A umidade do ar é famosa, atingindo percentuais inclementes para quem nunca visitou um deserto. Árvores de troncos retorcidos, de cascas grossas e de folhas peludas saem do solo tentando vencer a gravidade, mas se contorcem de tal forma que é como se o calor as empurrasse novamente em direção ao chão. O vermelho da terra é onipresente, acrescentando uma dose de drama por todo o canto, como se a temperatura fustigasse a terra a ponto de ela sangrar. Aqui, no cerrado, não há a densidade da mata úmida, escura, como uma floresta de ameaçadora saída de um romance de Jack London, ou como uma testemunha em transe imemorial, como vista numa novela de Joseph Conrad.
Olha, o cerrado é diferente. A flora se compadece de nós. As árvores baixas, secas e cascudas reproduzem nosso próprio gestual de estafa sob este clima seco. São nossas companheiras de jornada nesse drama climático. Árvores e arbustos que já parecem cansados ao amanhecer, ao meio-dia se assemelham a famélicos rastejando em busca de abrigo, ao entardecer são severinos esgotados, tais como os candangos que vieram para cá há sessenta anos, e à noite se petrificam, desalmadas, sob a luz do céu noturno.
A deficiência nutricional de um solo com excesso de alumínio, a frequência dos incêndios e um escleromorfismo não-sei-o-quê são os responsáveis por produzir esta flora (ou uma combinação de elementos semelhante a esta, a partir do que lembro do ensino fundamental). Em fotos, os galhos retorcidos de um embiriçu sem folhas ou o tronco encouraçado e protuberante de um pequizeiro, especialmente quando à luz dura e implacável do meio-dia, contam uma história de açoitamento diário, do qual estas árvores saem tão laceradas quanto elegantes. O cerrado savânico, aos olhos de um fotógrafo, é uma multidão de arbustos estáticos, estóicos, indiferentes à secura, aos fogos e às chuvas. Um biólogo explicaria essa paisagem de outra forma, seguindo os rigores da ciência, explicando o quão integrado ao bioma cada um dos seus elementos naturais está, mas eu mesmo tenho vontade de chegar perto de uma caliandra e, sentindo todo o vermelho dos estames dela penetrando na minha retina, falar: “Você, tão delicada, enfrenta os castigos deste clima com muita elegância. Posso fazer uma foto sua?”
Foi esta paisagem bruta e milenar que viu, impávida, um colosso de concreto, piche e tijolos ser construído ao longo de quase quatro anos: Brasília. A capital de um país construída no meio do nada. Um feito de engenharia tão inacreditável quanto desumano. Como foi para os mercúrios-do-campo sobreviveventes à terraplanagem olhar os anexos do Congresso Nacional, torres gêmeas e impossivelmente retas tocando o céu sem nuvens? Num piscar de olhos em termos geológicos, uma nova paisagem foi construída, repleta de linhas e ângulos e volumes irreais, jamais vistos na natureza. Hoje, novas volumetrias compõem esta paisagem, mesmo que nem sempre haja harmonia entre o naturalmente formado e o construído por humanos (retornaremos a este ponto em alguns instantes).
Há a paisagem de um lugar e há recortes desta paisagem que compõem a memória e a identidade do tal lugar. Por exemplo, imagens de araucárias têm um lugar afetivo para os paranaenses, que fizeram desta árvore um dos seus elementos identitários. Decalques de araucárias são comuns na linguagem visual de padarias, postos de gasolina, hotéis e hotéis fazenda, farmácias, escolas e de toda sorte de estabelecimentos que compõem o cotidiano da “Rússia Brasileira” (araucárias também são motivos recorrentes nos famosos centros de tradição gaúcha, os CTG’s, agremiações populares em toda a região sul do país). Por todo o estado do Paraná, troncos com até cinquenta metros de altura ostentando copas em formato de candelabro — eu sempre me impressiono ao ver uma araucária.
A mesma relação entre paisagem e identidade que há entre paranaenses e araucárias também existe entre cariocas e o Pão de Açúcar e demais rochedos, pedras em torno das quais o coletivo humano se espalhou e aos quais se adaptou. Esta, uma relação entre paisagem e identidade já há mais tempo familiar aos brasileiros. Ocorrem à memória outros exemplos, como o do cedro aos libaneses, que o têm na bandeira nacional, ou a folha de samambaia aos neozelandeses, a bandeira não-oficial do país, símbolo dos All Blacks, a poderosa seleção nacional de rugby. Araucárias, rochas, cedros, samambaias — elementos de paisagem que são repositório de memórias, coletivas e individuais, e signos de identidade.
Para o brasiliense, também há elementos de paisagem que formam a memória afetiva local. Um deles, o primeiro dos três que vou mencionar, é o céu, ouvido em todo tipo de canções e rotineiramente mesmerizante para os habitantes do planalto central. De muitos pontos da cidade, é possível ter 360 graus de abóbada celeste, um luxo visual, sem dúvida. Duas vezes por dia, quando o sol nasce e quando se põe, o habitante da capital federal é premiado com espetáculos multicoloridos; e entre o alvorecer e o anoitecer, durante a estiagem, uma imensidão azul sem nuvens cobre o cerrado. Esta abóbada celeste, este “céu de brigadeiro” irretocável, comporia o domo perfeito dos terraplanistas mais fetichistas.
O segundo elemento paisagístico que compõe o patrimônio imagético do brasiliense, e vou usar esta palavra no singular para simplificar a redação, é o prédio. Sabe os exemplos anteriores que citei, as araucárias para o Paraná e a folha da samambaia para a Nova Zelandia? Pois para o brasiliense os personagens de paisagem presentes em todo lugar são prédios. O Congresso Nacional, a Ponte JK, a Torre de TV, a Torre de TV Digital, a Catedral Metropolitana, o Palácio da Alvorada, o Museu da República — estas e outras arquiteturas compõem a identidade paisagística local e são usados na linguagem visual de quase tudo: de escolas a motéis, de padarias a boates, de bares a centros religiosos, etc. São também os cenários recorrentes de editoriais de moda, books de noivos, chamadas jornalísticas. São os pontos turísticos naturais da cidade, e usar a palavra “naturais” aqui faz todo o sentido; são também o patrimônio estético da cidade e, ao mesmo tempo, sua própria identidade. O que a arquitetura representa para a capital federal, e para a nossa própria cultura brasileira, é matéria para outra crônica. Mas ela se relaciona com o nosso terceiro elemento, que é o nosso assunto: o canteiro de obras.
Um formigueiro humano foi transportado para o planalto central para fabricar esta paisagem e deste acontecimento surgiram imagens que fazem parte da cultura brasiliense. As fotografias da construção de Brasília têm aquele encanto das grandes mobilizações humanas, o que de fato foi. A construção da nova capital federal envolveu todos os tipos de engenharias, artimanhas e propagandas, e nestas podemos incluir o uso de algumas palavras de Dom Bosco, transformadas em profecias e utilizadas para atrair os trabalhadores braçais que de fato ergueriam a cidade, cognominados “candangos”. Todo o espírito daquela falsa utopia estava muito mais sintetizado nas imagens dos canteiros de obras do que em quaisquer discursos que Augusto Frederico Schimdt tenha escrito para Juscelino Kubitschek. Naqueles canteiros, brasileiros necessitados, iludidos e cheios de esperança tentavam construir algum futuro.
Brasília é uma das poucas capitais mundiais (a única?) a ter registros de sua concepção, o projeto do “Plano Piloto” feito por Lúcio Costa; de sua gestação, as imagens dos canteiros e da construção; e do seu parto, as da sua inauguração. Como fotógrafo, dentre estas imagens sempre me atraíram mais as dos canteiros. Aqui cabe falar bem pouquinho sobre o fazer fotográfico.
Todo fotógrafo tem seu próprio evangelho para fazer seus cliques. Isto é o tal olhar. O olhar de cada um, a razão por que dois fotógrafos jamais conseguiriam fazer fotos idênticas, mesmo que com o mesmo equipamento, sob as mesmas condições e ao mesmo tempo. Um porquê com frequência inefável. Tudo o que vivemos (tendo ou não digerido as vivências) até o momento de pressionar o disparador conta como seu evangelho pessoal, transmutado, ao momento do clique, na escolha de fotografar aquele determinado sujeito, com aquela intenção e daquela maneira, de acordo com todo o conhecimento técnico dominado naquele instante. Há também a projeção. Fotografar é projetar-se. Há algo em quem opera a câmera que passa através da lente e atinge o sujeito fotografado, e o mesmo algo retorna atravessando a lente e penetra no fotógrafo, traçando uma lemniscata entre os dois extremos da lente. A escolha do assunto a ser fotografado já é ditada por esta projeção. Para quem escreve e fotografa, há um paradoxo ao comparar as duas formas de expressão: são idênticas, mas uma não substitui a outra. Este texto é uma tentativa de juntá-las, ao tratar da construção de uma nova paisagem (retomando o que indiquei no quarto parágrafo).
Brasília não é uma cidade para flanar. A borboleta (e não avião) desenhada por Lúcio Costa é extensa de menos para carros e de mais para caminhantes. Somado às dimensões da cidade, excruciantes para o flaneur, há o problema da mobilidade urbana: a capital federal é péssima nisso. Brasília é um museu ao ar livre para ser visitado de carro, cobrindo longas distâncias para apreciar cada obra de arte permanentemente exposta: assim a vê quem é fotógrafo de paisagens e estruturas e amantes praticantes ou apenas amantes de arquitetura. Desta forma, podendo ignorar a (falta de) mobilidade, a experiência visual de Brasília é outra. Não consigo abrir mão da metáfora do museu ao ar livre, por mais batida que seja. O fotógrafo-cronista se desloca muito de uma obra à outra, sempre impressionado com a adequação de cada prédio ao seu respectivo contexto — e aqui peço que compare o prédio e seu contexto à já mencionada caliandra e seu hábitat. “Posso fazer uma foto sua?”
Um punhado de artistas assinaram as obras aqui expostas, Oscar Niemeyer sendo o mais famoso deles. Mas há também João Filgueiras Neto (“Lelé”), Rodrigo Brotero Lefèvre, Mayumi Watanabe e outros que deixarei de citar mesmo ao risco de ser injusto. Estes nomes assinam obras já incrustadas sobre o planalto central, obras prontas e acabadas, resistindo ao tempo e ao clima e que estão ao alcance das lentes de todos nós. A perenidade da obra arquitetônica é um dos seus aspectos mais fascinantes. Poder construir algo que irá alterar a paisagem “para sempre”? É uma responsabilidade descomunal, visto que a paisagem é um bem comum e as construções erigidas sobre ela farão parte das vidas das pessoas de incontáveis formas, assim como o fazem os naturais rochedos e cedros e araucárias sobre os quais já conversamos. Respeito os saberes do arquiteto, que precisa ter conhecimento técnico, consciência ecológica e apuro estético — resumindo um leque tão amplo de conhecimentos em apenas estes três, estou me dedicando mais ao terceiro, que é o ressaltado pelas fotos. O apuro estético é o que veste a obra e é como ela se apresenta, todos os dias, ao mundo. Ele compõe a paisagem. Como seria, então, documentar a construção de uma nova paisagem?
Acompanho a construção de um templo, projetado por um escritório brasiliense que tem como referências criadoras o grandioso Tadao Ando, o referido Lelé e o laureado Paulo Mendes da Rocha. O primeiro, um mestre minimalista, sobretudo na construção de igrejas; os dois últimos, nossos melhores arquitetos de traços brutalistas. Três influências palpáveis na concepção do templo em questão, que levou a sério o conceito de “paisagem construída”. Por se tratar da construção de um templo, a perenidade aqui é mais, digamos, perene. Veja, casas são demolidas, mas um templo raramente o é, sobretudo quando falamos de um templo feito para adorar a uma das religiões abraâmicas. Este templo, esta igreja, estará aqui virtualmente para sempre. Um dia, quando estiver pronto, este templo guardará a mesma relação que araucárias e caliandras têm com seus arredores. Entretanto, enquanto escrevo este texto e fotografo o seu canteiro de obras, o templo é um processo. Considerando o processo uma coisa em si mesma, é engraçado pensar que para erigir uma coisa que durará para sempre é necessário fazer outra que é finita em cada uma de suas partes, por menores que sejam. Quando pronto, o templo terá uma vida própria, habitado por fiéis, fustigado pelo clima e acariciado pelos astros. Mas até lá, cada etapa de sua construção é efêmera. Daí vem mais uma vez o fascínio pelas fotografias de construção, a única maneira de eternizar a efemeridade do processo de construir. As memórias dos que empregaram os próprios músculos usando pás e enxadas são deles mesmos; já as fotografias estão para todos.
Fotografia é projeção. Fotografar uma construção pode ser este apetite de assegurar o que nos escapa a todo instante, esse eu que construímos ininterruptamente e que em algum momento, quando estiver pronto — morto — fará parte da paisagem sentida pelos outros.
Gui Coelho é ensaísta, professor e fotógrafo. Especialista em quindins e nefelibata amador.