Este artigo foi publicado originalmente em Common Edge.
Desde o irrompimento do surto de COVID-19 há alguns meses, eu, como muitos de vocês, passei os últimos meses trancafiado em casa, ansioso e preocupado com as consequências e desdobramentos disso tudo. Entretanto, ao invés de perturbá-los com mais previsões hipotéticas para um futuro ainda incerto, prefiro compartilhar algumas observações sobre a atual condição das cidades africanas nesta calamitosa situação que estamos vivendo. Como africano, procurarei apresentar uma perspectiva única, desprendida de limitações e fronteiras, por que, afinal de contas, esta é uma crise sanitária mundial que como tal, desconhece tais demarcações.
Por um certo período de tempo, como resposta ao aumento exponencial dos casos em todo o continente africano, autoridades locais impuseram uma série de medidas restritivas para tentar combater o avanço incoercível da pandemia. Atualmente, podemos dizer que quase todas as grandes cidades do continente ainda estão em estado de lockdown ou gradualmente começando a sair de um. A medida que a nova normalidade vai se estabelecendo, muito se especula sobre como isso afetará as nossas cidades ao longo dos próximos meses, senão anos. Muitos arquitetos, urbanistas e planejadores assim como economistas e governantes acreditam que estamos passado por uma mudança significativa, algo que transformará para sempre a maneira como concebemos e construimos nossas cidades. Eu, pessoalmente, não compartilho totalmente dessa opinião. Acredito que, a tentativa de prever o futuro das cidades enquanto ainda estamos atravessando uma crise que ninguém sabe quando vai acabar, é problemático na melhor das hipóteses. Também sei que, assim como já aconteceu inúmeras vezes na historia da humanidade, mais cedo ou mais tarde, essa pandemia vai passar.
Pragas e pestes não são nenhuma novidade, tanto para o continente africano quanto para o resto do mundo. A gripe espanhola de 1918 fez cerca de 82 mil vitimas apenas em Lagos, algo em torno de 1,5% da população da maior cidade da Nigéria. No final de uma pandemia que se estendeu por pelo menos dois anos, até 1920 o país havia registrado pelo menos meio milhão de mortos; 50 milhões de vítimas à nível mundial. Mais recentemente, em 2014, parte do continente africano foi varrido pela maior epidemia de Ebola desde a descoberta do vírus em 1976, mas felizmente, o surto foi controlado com sucesso naquela ocasião.
Até o início do mês de agosto, haviam sido confirmados mais de 600.000 casos de COVID-19 em todo o continente africano, superando a marca de 20.000 vítimas fatais. Ainda que estes números sejam significativamente menores se comparados à países como os Estados Unidos e o Brasil, parece já não restar nenhuma dúvida: nossas cidades — sejam elas americanas, brasileiras ou africanas — jamais serão as mesmas. Em vez de perdermos tempo especulando sobre como resolveremos problemas futuros e que ainda parecem nebulosos, talvez seja mais útil concentrarmos nos problemas históricos que têm afetado nossas cidades — e a vida de milhões de habitantes — não apenas na África mas em boa parte do hemisfério sul do mundo e além. Questões urgentes que a recente pandemia trouxe à tona uma vez mais. Se haverão novos problemas para se resolver, em última análise, é melhor começar a procurarmos soluções para aqueles que já nos acompanham a muito mais tempo.
Distanciamento físico e conflitos culturais
Em muitas das sociedades africanas tradicionais, o contato físico entre as pessoas é parte indissociável da vida em comunidade. Reuniões, rituais e cerimônias públicas são elementos fundamentais para a cultura e a vida destes povos. Quer estejamos festejando o nascimento de um recém-nascido, mudando-nos para uma nova casa ou até mesmo de luto por um ente querido que se foi, em quase todas estas ocasiões, ajuntamentos são imperativos. Atualmente, essa imprescindibilidade tornou-se a primeira vítima destas restrições circunstanciais; nem mesmo os rituais mais sacrossantos na vida destas pessoas foram poupados. Medidas restritivas acabaram por criar um conflito social sem precedentes, algo completamente incompatível com muitos dos nossos valores culturais mais elementares. Nem mesmo conflitos armados e guerras civis foram capazes de provocar tamanha perturbação na vida destas pessoas.
Para além disso, as regras de distanciamento social e as restrições de circulação impostas à todos nós expuseram dramaticamente as condições miseráveis em que muitas das pessoas deste continente são obrigadas à viver, apinhando-se em favelas superlotas e na maioria das vez carentes de todo e qualquer tipo de infraestrutura pública. Infelizmente, distanciamento social é impraticável em um cenário como este, e como resultado disso, elas são as principais vítimas de um vírus que tem se mostrado tão atroz nestas circunstancias.
A importância da economia informal
As restrições de mobilidade impostas às cidades revelaram uma urgente necessidade por bairros mais autossuficientes. Na cidade de Abuja, capital da Nigéria, muitas das zonas estritamente residenciais ficaram à mercê da boa vontade de alguns poucos comerciantes informais para poder suprir suas necessidades mais básicas. Pequenos negócios, bodegas e pequenas mercearias foram a salvação para muitos dos moradores da capital. Alguns desses comerciantes passaram a emprestar pequenas quantidades de dinheiro ou vendendo fiado para aqueles que, impedidos de trabalhar, ficam sem qualquer recurso. Estes pequenos negócios, estruturas precárias e improvisadas — freqüentemente com não mais de 4 metros quadrados de área — passaram a ser o motor propulsor de muitos bairros e comunidades em todo país. Embora o comércio de rua e outras atividades informais dentro de bairros exclusivamente residenciais sejam proibidos e combatidos com rigor pelas autoridades, a recente pandemia comprovou a indispensabilidade deste tipo de estabelecimento para a autossuficiência destas comunidades. Há uma certa ironia nisso, porque agora eles parecem fazer vista grossa, assumindo com desgosto a insensatez de suas políticas falhas. Não se vêm mais batidas policiais, ordens de despejo e demolições. Se há uma lição para ser aprendida aqui, é esta: a economia informal faz parte da essência do espaço urbano, algo que só trás benefícios ao invés de problemas e portanto, deve ser defendida e protegida ao invés de cassada e censurada.
Prioridades urbanas fora de lugar
Um outro grande equívoco desta pandemia foi a falta de critério e planejamento durante a construção de instalações temporárias para o tratamento de um número cada vez maior de pacientes. Embora iniciativas como estas sejam necessárias e até bem-vindas, eu suponho, elas chegam tarde de mais — como quase tudo por aqui —, destacando o fracasso das políticas públicas levas à cabo em todo um continente, que por anos têm priorizado projetos ostensivos e pretensiosos, promovendo a idealização de “megacidades” utópicas ao invés de se preocuparem em construir infraestrutura básica e elementar, como hospitais que neste momento tanto nos fazem falta. Talvez a pandemia nos inspire a começar do zero, esquecendo para sempre estas acometidas absurdas e voltando a nos importar com as pequenas coisas capazes de construir comunidades e sociedades mais justas e equitativas.
Carência de espaços públicos
Em um artigo publicado em 2018 no Common Edge, eu já havia mencionado a carência de espaços públicos de bairro na maioria das cidades africanas. Aqui em Abuja, a maior parte do território urbano está ocupado por construções, sobrando quase nada além das ruas como espaço aberto; áreas verdes e parques são uma raridade difícil de encontrar por estas bandas. A obrigação de ficar em casa exacerbou ainda mais uma carência que não é de hoje — não apenas espaços onde as crianças possam brincar, pois os adultos também começaram a compreender a importância destes espaços para a sua saúde física e mental. Quando as pessoas finalmente puderam sair de casa, após um longo período de confinamento, muitas passaram a caminhar para cima e para baixo nas ruas estreitas e mal pavimentadas de seus bairros por falta de outra opção. Claramente, isso os fez refletir sobre a atual condição de suas cidades.
Ao que tudo indica, pandemias são inevitáveis e provavelmente se tornarão ainda mais comuns no futuro próximo. Como resultado disso, devemos tirar algumas importantes lições deste trágico momento que estamos atravessando e não apenas ficar tentando adivinhar quais serão os problemas que deveremos enfrentar em um futuro hipotético. Antes de mais nada, devemos resolver as questões mais urgentes e com as quais já convivemos a tanto tempo. Temos uma uma dívida histórica a ser paga, problemas que nossos governantes vem arrastando à décadas e que ainda precisam de soluções — e esta não é apenas a realidade da África, mas de muitas, senão da maioria das cidades do nosso planeta. Ao longo dos anos, arquitetos, urbanistas e pesquisadores já nos ofereceram algumas respostas viáveis, só falta um pouco de sensatez por parte dos nossos governantes para entender o que de fato, é mais urgente neste momento.
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