cada decisão de escolha de local, os materiais e cores estabelecidos são baseados nestas primeiras ideias. A etapa de pré-produção é consolidar essas necessidades para o filme. Os aspectos técnicos fazem parte de tudo, eu até olho para os menores detalhes, mas é importante permanecer orgânico, aberto a mudanças e sempre curioso.
FD: Na era da visualização por computador, parece não haver limites para a concepção de espaços para filmes. Pode nos falar sobre isso? Como decide qual espaço ou arquitetura manter?
AB: Meu processo é sempre o mesmo: conceituar, projetar e depois construir os ambientes do filme. A relação entre diretor, designer e DP é muito especial na primeira fase da pré-produção, já que decidimos essencialmente que idioma o filme vai falar em um nível muito básico.
Com a era computadorização, agora temos ferramentas incríveis para expressar a nossa visão e comunicar claramente ambientes cinematográficos. Atualmente, estou utilizando Twinmotion, um programa de software de renderização / visualização de arquitetura extremamente eficiente e que funciona bem com Sketchup e Rhino. Produz renders e vídeos em questão de horas. O diretor poderá andar pelos cenários com óculos de realidade virtual. Mesmo assim, eu ainda adoro construir maquetes brancas simples e úteis.
A execução do projeto muitas vezes se resume a uma questão de escala, recursos e espaço físico para alcançar a imagem requerida. Eu vejo regularmente o benefício de construir fisicamente o máximo de interatividade possível com os atores e estabelecer detalhes, texturas, paletas de cores e iluminação.
Meu envolvimento com o departamento de efeitos visuais em um filme agora pode ser descrito como uma porta giratória. Mantenho contato constante com o supervisor de efeitos visuais, fornecendo uma arte conceitual detalhada, com uma série de referências e desenhos arquitetônicos. O diretor e supervisor de efeitos visuais dos meus projetos muitas vezes vêem o valor da contribuição do designer na pós-produção.
FD: Alguma recomendação para os interessados em design de produção e para as novas gerações que trabalham mais com ferramentas digitais?
AB: Eu recomendaria estudar - completar um curso de design de produção ou um curso baseado na indústria. Obter experiência de trabalho, encontrar oportunidades e manter a comunicação com os contatos da indústria que você estabelecer. Criar um site como um portfólio online para demonstrar suas abordagens criativas e para mostrar suas habilidades técnicas. Ler livros sobre design de produção. Aprender habilidades técnicas como Sketch Up, Photoshop, Rhino, Vectorworks, ou Maya - encontre a ferramenta que mais lhe convém. Arranjar um mentor. Assistir a filmes e ser flexível, trabalhando sempre com energia e humor.