A forma de organizar um espaço reflete os princípios de uma cultura. Para entender a arquitetura japonesa, é necessário olhar para sua cultura, compreender seus princípios e explorar seus significados considerando as noções do visível e invisível.
"A planta de arquitetura dos antigos mestres construtores japoneses não possuía nem fachadas nem cortes. O desenho era bidimensional. Os elementos importantes eram: coluna e viga, representados por pontos pretos, que simbolizavam todo o edifício. Apenas observando estes pontos um bom mestre era capaz de visualizar o edifício acabado. De acordo com Itoh “a existência deste sistema trouxe a possibilidade de visualização mental de todas as partes acima do plano” (ITOH). Tal capacidade de visualização permitia que o intervalo entre pontos, conhecido como ma, constituísse um tipo de espaço que, apesar de invisível, fosse considerado." — Right Neiva, 2008.
O ma é um conceito intrínseco nos hábitos e na memória cultural japonesa; é algo subjetivo, caracterizado pela imaterialidade. Sua origem nasce da ideia de um espaço vazio demarcado por 4 pilastras que estabelecem uma conexão com o divino. Este elemento se apresenta de diferentes maneiras na cultura japonesa, como espaço-entre, espaço e tempo, intervalo e entre outros.
O pavilhão de arte KOHTEI, construído em 2016, está localizado nos jardins do templo Shinshoji Zen na cidade de Fukuyama, província de Hiroshima. Foi desenvolvido pela SANDWICH - Creative Platform of Contemporary Art, situada na Cidade de Kyoto, Japão. O escritório foi criado pelo artista plástico Kohei Nawa em 2009 e desenvolve tanto projetos de arquitetura quanto de artes plásticas.
O templo Shinshoji Zen, em que KOHTEI está localizado, foi fundado como um lugar para consolar o espírito das pessoas que faleceram em acidentes no mar; por isso, a forma escultórica do pavilhão remete à um navio. Elevado do chão por pilotis, o edifício aparenta flutuar na paisagem, trazendo uma experiência memorável para os visitantes desse complexo.
“O edifício em forma de navio parece flutuar sobre a paisagem rochosa. Ao caminhar por este oceano de pedras, repleto de materialidade, o visitante sobe a suave rampa para chegar na entrada do edifício. Uma vez em seu interior, um oceano silencioso e ondulante de reflexos se revela na escuridão." — Pedrotti appud Kohei Nawa, 2017.
KOHTEI transmite nos espaços internos e externos do pavilhão, a sensibilidade e a delicadeza do conceito ma, gerando expressões únicas da materialização da coexistência, continuidade, memória, e percepção do espaço e tempo.
Por meio de um percurso que conduz o indivíduo gradualmente, a obra estabelece uma oportunidade de sentir e contemplar os espaços conformados, os jardins, a natureza e os vazios ali presentes.
O formato do pavilhão dialoga com o desenho dos telhados dos templos e casas tradicionais, este é um elemento muito importante da arquitetura japonesa. Alguns dos estilos de telhado que se destacam são: Irimoya, Kirizuma, Hogyo e Yosemune. KOHTEI é uma releitura do estilo irimoya muito comum em templos budistas e xintoístas, e também em algum castelos e palácios. Esse estilo chegou ao Japão no século VI por influência chinesa; estes são telhados de quatro águas e com geometria curva. O edifício principal do templo Ninnaji é um exemplar estilo irimoya.
Além da forma do telhado a sua técnica construtiva também dialoga com a arquitetura tradicional local. A madeira utilizada para a construção do telhado foi a Sawara, e a técnica de construção foi a kokera-buki, uma técnica milenar japonesa. Nela a fixação das telhas, que tem uma dimensão de aproximadamente 100mm x 300mm x 3mm, é feita por pregos de bambu; nesta obra foram utilizadas no total 340.000 telhas.
O vazio, criado pelo espaço de pilotis sob o volume do pavilhão, gera uma experiência que enaltece a percepção e o sentir; é a materialização do ma, compreendido como a consciência daquele lugar. Através do percurso, cada indivíduo terá uma experiência única do espaço e tempo no Pavilhão, pois a percepção dessa espacialidade se dá enquanto o indivíduo caminha. A composição arquitetônica privilegia a relação e o contato entre os elementos, e não a apresentação do conjunto todo. É a experiência gerada através do caminhar, da interação do indivíduo no espaço, da sensação dos materiais e da relação do interior com o exterior do projeto.
Assim, por meio de muitos elementos tradicionais da arquitetura japonesa, KOHTEI estabelece uma relação direta com a forma estética ma, traduzido em diferentes aspectos e espaços que compõem de modo peculiar, esse pavilhão. Ma é valorizar o vazio, o oculto; é privilegiar a percepção, o sentir; é transmitir equilíbrio e instituir uma conexão com o sagrado, com o divino. O ma está associado ao vazio, como uma possibilidade de gerar sensações, uma potencialidade e simultaneidade nesse espaço e tempo. Diferentemente da compreensão ocidental do vazio, o ma é uma ausência presente.
Referências Bibliográficas
OKANO, Michiko. Ma: a estética do entre. 2013-2014. Revista USP. São Paulo. 2013-2014.
OKANO, Michiko. Ma: entre-espaço da comunicação no Japão. 2007. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC- SP, São Paulo, 2007.
GRIFFITHS, Alyn. Sandwich creates “ship-shaped” art pavilion in Fukuyama to commemorate deaths at sea. Disponível em: <https://www.dezeen.com/2017/07/10/sandwich-ship-shaped-kohtei-art-pavilion-zen-garden-fukuyama-city-hiroshima-japan/> Acesso em: 22 mai 2019.
NEIVA, Simone; RIGHI, Roberto. A cultura e o espaço urbano no Japão. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.099/119> Acesso em: 22 mai 2019
PEDROTTI, Gabriel. Pavilhão Kohtei / SANDWICH. Disponível em< https://www.archdaily.com.br/br/876957/pavilhao-kohtei-sandwich> Acesso em: 20 mai 2019.
SANDWICH. Kohtei. disponível em: < https://www.kodaiandassociates.com/kohtei> Acesso em 20 mai 2019.
Catarina Calil e Inaê Negrão são graduadas em Arquitetura e Urbanismo pela Escola da Cidade (2019). Este trabalho foi realizado para a matéria "Obras fundamentais - práticas contemporâneas (1970 a 2019)" do arquiteto Gabriel Kogan, na Escola da Cidade, no 1º semestre de 2019.