Ensaio produzido originalmente como trabalho final da disciplina eletiva Moradias Tradicionais da Escola da Cidade em 2017 aborda a presença pouco conhecida de construções pré-colombianas de grande escala presentes no meio da Floresta Amazônica.
Nos últimos 40 anos, foram encontradas no Estado do Acre centenas de formações geométricas maciças escavadas no solo – os chamados geoglifos. Estas construções demonstram que a Amazônia já foi habitada há milhares de anos e que a sua vegetação foi manejada, desmentindo a imagem de que a região seja um território intocado.
As linhas que conformam estes polígonos na terra são, na realidade, enormes trincheiras de 1 até 2 metros de profundidade e 11 metros de largura, acompanhadas por muretas externas compostas pela deposição do solo escavado, sendo necessária a remoção de um grande volume de terra e uma mão de obra considerável para construir essas arquiteturas. Por causa das dimensões surpreendentes é impossível visualizar o tamanho e a forma dos geoglifos por inteiro à nível do solo, necessitando sobrevoá-los com aeronaves para que se possa ter uma visão completa.
Ironicamente, se não fosse pela expansão da fronteira agrícola, os mais de 500 geoglifos pré-históricos catalogados até o momento permaneceriam ocultos sob a cobertura vegetal, como muitos provavelmente ainda estão, ao longo dos vales do rios Acre, Iquiri e Abunã, ao norte da Bolívia, oeste de Rondônia e sul do Amazonas.
Ainda que o desmatamento tenha acarretado na descoberta de novos geoglifos, esta é uma forma nociva para se fazer um achado arqueológico de tal amplitude, pois encontrar formações como essas através da derrubada predatória da vegetação não garante sua preservação e pode ocasionar até mesmo danos às pesquisas posteriores.
As formas dos geoglifos do Acre são perfeitamente geométricas, variando entre circulares, quadradas, hexagonais, elípticas ou retangulares, podendo ser círculos concêntricos ou dentro de quadrados, e vice e versa, com diâmetros de 100 a 300 metros e caminhos conectando-os entre si, com vias de entrada e saída. São verdadeiras arquiteturas vernaculares com evidente intenção de transformar e delimitar espaços através da ação humana.
Mesmo estando espalhados sem uma aparente centralização em um território com raio maior que 250 km, foi notado uma concentração de incidências em áreas de platô, com altitudes de 180 a 230 metros, perto de nascentes, indicando as áreas mais propícias para o encontro de novas construções (SCHAAN et al., 2010).
A cobertura vegetal existente antes da construção dos geoglifos era principalmente de floresta de bambu, de acordo com estudos paleobotânicos, que comprovaram que o bambu estava lá há pelo menos 6.000 anos e não foi introduzido pelos ameríndios, mas fazia parte da paisagem original (WAITLING, 2017).
Outra conclusão destes estudos paleobotânicos é que os geoglifos não foram construídos em floresta intocada que foi desmatada, mas em terras anteriormente ocupadas e alterada por atividades humanas ao longo de milhares de anos, ou seja, os primeiros habitantes da região limparam parte da floresta e permitiram a proliferação somente das espécies de plantas que julgavam necessárias, usando técnicas primitivas de manejo florestal.
As escavações não trouxeram à luz um número significativo de artefatos, salvo algumas poucas cerâmicas, o que sugere que os geoglifos do Acre não eram lugares de habitação permanente, mas de usos esporádicos, assim como os geoglifos de Nazca, descobertos em 1927, e cujas formas mais conhecidas são de animais como beija-flor, abelha e macaco.
As linhas de Nazca, que se tornaram mais conhecidas a partir dos anos 70, desencadearam uma série de teorias para justificar sua construção, de dutos de drenagem à calendário astrológico. Uma delas, divulgada no livro Eram os Deuses Astronautas? do suíço Erich von Daniken, em 1968, alegava que tais formações foram construídas por vida extraterrestre inteligente e por isso só faziam sentido a partir de uma grande altura. Os arqueólogos discordam, no entanto, explicando que os ameríndios pré-colombianos que criaram essas obras de arte há milhares de anos em Nazca pretendiam apaziguar os deuses e persuadí-los a fazer chuva (PROULX, 1999).
Os geoglifos no Acre estão a 1.000 km a nordeste do deserto de Nazca, e a falta de chuva não é um problema no Acre tropical. Contudo, há a hipótese, levantada pelos arqueólogos Alceu Ranzi, responsável pela primeira divulgação dos geoglifos à comunidade científica e à imprensa, e Rodrigo Aguiar, de que estas construções tenham sido feitas em um período de maior aridez, há mais de 11.000 anos, e que inclusive tenham relação com os dos Andes peruanos, evidenciando um intercâmbio entre os diferentes povos com redes de troca à longa distância (RANZI, AGUIAR, 2000).
Embora não haja uma única interpretação entre arqueólogos e pesquisadores que investigam a questão sobre a função e uso dos geoglifos, as conjunturas parecem convergir para a ideia de que esses eram espaços sociais coletivos de usos cerimoniais, simbólicos e ritualísticos.
As pesquisas arqueológicas e o levantamento de dados sistemáticos iniciados em 2005 pelo Grupo de Pesquisa Geoglifos da Amazônia, uma equipe brasileira-finlandesa liderada por Denise Pahl Schaan, posteriormente ligada às universidades federais do Acre e Pará (UFAC e UFPA), adotaram como método de sondagem a combinação de três tipos de levantamento: a prospecção remota através de imagens de satélites, que permite sondar a região previamente e evitar deslocamentos desnecessários, porém as imagens nem sempre são atualizadas ou cobrem todo o Estado do Acre em alta resolução; o sobrevoo com aeronaves, que garante o registro de imagens à 800 m de altura; e a prospecção terrestre, que proporciona a busca por artefatos, escavações, medições e demais coletas de dados.
As investigações do Grupo de Pesquisa Geoglifos da Amazônia confirmam cada vez mais que o processo de ocupação e assentamento da região amazônica foi realizado por numerosos grupos indígenas com grande conhecimento para modificar o ambiente e firmar suas características identitárias na paisagem.
Sendo assim, os geoglifos do Acre são exemplos de arquitetura vernacular por se caracterizarem como estruturas antrópicas, resultantes da ação humana, delimitando espaços e transformando o seu entorno de acordo com as necessidades daqueles que as ocupavam. A regularidade de suas formas, dimensões e locais de implantação nos permite concluir que, independentemente de suas funções, que ainda devem serem investigadas, eles possuíam uma técnica arquitetônica aplicada extensivamente, dotadas de cálculos e conhecimentos matemáticos.
Ao fazer parte do panorama cultural dos povos que ali habitaram, demonstrando não só suas capacidades tecnológicas de gerenciar o ambiente, mas sobretudo o interesse em criar uma ocupação do território, os geoglifos do Acre são um exemplo ímpar de patrimônio histórico-social construído com grande importância para a identidade amazônica e, por isso, criam demandas não apenas de preservação, mas também de pesquisa sobre eles.
Referências Bibliográficas
PROULX, Donald. The Nazca Culture: An Introduction. Zurique: Museum Rietberg Zürich, 1999.
RANZI, A.; AGUIAR, R. 2000. Registro de Geoglifos na região Amazônica – Brasil. Munda 42:87-90
SCHAAN, Denise. Geoglifos: mensagens para os Deuses?. Biblioteca da Floresta, Acre, 2009.
SCHAAN, Denise; RANZI, Alceu; PÄRSSINEN, Martti (Orgs.). Arqueologia da Amazônia Ocidental: os geoglifos do Acre. Belém: Editora Universitária UFPA, 2008. 192 p.: il. ISBN 978-85-247-0428-4.
SCHAAN, Denise; BUENO; Miriam; RANZI, Alceu; BARBOSA, Antonia; SILVA, Arlan; CASAGRANDE, Edegar; RODRIGUES, Allana; DANTAS, Alessandra; RAMPANELLI, Ivandra. Construindo paisagens como espaços sociais: o caso dos geoglifos do Acre. Revista de Arqueologia, Volume 23, 1:30-41, 2010.
VON DANIKEN, Erich. Eram deuses astronautas. Zurique: Bonnier AB, 1968.
WAITLING, Jennifer; IRIARTE, José Iriarte; MAYLE, Francis E.; SCHAAN, Denise; PESSENDA, Luiz C. R.; LOADER, Neil J.; STREET-PERROTT, F. Alayne; DICKAU, Ruth E.; DAMASCENO, Antonia; RANZI, Alceu. Impact of pre-Columbian “geoglyph” builders on Amazonian forests. PNAS: 6 de fevereiro de 2017. (http://www.pnas.org/content/114/8/1868.full)
Sobre a autora
Marina Brant é arquiteta e urbanista graduada pela Escola da Cidade em 2017, mestre em Arquitetura Paramétrica pela UPC ETSAV de Barcelona em 2019.
Em memória de Denise Pahl Schaan (1962-2018), arqueóloga e pioneira nos estudos sobre geoglifos.