Este artigo foi publicado originalmente no Common Edge.
Este artigo é um trecho extraído do capítulo final do livro Draw in Order to See: A Cognitive History of Architectural Design, no qual Mark Alan Hewitt esboça algumas recomendações para uma reforma integral da prática e do ensino da arquitetura. Ele parte da teoria da cognição corporificada — a ciência que estuda a importância dos nossos sentidos no processo de cognição humana, e como através deles, percebemos e nos relacionamos com o espaço — para ressaltar a urgente necessidade de renunciarmos ao legado alienante do racionalismo iluminista que se estende desde a revolução industrial até os dias de hoje e que, tanto nos afasta de uma arquitetura menos visual e consequentemente, mais sensível. Embora a importância da cognição estendida para a nossa compreensão do espaço e portanto, para o desenvolvimento da prática e do ensino da arquitetura já esteja sendo explorada há décadas por muitos arquitetos e algumas poucas instituições de ensino ao redor do mundo, tais conceitos permanecem ocultos em um território inexplorado pela grande maioria de nossos colegas arquitetos.
1. O desenho à mão livre como instrumento e ferramenta de criação. O traço é essencial para os arquitetos, não apenas como um mero exercício ou passatempo, sejam eles profissionais ou alunos em formação. A prática cotidiana do desenho à mão é uma atividade que fortalece as conexões nervosas do nosso cérebro, envolvendo muitas capacidades cognitivas que utilizamos em nossos processos criativos, da mesma maneira que um músico precisa praticar seus acordes para manter ou aperfeiçoar suas habilidades. Estudantes de arquitetura, desde o início de sua formação, devem explorar e conviver com o traço, com o esboço, o croquis, utilizando o desenho como uma ferramenta de estudo e documentação ad infinitum.
2. Procure visitar novos lugares e conhecer pessoalmente as principais obras de arquitetura de sua região e país o mais rápido possível. Ao invés de priorizar a imagem fotográfica, procure gravar suas experiências visuais em um caderno de esboços, delineando suas impressões e sensações em desenhos e palavras. Viajar para o exterior também ajuda. O contato direto com espaços e estruturas que inspiraram também nossos antecessores é fundamental para construirmos uma ponte entre o passado, o presente e o futuro. Tudo aquilo que projetamos no papel carrega consigo elementos de nossas experiências prévias, desta forma, cada lugar que visitamos nos ensina algo, não apenas sobre a arquitetura, mas também sobre nós mesmos.
3. Estude a história da arquitetura e tudo aquilo que já foi feito antes, evitando utilizar apenas referencias contemporâneas em seus projetos. A história da arquitetura que nos ensinam na faculdade geralmente começa no início do séculos XVIII ou XIX. É como se estivéssemos banindo das nossas vidas o próprio conceito de história, algo tão inadmissível nos dias de hoje quanto negligenciar tudo aquilo que se constrói para além da Europa. É fundamental proporcionar uma visão de mundo mais ampla e abrangente, ensinando os jovens arquitetos a enxergar as diferenças entre os elementos da arquitetura clássica e da arquitetura tradicional chinesa assim como de outros sistemas não-ocidentais. Tudo isso fará parte de nosso acervo de memórias e imagens que a qualquer momento, podem ser acessadas para o benefício da arquitetura.
4. Faça com que os alunos que se envolvam com a comunidade. Muitas escolas de arquitetura oferecem uma série de programas específicos para que seus alunos se engajem desde muito cedo com clientes reais, pessoas que precisam de serviços simples e gratuitos. O “Yale Building” é um dos projetos sociais mais famosos entre as principais universidades dos Estados Unidos, uma iniciativa que proporciona aos alunos um contato direto com a comunidade, envolvendo-os com a solução de problemas “reais.” Projetar apenas no papel pode ser uma armadilha para os jovens alunos, pois desenhos são muito limitados em sua capacidade de traduzir a experiência do espaço em si. Somente através do nosso corpo e dos nossos sentidos é que podemos experimentar todas as qualidades espaciais intrínsecas à nossa arte.
5. Mantenha contato regular com comerciantes, construtores e fabricantes. Nos Estados Unidos, a estrutura de ensino nas principais escolas de arquitetura oferece diversas oportunidades para esta espécie de ensino continuado, promovendo contato direto com os demais atores envolvidos com a prática profissional da arquitetura, viabilizando a realização de oficinas de construção in loco. Dentro da universidade, promova a introdução de oficinas multidisciplinares que envolvam alunos e professores de outros departamentos como da engenharia civil e de materiais, garantindo que estes jovens arquitetos tenham contato com os demais envolvidos na experiência “real” da arquitetura fora da universidade.
6. Encontre um equilíbrio entre teoria e prática privilegiando meios hápticos para introduzir conceitos. A disciplina da arquitetura, historicamente ofuscada por uma quantidade ostensiva de imagens, negligenciou a importância dos demais sentidos para a nossa experiência do espaço, desprovendo os arquitetos de uma sensibilidade que vai muito além do visual. Embora seja fundamental para um arquiteto entender o poder simbólico das formas como portadoras de significado, o foco excessivo na semântica projetual tem nos afastado paulatinamente da verdadeira essência da própria arquitetura.
7. Integre ferramentas analógicas e digitais nos processos de projeto. Nenhum arquiteto hoje pode se dar ao luxo de contar apenas com uma prancheta, abrindo mão das novas tecnologias e softwares dedicados à arquitetura. Entretanto, não há nenhuma razão para abdicarmos totalmente das ferramentas manuais no lançamento de uma ideia ou projeto, assim como as ferramentas digitais podem nos ajudar e muito a desenvolver projetos mais complexos e de forma mais eficiente.
8. Evite qualquer forma de representação digital ou virtuais até a entrega final do projeto. Diversas pesquisas sugerem que trabalhar diretamente com ferramentas digitais desde o início de um projeto acaba por distorcer a nossa compreensão do espaço. À medida que parece cada dia mais fácil desenvolver um projeto de cabo à rabo no mesmo software, é preciso saber a hora exata de deixar o papel de lado e abri o primeiro arquivo. Apesar do avanço dos últimos anos, nossos tablets ainda não nos proporcionam toda à flexibilidade e capacidade expressiva que podemos alcançar com tintas, canetas, lápis e carvão em uma folha de papel.
9. Encontre um balanço entre as ferramentas manuais e digitais, empregando o desenho à mão livre como arquitetos utilizavam seus gabaritos no passado. Evite ser dependente de um determinado software “inteligente” e suas soluções padronizadas, que de largada já aplicam determinados materiais e texturas antes mesmo de tomarmos qualquer decisão de projeto, minando a nossa capacidade criativa.
10. Contrate professores e pesquisadores dedicados ao desenvolvimento de soluções práticas. Procure construir um corpo docente comprometido com a prática da arquitetura, contrate seus professores baseados em evidencias concretas, construindo um equilíbrio entre teoria e prática certificando-se de que os alunos serão acompanhados por profissionais atuantes em cada um de seus anos de formação.
11. Inclua nos ateliês de prática de desenho e projeto pesquisas em cognição corporificada e estendida. Envolva seus alunos com a experiência física do espaço, bem como com a construção de modelos e esquemas em escala 1:1.
12. Enfatize desde o início a natureza multidisciplinar da arquitetura, promovendo processos colaborativos entre os alunos ao invés de enfatizar a “originalidade” individual como um critério relevante para a arquitetura. Incentive os alunos a trabalhar em equipe e ofereça oportunidades para que eles possam trabalhar à quatro mãos com mais frequência. Apesar da dificuldade de avaliar as contribuições individuais durante o processo de avaliação, o trabalho em equipe é fundamental para a formação de nossos futuros arquitetos e arquitetas.
Essas recomendações aqui elencadas, mesmo se implementadas gradualmente e em doses homeopáticas, podem proporcionar enormes benefícios para as futuras gerações de arquitetos e consequentemente, para a prática profissional de nossa disciplina, resultando em uma arquitetura mais sensível e profundamente enraizada na experiência do indivíduo, provocando uma ruptura ou alternativa — a tanto tempo esperada e necessária — com a suposta racionalidade que domina a prática da arquitetura à séculos.