Cidade Proibida, hutongs e superquadras: a urbanização de Pequim

Do quarto do meu hotel era possível ver os telhados da Cidade Proibida, embora apenas um vulto em meio à névoa que cobria a paisagem. Pequim (ou Beijing, dependendo da língua ou grafia) é uma das cidades com o ar mais poluído do mundo, com uma névoa constante produzida não apenas por automóveis — que respondem por 70% da poluição da cidade —, como também por fábricas, usinas de carvão e tempestades de areia de regiões próximas. A impressão visual era de que o dia estava nublado, mas na realidade não havia uma única nuvem no céu.

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Pequim foi uma das primeiras cidades que tentaram ordenar o seu espaço urbano, criando um xadrez viário de superquadras alinhadas com a Cidade Proibida, a residência e figura central do império. Dentro de cada superquadra, o desenvolvimento urbano tradicional de Pequim foi no formato de hutongs, pequenas comunidades de casas tradicionais com ruas estreitas ocupando parte ou toda área de uma superquadra. Visitando o Beijing Planning Exhibition, o Pavilhão de Planejamento Urbano de Pequim, aprendi que hutong significa “fonte”, relacionando seu surgimento com as fontes de água em cada comunidade. De acordo com o pesquisador Qingqing Yang a palavra significa uma “faixa” ou “ruela” com pátios tradicionais em ambos lados. Hoje a palavra hutong é basicamente usada para descrever uma rua antiga em uma área residencial.

Praça da Paz Celestial, ou Tiananmen, com a Cidade Proibida à direita. O Sol aparece entre a névoa de poluição, em um dia que deveria ser ensolarado. Image © Anthony Ling, via Caos Planejado

Ao longo dos séculos, planos sucessivos foram feitos e refeitos, tendo sempre a Cidade Proibida como elemento central e, de forma geral, mantendo a distribuição xadrez de superquadras e criando anéis viários, nas periferias cada vez maiores, dado o crescimento radial e concêntrico em torno da Cidade Proibida.

A ambição e a extensão da cultura de controle do planejamento chinês impressiona. No Pavilhão de Planejamento Urbano é possível ver uma maquete que engloba praticamente toda a cidade, detalhando prédio a prédio. Pequim não segue o conceito de uma cidade dinâmica ou que permite desenvolvimentos espontâneos e descentralizados, mas sim uma que supostamente funcionaria do ponto de vista técnico, planejada detalhadamente.

Jinyu hutong: parte permanece antigo…. Image © Anthony Ling, via Caos Planejado
…e parte foi reformada — ou teria sido reconstruída?. Image © Anthony Ling, via Caos Planejado

Na maquete é possível ver que as áreas novas de Pequim, a partir do segundo anel viário, já não apresentam mais hutongs, sendo parte da estratégia chinesa de modernização e tentativa de implementação de um modelo de urbanização mais ocidental. De certa forma influenciados pelo urbanismo modernista que dominou o pensamento ocidental no último século: a ocupação urbana é em grandes blocos habitacionais, repetidos e isolados nos terrenos. Mesmo assim, na área central, até o segundo anel viário, a altura da cidade é relativamente baixa, preservando a imponência e importância da Cidade Proibida.

Maquete da cidade de Pequim, exposta no Pavilhão de Planejamento Urbano. Ao fundo, em laranja, se vê a Cidade Proibida, com os pequenos hutongs ao seu redor. Nas zonas mais afastadas, uma mistura de blocos habitacionais baixos, remanescentes da “regra do Sol” que permaneceu até os anos 80, e os grandes edifícios novos. Image © Anthony Ling, via Caos Planejado

Nas áreas novas, o planejamento de Pequim cria setores focados para diferentes finalidades, como o Parque Olímpico, o “Central Business District” (que, diferente de outras cidades, não se desenvolveu a partir de um centro histórico, mas foi “criado” pelas políticas de planeamento), e o Zhengguancun, auto-entitulado como “Vale do Silício da China”, apesar de outras cidades como Shenzhen e Chengdu também brigarem por essa denominação. Nestas áreas, em escala monumental e rodeados por grandes avenidas, o trânsito a pé fica comprometido, sendo difícil chegar perto de marcos visuais que são visíveis no horizonte.

Uma das poucas áreas contemporâneas de transformação espontânea é o 798 Art District, uma antiga área de indústrias soviéticas convertida em pavilhões artísticos e culturais. Entrando neste bairro cheio de galerias, graffiti, lojas de moda independentes e cafés hipsters, a sensação não é muito diferente de estar no Art District de Los Angeles ou Chicago.

798 Art District. Image © Anthony Ling, via Caos Planejado

Quanto aos hutongs, embora praticamente intactos da sua formação no século 13 até o século 20, cerca de três quartos deles foram demolidos em 1949 como planos de “modernização” da revolução cultural. Muitos dos que sobraram ainda mantêm a cultura destas comunidades, herdada dos moradores ao longo dos anos. Não é incomum ver locais andando nas ruelas dos hutongs de pijamas: este hábito não é porque estes moradores têm pouco senso estético, mas porque a sua relação com o espaço público é diferente, considerando o hutong a extensão da sua casa.

O desenvolvimento relativamente orgânico e informal dos hutongs aliado à pressão imobiliária por localização na região central da cidade leva a altas densidades: no entorno de Qianmen East, densidades demográficas chegam a quase 50 mil habitantes por quilômetro quadrado, semelhante à Copacabana e cerca de cinco vezes um bairro paulistano como o Itaim Bibi ou Pinheiros. É importante lembrar que chegou neste resultado mesmo com o governo local tendo imposto um limite de 16 mil pessoas por quilômetro quadrado nas regiões centrais. Assim como o hukou, descrito na primeira parte desta série de artigos, o planejamento dificilmente consegue determinar onde os cidadãos devem morar.

Rua comercial Wangfujing. Image © Anthony Ling, via Caos Planejado

Seu longo período de existência também levou a transformações sociais constantes nos hutongs. Originalmente, anterior à revolução, os hutongs eram habitados por moradores de classe média e alta, e ainda é frequente ver placas nos hutongs homenageando alguns dos ilustres moradores do passado. Foi com a subdivisão das propriedades durante o Comunismo que se iniciou um forte adensamento dos hutongs, e nos anos 80 eles foram considerados “favelas” e demolidos para construção de edifícios residenciais. Apenas depois dos anos 2000 é que eles começaram a se tornar populares e, gradualmente, hoje sofrem com uma regentrificação em residências unifamiliares ou hotéis de luxo.

Apenas no século XX alguns dos hutongs remanescentes foram determinados como patrimônio histórico pelo governo chinês. No entanto, a noção chinesa de originalidade é diferente da que temos desenvolvido no ocidente. Muitos dos hutongs originais, em condições precárias, não são reformados ou preservados, mas sim demolidos para serem reconstruídos de forma idêntica à original. Os hutongs nos mostram os primeiros sinais arquitetônicos de como é difícil, na China, perceber o que é original e o que é uma cópia. Alguns hutongs, como Nan luo gu xiang, estão virando destinos turísticos, espécies de museus arquitetônicos, e já existem empresas especializadas em turismo de hutongs. Na zona central muitos deles estão sendo reformados e, com a demanda crescente para morar em uma casa tradicional com uma oferta restrita e, talvez, que até diminui, já estão sofrendo os primeiros sinais de gentrificação.

Trânsito no cruzamento de duas avenidas. Image © Anthony Ling, via Caos Planejado

Segundo o jornalista sueco Jojje Olsson, que mora na China desde 2007, há muitos moradores de Pequim que não acham que as “favelas” dos hutongs valem a pena serem preservadas, e enquetes mostram que a maioria dos moradores de hutongsgostariam de continuar morando nas suas comunidades, embora a maioria dos jovens gostariam de morar em outro lugar. Estes jovens não têm a mesma conexão emocional ao espaço dos mais velhos, que o habitavam antes de um período mais radical de transformação em Pequim.

“Favelas” propriamente ditas, como moradias informais, são difíceis de encontrar em Pequim ou nas grandes cidades chinesas. Ainda, as novas habitações construídas nas periferias não levam em consideração a área construída média por habitante, tornando as unidades muito caras para uma única família. Assim, a prática tem sido a subdivisão de apartamentos (de forma irregular ou não) em quartos ou unidades menores, aumentando a acessibilidade à moradia ao diminuir o espaço necessário por família.

Dongsiertiao hutong. Image © Anthony Ling, via Caos Planejado

Em termos de mobilidade urbana, Pequim funciona relativamente bem para uma cidade do seu tamanho — se você não está dirigindo. Apesar de avenidas extremamente largas, o trânsito na superfície é complicado, resultado de uma cidade espraiada, zoneada e pouco caminhável fora das zonas históricas dos hutongs. Imagens da cidade até os anos 80, quando Pequim tinha mais de 60% dos seus deslocamentos de bicicleta, mostram a bicicleta como principal meio de transporte na cidade, ainda pobre e não incentivada pelo uso do automóvel. Hoje ainda se vê muita gente andando de bicicleta (certamente mais do que no Brasil), mas sem infraestrutura adequada, prejudicada por vias de trânsito rápido onde o carro é prioridade. Hoje as bicicletas da Ofo, maior empresa de bikesharing dockless do mundo, podem ser vistas por todo lado e, segundo alguns artigos, já contribuíram significativamente para o aumento do uso da bicicleta nas cidades chinesas. Curiosamente a cultura da bicicleta volta a ser introduzida nas cidades chinesa, independente do forte incentivo a outras formas de transporte.

Comércio de rua nos edifícios na divisa entre o Dongsi hutong da avenida principal. Image © Anthony Ling, via Caos Planejado

A principal causa para a mudança da bicicleta para o carro não foi necessariamente políticas governamentais, mas o rápido aumento da renda per capita da população, que possibilitou que muita gente tivesse condições de comprar um carro. Hoje Pequim está pagando o preço do trânsito e da poluição e investindo fortemente em transporte de massa como alternativa para a população. No subsolo, Pequim construiu uma das maiores redes de metrô do mundo, aumentando dez vezes entre 1990 e 2014, indo de 53 km para 527 km de rede. Com isso, viagens de transporte público passaram a corresponder a 50% dos deslocamentos casa-trabalho, comparado com uma proporção de menos de 30% no ano 2000. Mesmo assim, em 2015 cerca de 20% das estações de metrô de Pequim tinham restrições de embarque nas horas de pico, tamanho o congestionamento de gente, e o sistema continua planejando sua expansão.

De acordo com matéria do South China Morning Post de 2014, um dos principais jornais cobrindo notícias da China — pelo fato de ser baseado em Hong Kong, que ainda desfruta de certa liberdade de imprensa —, o subsídio público da rede de metrô é cerca de 50% do custo operacional do metrô, versus 62% dos ônibus. Apesar de terem aumentado as tarifas de ônibus em 2014, o gasto com transporte público ainda ficaria em torno de 5% da renda média, versus 15 a 20% no Brasil.

Avenida cercada por hutongs. Image © Anthony Ling, via Caos Planejado

Depois de décadas de crescimento, as autoridades de Pequim agora se esforçam para limitar o crescimento da cidade, alegando que não haveria água suficiente para abastecer mais gente. Na prática, este movimento tem sido focado em uma espécie de “higienismo social” não muito diferente das práticas realizadas no início da urbanização moderna brasileira: os esforços do poder público estão focados na remoção de trabalhadores imigrantes de outras regiões e na demolição de moradias consideradas irregulares ou depredadas. Tendo a concordar com Hu Xingdou, professor de economia em Pequim, que alerta para o aumento do custo de vida na cidade e a diminuição da população mais jovem da cidade, prejudicando o mercado de trabalho e o sistema de suporte para uma população que envelhece.

Junto ao processo de limitação de Pequim, no entanto, no futuro de Pequim está um dos projetos mais ambiciosos do urbanismo contemporâneo: integrar a cidade de Pequim com Tianjin, cidade com uma impressionante zona industrial, e atuar na região ao nível da província de Hebei. O plano, chamado de “Beijing-Tianjin-Hebei Integration Plan”, ou “Jing-Jin-Ji”, contemplará 11 cidades e uma população de 100 milhões de pessoas. Para tal integração, espera-se que até 2020 sejam investidos RMB 247 bilhões (cerca de R$ 135 bilhões) na construção de redes ferroviárias e rodoviárias interligando a região, assim como o aeroporto de Daxing, projetado pelo escritório de arquitetura Zaha Hadid e que deve ser o maior do mundo quando completo. Assim, mesmo com a limitação no tamanho da cidade, a criação de Jing-Jin-Ji aliada à importância política e histórica de Pequim deve mantê-la em destaque na urbanização chinesa.

Via Caos Planejado.

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Sobre este autor
Cita: Anthony Ling. "Cidade Proibida, hutongs e superquadras: a urbanização de Pequim" 29 Jul 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/944547/cidade-proibida-hutongs-e-superquadras-a-urbanizacao-de-pequim> ISSN 0719-8906

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