Status, estátuas e estatutos: erguendo monumentos a homens falhos

Este artigo foi publicado originalmente no Common Edge.

Monumentos, segundo Alois Riegl, são subsídios à memória. “In memoriam” são palavras que podemos encontrar em cada pedestal ou alicerce de um túmulo ou mausoléu em homenagem aos nossos heróis do passado. Embora seu caráter simbólico seja um refúgio de ideologias, preconceitos e — em muitos casos— intolerância, monumentos têm sido construídos pela humanidade à milênios e também podem ser considerados uma forma de arte e lugares de memória. Entretanto, não são raros os casos de monumentos associados à práticas ou eventos antiéticos, à descriminação, hostilidade e violência. Muitos dos templos da Grécia Antiga foram erguidos sobre altares utilizados para sacrificar animais — e, antes disso, seres humanos também —; as pirâmides foram levantadas pela força do trabalho escravo; praças públicas muitas vezes eram utilizadas como lugares de tortura e sentenças de morte. Isso significa que, na maioria dos casos, monumentos não são apenas simples estruturas inocentes construídas em memória de grandes personagens, mas a personificação de conflitos políticos, culturais, sociais e humanos.

Grant’s Tomb. © King of Hearts licensed under CC BY-SA 4.0

Comparemos por exemplo a Tumba de Grant, um monumento completamente ignorado e esquecido às margens do Rio Hudson em Nova Iorque, com o Memorial dos Veteranos do Vietnã em Washington, há décadas um dos pontos turísticos mais visitados da capital estadunidense. Durante as primeiras décadas do século XX, o monumento à Ulysses S. Grant — 18º Presidente dos Estados Unidos e considerado um dos maiores heróis da Guerra Civil Americana e da Reconstrução dos Estados Unidos— era destino certo para os milhares de visitantes que chegavam à Nova Iorque, assim como é hoje o memorial projetado por Maya Lin na cidade de Washington. Por conseguinte, é muito provável que a modesta estrutura com os nomes dos soldados mortos no Vietnã em pleno National Mall também seja esquecida a medida que a lembrança do evento que porta significado se perde na distância da nossa memória. Ainda assim, isso não significa que tais personagens ou eventos passem a ser menos importantes para a história de um país à medida que eles envelhecem.

Vietnam Veterans Memorial. Image © Flickr user kenlund licensed under CC BY-SA 2.0

O Lincoln Memorial, não muito longe dali, nunca será menosprezado ou olvidado, e não apenas porque foi ali que Martin Luther King Jr. fez seu mais famoso discurso. Ainda que Lincoln não seja um personagem imaculado e livre das críticas de alguns historiadores, o seu memorial sobreviverá para além de sua memória, e isso se deve à sua arquitetura, uma das mais importantes obras construídas ao longo do século XX pelas mãos de Daniel Chester French e Henry Bacon. Como a pedra fundamental do National Mall, o memorial permanecerá relevante à medida que ele segue presente como um pano de fundo para novos eventos e manifestações. Seu status não dependerá apenas das vicissitudes da história, não importa o quão distante sua memória possa retroceder no tempo.

The Lincoln Memorial. © Carol M. Highsmith

Há monumentos por todos os lados, em todas as cidades e países, adornando nossas praças, vilas e parques. Eles resistem à passagem do tempo, contando historias para que não sejam esquecidas. Entretanto, após o fim da Guerra Fria, muitos monumentos adquiriram um caráter quase efêmero. Poucos dias após o colapso da União Soviética, as milhares de estátuas de Joseph Stalin — que por anos haviam assombrado dezenas de centenas de cidades do leste europeu—, desapareceram num piscar de olhos. Aquelas construídas em homenagem à Saddam Hussein, também foram liquidadas depois da eclosão da Segunda Guerra do Golfo. É inadmissível que ainda hoje monumentos à personagens marcados por um histórico de intolerância, hostilidade e violência continuem existindo. Ainda assim, são inúmeras as controvérsias e discussões à respeito do status da grande maioria dos personagens e eventos comemorados em nossos principais monumentos e lugares de memória.

The toppling of the Saddam Hussein statue, in Bagdad, April 9, 2003. © Navy Lieutenant Tim McLaughlin via public domain

A atual questão à respeito da manutenção dos monumentos em memória dos pais fundadores, dos heróis de guerra confederados e dos conquistadores europeus em espaços públicos nos Estados Unidos não é algo novo e provavelmente não será resolvida em um breve período de tempo. O debate sobre a natureza dos monumentos e lugares de memória geralmente é algo positivo — ou seja, é algo necessário em uma sociedade saudável que busca construir um entendimento comum sobre à sua história e seus valores democráticos. Infelizmente, uma sociedade como esta ainda não existe.

Essa é uma das razões pelas quais as recentes reivindicaçoes para a remoção de todos os tipos de estátuas dos espaços públicos nos Estados Unidos, mesmo que as atuais leis permitam sua existência e até promovam a criação de novas, parecem tão preocupantes aos olhos de quem entende o valor destas estruturas como repositórios da memória coletiva. Espaços públicos, onde todos os cidadãos têm o direito de ir e vir e manifestar sua opinião, monumentos como o Lincoln Memorial, historicamente, têm se transformado em epicentros de protestos e revoluções — eventos que podem mudar o rumo da história. Monumentos e edifícios não apenas rememoram e simbolizam momentos e eventos que refletem a nossa identidade e tudo aquilo que nos une, eles também operam como ativadores da memória, nos lembrando de fatos que — felizmente ou infelizmente — nunca devemos esquecer. Monumentos nacionais devem representar valores coletivos universais, respeitando todos os seus cidadãos sem nenhuma excessão.

Um dos epicentros das recentes manifestações “Black Lives Matter”, em resposta ao assassinato de George Floyd, é a sugestiva Monument Avenue, na cidade de Richmond. Concebida como parte de um amplo projeto de planejamento urbano da capital do Estado da Virgínia, a Monument Avenue conta com uma série de áreas verdes e monumentos comemorativos, em sua maioria, associados aos heróis confederados da Guerra Civil Americana. Entre todos os bustos e estátuas erguidas ao longo de uma das mais importantes avenidas de Richmond, há somente um personagem afro-americano: o tenista estadunidense Arthur Ashe. Pouco antes do irrompimento dos recentes protestos, o prefeito de Richmond decidiu remover todas as estátuas de heróis confederados da Monument Avenue, incluindo os proeminentes monumentos à Robert E. Lee e Stonewall Jackson — atitude que lhe rendeu algumas críticas por parte de seus eleitores. As estátuas serão exibidas em um museu, como parte de um programa educativo sobre a herança negativa de tais personagens e as causas pelas quais eles lutaram.

A statue of Confederate Gen. Robert E. Lee is removed on May 19, 2017, from Lee Circle in New Orleans. Lee’s was the last of four monuments to Confederate-era figures to be removed under a 2015 City Council vote on a proposal by Mayor Mitch Landrieu. © Abdazizar licensed under CC BY-SA 4.0

Contudo, ao examinarmos as leis que regulamentam a presença e a criação de estruturas cívicas nos Estádios Unidos, não devemos apenas nos concentrar no significado impermanente associado aos personagens e eventos que habitam estes monumentos e lugares de memória. Nossos principais líderes — prefeitos e governadores em sua maioria — devem, antes de mais nada e acima de tudo, encarar de frente o legado que estes símbolos carregam consigo, promovendo debates e discussões antes de simplesmente arrancá-los ao seu bel-prazer. É evidente que a maioria dos monumentos confederados são legitimamente condenados como alegorias ao racismo, a opressão e violência, e portanto, devem sim ser removidos à medida que vamos reabilitando a nossa própria história. Mas é preciso critério e conhecimento para se tomar tal medida, isso porque alguns personagens acabam erroneamente condenados, os quais deixaram contribuições significativas para à historia do país e não se encaixam na categoria de traidores da democracia ou racistas. Monumentos servem para reforçar os valores coletivos e é preciso mantê-los, desde que a sua memória não transgrida nenhum princípio moral, ético, cultural ou racial. Acontece que, desde a eleição de Donald Trump e mais intensamente desde o assassinato brutal de George Floyd, os debates e discursos de ódio tomaram conta das redes sociais, algo que dificilmente nos oferece uma visão objetiva sobre estas questões.

Muitos são aqueles que se dedicam a avaliar e debater as crises do discurso cívico e político nos Estados Unidos, principalmente após os acontecimentos de onze de setembro e mais recentemente, na era Trump. Enquanto isso, nós, arquitetos e arquitetas que gastamos nossas energias escrevendo sobre questões relativas aos espaços e cidades, é importante reconhecer o quão alarmante um discurso pode se tornar tem uma sociedade tão dividida. Este não é o momento para redefinirmos as leis que regulamentam a presença de monumentos em nossos espaços públicos. Também não me parece adequado menosprezarmos a importância e o valor de personagens incontestáveis para a construção da identidade coletiva deste país — ainda que possamos sempre repensar e reavaliar a nossa própria história a partir das principais questões latentes do presente. Podemos incluir novos heróis em nosso panteão? Obviamente sim, ou melhor, este é o nosso dever. Suas estátuas ainda não foram esculpidas, assim como as suas histórias permanecem desconhecidas da grande maioria. Fons Americanus, a magnífica instalação de Kara Walker na Tate de Londres, nos faz pensar em quão fascinante poderia ser a nossa história se nos permitirmos reescrevê-la considerando os elementos mais frágeis da nossa cultura que desde sempre foram ignorados pelas forças políticas dominantes.

Infelizmente, ainda há aqueles que esperam ver seus heróis — muitas vezes contestados e não raramente infames — consagrados e protegidos, exibidos em plena praça pública. Orientados por um discurso de ódio, eles distorcem o debate sobre a importância dos monumentos em uma direção extremamente negativa, dividindo as opiniões de arquitetos e críticos de arquitetura. Sem saber lidar com a constante depredação de seus monumentos, como a escultura de Cristovão Colombo em Providence —desfigurada em 2010, 2015, 2017, 2019 e 2020—, uma parcela da população reagiu com indignação incomum ao que eles consideram uma “falta de educação”.

Essa é outra razão pela qual nós, pessoas conscientes dos equívocos históricos que continuam a ser aplaudidos em nossos espaços públicos, devemos analizar atentamente e observar com lucidez os monumentos e memoriais que permanecem de pé em nossas sociedades democráticas, buscando construir um diálogo mais apropriado e que respeite a heterogeneidade de nossa própria identidade. De uns anos pra cá, os Estados Unidos da América têm falando miseravelmente neste sentido, perdendo rapidamente a sua credibilidade como um Estado Democrático de Direito. Estamos mais uma vez dando um grande passo, porém desta vez, um passo atrás. Devemos combater o propagandismo de “histórias alternativas”, como o Jardim dos Heróis proposto recentemente por Donald Trump. Monumentos são subsídios à memória coletiva, contentores das histórias que compartilhamos como nação e que sustentam os valores que nos une a todos, tanto em momentos de crise quanto de glória. Não podemos nos dar ao luxo de ter a nossa própria memória apagada pelas frustrações de alguns ou pelos atos irresponsáveis da polícia, de certos políticos ou manifestantes ávidos por sangue. Como todos os santos e mártires, nenhum deles é perfeito, muito embora tenham sido esculpidos em mármore como tal.

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Sobre este autor
Cita: Hewitt, Mark Alan. "Status, estátuas e estatutos: erguendo monumentos a homens falhos" [Status, Statues, and Statutes: The Issue With Monuments to Flawed Men] 27 Jul 2020. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/944267/status-estatuas-e-estatutos-erguendo-monumentos-a-homens-falhos> ISSN 0719-8906

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