Outros corpos, espaços e linguagens, que são invisibilizados ou simplesmente parecem não caber na atual cidade de São Paulo, estão sendo projetados em sua paisagem. "Vozes Contra o Racismo" é uma mostra e proposição que insere novos imaginários para a cidade que está em constante disputa de narrativas. Através do evento, até o dia 24 de agosto, a rua deixará de ser apenas um espaço de trânsito para abrigar também obras de arte, os edifícios se tornarão telas e monumentos serão apagados para servir de suporte a expressões artísticas que apresentam rumos que normalmente são invisibilizados pela história.
Para Helio Menezes, curador geral da exposição, o trabalho que inaugurou a mostra, Brasil Terra Indígena, de Denilson Baniwa, faz uma leitura e interação com o Monumento das Bandeiras que é muito ilustrativa sobre o propósito da mostra em geral. Em suas palavras, "mesmo na tentativa do esmagamento literal e simbólico que o monumento apresenta e através dos processos de exclusão da cidade, que são bastante racializados, cenários e seres que são afastados e excluídos da cidade são reprojetados em imagens sobre o concreto que a constrói". No caso da obra citada, "imagens de plantas, seres espirituais, animais primordiais indígenas - que nas palavras do próprio Baniwa continuam vivendo ali, apenas não estão no plano do visível - sobem vagarosamente sobre o monumento apagado, que se torna mal discernível pelos contornos do objeto escultórico".
Enxergo que nesse procedimento, quando as imagens trazidas pelas artistas reaparecem para a população, são sobretudo imagens que refletem bastante a própria população, seja para trazer uma história apagada ou escondida pelo concreto da cidade. As obras são realizadas por artistas que têm disputado também no campo da representação visual, outras narrativas sobre a história do país, outras narrativas sobre a construção de imaginários, de esteriótipos e de usos da cidade.
Na mostra a curadoria apresenta diversas artistas que trazem em suas obras o corpo como lugar de memória. O que, por si, levanta o questionamento sobre como a memória da própria cidade se relaciona com esses corpos, onde raramente são inseridos em lugares de prestígio. O filme Experimentando o Vermelho em Dilúvio, realizado pela artista Musa Michelle Mattiuzzi, é um dos que estão sendo exibidos pela Vozes Contra o Racismo e traz importantes argumentos para essa discussão.
Através de uma caminhada ritual para a Estátua de Zumbi dos Palmares, no centro da cidade do Rio de Janeiro, a artista propõe a reflexão - entre outras leituras que se abrem - sobre como a representação violenta colonial se faz presente mesmo quando tenta-se criar uma homenagem aos corpos excluídos, uma vez que tal monumento é a réplica de uma cabeça nigeriana esculpida entre os séculos XI e XII e não retrata o próprio Zumbi dos Palmares, além disso, outros pontos como a forma que a obra está executada leva a uma possível interpretação de uma "cabeça a prêmio", perpetuando a representação da violência contra o povo negro. Assim, através de seu filme, a artista escancara como o racismo indigente do Brasil acaba por desrespeitar a cultura negra mesmo em momentos que pretende-se consagrá-la ao concretizar monumentos e imagens espalhados pela cidade. Por fim, a presença da própria artista e sua performance coloca em cheque todos estes questionamentos trazendo um importante aspecto narrativo ao discurso negro em territórios coloniais.
No caso da mostra, esse discurso vem acompanhado e aumenta sua potência junto de outras vozes. Segundo Helio Menezes, "incluir os corpos trans, de negros e negras, indígenas, dissidentes, marginalizados, corpas excluídas das esferas de maior concentração de poder da sociedade para uma mostra promovida e financiada pela prefeitura e utilizando a própria cidade como suporte me parece um potencial pequeno diante do tamanho do quadro a ser revertido, mas uma ação possível de sensibilização através da arte, através do contato mais aproximado entre público e obra, sem a aura tantas vezes excludente dos museus e galerias de arte para suscitar outros imaginários, outras imaginações políticas do lugar desses corpos descentralizados, trata-se, sobretudo de obras que realçam o afeto, realçam a beleza, o caráter de luta, de resistência, de resiliência dessas populações".
Ao trabalhar com esses temas, as artistas trazem memórias de uma cidade bastante excludente, hierarquizada, que se faz entender pela distribuição desses corpos em diferentes CEPs.
De acordo com o curador, ao se espalhar pelas cinco microrregiões de São Paulo, em mais de quarenta lugares, a segregação que a cidade constrói se embaralha, "traçando uma espécie de cartografia, pontos riscados que ligam cada uma dessas manifestações, de forma poética, ao longo dela". Apesar da descentralização que a mostra se propõe, houve uma grande preocupação na busca por formatos que não incentivassem grandes aglomerações a fim de manter os cuidados necessários de distanciamento social que a pandemia coloca. Portanto, as obras são realizadas de modo a serem "vistas pela passagem, pelo caminho e que, sobretudo, saíssem das galerias e dos museus e ocupassem a cidade dando a ela novas funções".
Em suma, a urgência de rever os símbolos que são representados pela cidade é uma discussão atual que hoje acontece em diversos países. A importância da mostra em levantar e apresentar questões "de pertencimento, diversidade, identidade, combate ao racismo, ao preconceito e às desigualdades, mas também sobre afetos e novas imaginações de vida em sociedade", tendo a própria cidade como suporte para isso, traz a possibilidade de levantar novos fundamentos para o modo como os espaços da cidade são pensados e como eles podem criar símbolos que de fato representem todos os grupos sociais que a ocupam.
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Além das projeções de obras audiovisuais, grafites, lambes e outras intervenções, a mostra também foi complementada por webinários que discutem os temas colocados em pauta pelo evento, é possível assistir todos através do canal da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Abaixo, destacamos a mesa "A arte de (re)existir", que traz importantes colocamentos dos artistas Aline Motta, Castiel Vitorino Brasileiro e Denilson Baniwa, mediados pelo curador Helio Menezes:
SERVIÇO
A mostra é resultado da parceria entre SMC, SMDH e CPIR, com concepção de Amarilis Costa, Helio Menezes, Lígia Rocha e Thamires Cordeiro, e curadoria geral de Helio Menezes.
Data: 24 de julho e 24 de agosto
Artistas (Grafite): Mauro Neri - Veracidade, Diego Mouro, Grupo OPNI, Robinho Santana, Luna Bastos
Artista (Instalação Artística): Monica Ventura
Artistas (Lambes): Sallisa Rosa, Silvana Mendes, Xadalu, Moisés Patrício, Marcelo Rocha, Rafa Kennedy
Artistas (Projeções): Castiel Vitorino Brasileiro, Denilson Baniwa, Coletivo Coletores, Juliana dos Santos, Priscila Rezende, Aline Motta, Musa Michelle Mattiuzzi, Igi Ayedun, Preta Rara, Diego Paulino
Videomapping: Coletivo Coletores
Locais de Projeção: Monumento das Bandeiras, Igreja do Rosário da Penha, Praça Ramos, CEU Inácio Monteiro, CEU Vila Atlântica, CEU Uirapuru, CEU Paraisópolis, CEU Pêra Marmelo, Cohab José Bonifacio, Cohab 2 Itaquera, Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, Casa de Cultura Tremembé, Centro de Culturas Negras, Centro Cultural Grajaú, EMEF Prof. Maria Alice Borges Ghion, Praça Roosevelt.
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