Cidades têm implementado ciclovias temporárias para viabilizar deslocamentos seguros durante a pandemia de COVID-19 e evitar que usuários do transporte coletivo migrem para carros e motos. Aos poucos, a prática ganha corpo na América Latina, inclusive no Brasil. É uma oportunidade de ouro para fortalecer a mobilidade urbana por bicicleta – mas para isso, é preciso que as intervenções emergenciais incorporem boas práticas de segurança viária.
No último dia 16, o WRI Brasil promoveu um webinar em que cinco cidades compartilharam experiências sobre a implementação de ciclovias e ciclofaixas temporárias. Os projetos de Bogotá, Cidade do México, Buenos Aires, Curitiba e Belo Horizonte têm dimensões e características distintas. Em comum, elementos de urbanismo tático: o uso de materiais leves, de rápida instalação, que permitem testar e adaptar infraestruturas em diálogo com os usuários e cabem no orçamento das cidades, impactado pelo contexto de isolamento social.
Uma ciclovia na maior avenida do mundo
Com 22 milhões de habitantes, a região metropolitana da Cidade do México é uma das mais populosas do mundo. Das 19 milhões de viagens diárias, metade é realizada em transporte coletivo. Para proporcionar deslocamentos seguros e sustentáveis em alternativa aos carros e motos, a capital mexicana implementou uma intervenção ambiciosa: 54 quilômetros de ciclovias em dois importantes eixos de transporte, para conectar a cidade de Sul a Norte e de Leste a Oeste.
Na Avenida Insurgientes, uma das mais extensas do mundo, que corta a cidade de Sul a Norte, foram implementados 20 km em cada sentido. No Eixo 4 Sul, foram 14 km de uma ciclovia bidirecional. “Buscamos uma implementação rápida, econômica mas também segura”, explica Constanza Delón, subdiretora de Infraestrutura para Ciclistas e Pedestres da Cidade do México. Além de sinalização horizontal e vertical, agentes de trânsito em locais estratégicos informam os usuários sobre as novas características das vias.
A cidade também criou incentivos como promoções para aluguel de bicicletas compartilhadas. Após a implementação das ciclovias temporárias, o número de ciclistas mais do que dobrou – de 2 mil ciclistas por dia em 24 de abril para 5,4 mil em 2 de julho. “Isso nos permite ver a utilidade da infraestrutura e considerar a temporalidade”, pondera Constanza. A Cidade do México disponibilizou um documento com orientações para outras cidades que considerem implementar infraestruturas temporárias para bicicleta em resposta à pandemia de Covid-19.
Pioneirismo de Bogotá rende frutos – e dados
Bogotá tem uma longa tradição de estímulo à bicicleta, que começou com “ciclovias dominicais” há 50 anos. Antes da quarentena, a cidade contava com mais de 550 km de infraestrutura cicloviária, e já nos primeiros dias de distanciamento social, implementou ciclovias temporárias em uma resposta rápida ao cenário de pandemia, que repercutiu mundo afora.
Em Bogotá, 67% das viagens são realizadas em modos sustentáveis – 37% em transporte coletivo, 24% a pé e 6,6% em bicicleta. Em uma pesquisa em maio, 59% dos respondentes disseram que se as condições de infraestrutura melhorassem, estariam dispostos a adotar a bike como meio principal. “Isso nos dá muito entusiasmo para continuar melhorando as condições para a bicicleta”, afirma Laura Leticia Bahamón, gerente de Bicicletas da Cidade de Bogotá.
Atualmente, há 96 km de ciclovias temporárias implementados na capital colombiana. Graças ao pioneirismo das intervenções, a cidade pôde coletar dados interessantes sobre o uso das infraestruturas temporárias. Por exemplo, enquanto as mulheres realizam 24% das viagens diárias em bicicleta, durante quarentena, essa proporção caiu para 14%. Essa redução das viagens pode estar ligada ao fato de que mulheres frequentemente atuam como cuidadoras, sendo a elas atribuída a maior carga de cuidados domésticos e com membros da família, além do grande posicionamento dessa população nos setores de comércios e serviços, mais afetados pela pandemia.
As pesquisas também mostraram que 90% das pessoas apoiam as ciclovias temporárias. O uso das bicicletas cresceu entre a população, de 50% antes da quarentena para 84,4% em pesquisas recentes, e 68% das pessoas que usavam outros meios migraram para a bicicleta. Os dados positivos fortalecem a pauta da bicicleta e dão segurança aos gestores para a mudança de paradigma da mobilidade na cidade, melhorando as infraestruturas de mobilidade ativa e reduzindo o espaço para carros. Bogotá já começou a tornar permanentes 34 km dos 96 km de ciclovias temporárias. O plano é que 66 km sejam convertidos em infraestruturas permanentes até o final do ano. O restante deve ser concluído em 2021.
Um passo crucial para a mobilidade portenha
Em Buenos Aires, 4% das 5,5 milhões de viagens diárias são feitas em bicicleta, e 62% em transporte coletivo. Num marco para a mobilidade ativa, a cidade está finalmente se preparando para implementar infraestrutura cicloviária nos principais corredores de transporte cidade. Apesar dos 245 km de ciclovias e ciclofaixas construídos desde 2009, falta à capital infraestrutura cicloviária nas vias arteriais, o que leva usuários a pedalar fora das ciclovias e afasta outros ciclistas em potencial. As consequências são trágicas, já que é também fora da rede cicloviária que ocorrem 86% das mortes envolvendo bicicletas.
"O motorista considera que o ciclista não está legitimado no espaço público", afirma Carlota Pedersen-Madero, assessora da Subsecretaria de Planejamento da Mobilidade da Cidade de Buenos Aires. Para contrapor esta situação, a capital portenha quer ampliar a rede cicloviária e a sua conectividade, inserindo as novas infraestruturas em importantes vias da cidade, até então dominadas pelos veículos automotores. A iniciativa busca oferecer mais segurança, facilidade de deslocamento e promover a visibilidade de quem pedala. Serão ciclovias segregadas, de sentido único, ocupando uma pista antes destinada aos carros, viabilizando o distanciamento social.
As ciclovias serão implementadas em avenidas que cortam a cidade de Oeste a Leste, eixo em que há menos conectividade e alta demanda. A proposta também inclui uma ciclovia temporária na avenida 9 de Julio, que conecta pontos emblemáticos como o Obelisco e o Teatro Colón, e poderá conectar as novas rotas. Dividido em quatro etapas, o projeto prevê mais de 56 km de infraestrutura. Em um cenário otimista, a expectativa é aumentar o volume de usuários, dos atuais 7 mil ciclistas que trafegam nesses trechos para 17 mil ao fim da terceira etapa.
Belo Horizonte envolve ciclistas no planejamento
Em 2010, Belo Horizonte tornou-se a primeira cidade brasileira a ter um Plano de Mobilidade Urbana. Mas por entraves comuns como a resistência da população e de gestores, apenas 90 dos 400 km de rotas cicloviárias planejadas foram implementados. “No contexto difícil que estamos passando, acabamos por encontrar oportunidade de colocar a bicicleta, de fato, na pauta da cidade”, contou Eveline Trevisan, coordenadora de Sustentabilidade e Meio Ambiente da BHTrans, órgão de trânsito da capital mineira.
A cidade quer acelerar a implementação da infraestrutura cicloviária, oferecendo uma alternativa segura e sustentável para deslocamentos aos 5 milhões de habitantes da região metropolitana. Para fazer isso, chamou a população. “Desde 2012, fazemos a gestão do nosso programa de mobilidade por bicicleta com ciclistas da cidade. Assim que identificamos a necessidade de pensar infraestrutura temporária, identificamos a rota mais plana que já tinha uma grande utilização por ciclistas, a rota Leste-Oeste. E chamamos os ciclistas para as vistorias, para identificar os desafios”, conta Eveline.
Os primeiros trechos de ciclofaixas temporárias já foram implementados. Eles conectaram a infraestrutura pré-existente, e agora compõem uma rede de 30 km interligados na região central da capital mineira, conectados ao sistema de BRT. A infraestrutura temporária ocupa uma faixa de circulação ou de estacionamento. A expectativa é que novas ampliações da rede sejam feitas nos próximos meses, e que as estruturas temporárias sejam depois convertidas em ciclovias permanentes. “Pela primeira vez estamos conseguindo romper a resistência da cidade à bicicleta”, comemora Eveline.
Curitiba quer acelerar plano cicloviário
Berço de inovações como o BRT, Curitiba investe em infraestrutura cicloviária para o lazer desde a década de 1970. Mas só mais recentemente passou a implementar ciclofaixas nos corredores de transporte coletivo, eixos estruturais da cidade. Este trabalho está sendo intensificado diante do cenário de pandemia.
A cidade reuniu diversos órgãos e secretarias para elaborar medidas que conciliem uso do espaço público, mobilidade e retomada da economia com o distanciamento social, atendendo às demandas emergenciais dos 3,7 milhões de habitantes da região metropolitana. O estímulo à bicicleta e à caminhada são parte fundamental da estratégia, que se vale da abordagem de urbanismo tático para rápida implementação e adaptação contínua.
Uma das intervenções foi a implementação de ciclofaixas temporárias no entorno do Mercado Municipal, polo de serviços e de comércio. Por enquanto, elas funcionam somente aos sábados, dias de maior movimento, em que sinalização vertical leve, como cavaletes e cones, é instalada para demarcar ciclofaixa e extensões de calçadas nas ruas adjacentes.
Em agosto, deve iniciar a qualificação de uma estrutura compartilhada para ciclistas e pedestres que se estende por 6 km entre o Terminal do Portão e a Cidade Industrial. Trata-se de um corredor de transporte coletivo que passa por vários conjuntos habitacionais e pequenas indústrias. Segundo Liana Vallicelli, diretora de Informações e coordenadora de Estudos de Impacto da Pandemia do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), o momento é encarado como oportunidade para intensificar a implementação do Plano de Estrutura Cicloviária aprovado no ano passado. “Estamos melhorando a implementação da intermodalidade, a integração da mobilidade ativa aos eixos de transporte”, conta Liana.
Temporárias, por enquanto
Embora o termo “temporária” possa induzir o entendimento de que essas infraestruturas vão ser retiradas posteriormente, o termo se refere mais ao caráter emergencial. “[Essas infraestruturas] devem ser implementadas para atender aos serviços essenciais, estão sendo feitas de forma rápida, mas sempre com o objetivo de tornarem-se permanentes, no processo de urbanismo tático”, ponderou o moderador Bruno Batista, analista de Mobilidade Ativa do WRI Brasil.
Para que as intervenções tenham sucesso e ganhem escala nas cidades, há algumas estratégias chave: integrar a rede cicloviária com o planejamento de políticas públicas; considerar a duração das medidas tomadas; criar uma boa base para mudança contínua; permitir a melhora por meio de monitoramento e ajustes. Os princípios, expostos no webinar por Bruno Rizzon, analista pleno de Mobilidade Ativa do WRI Brasil, são parte de um guia em produção que a organização deve lançar em breve.
Se iniciativas de cidades europeias como Berlim, Milão, Paris e Barcelona repercutiram no mundo, exemplos da América Latina também podem servir de inspiração para que essa transformação se multiplique. É fundamental que as estruturas sejam seguras, convidativas e de qualidade, para que a pandemia passe, e as ciclovias fiquem.
Via WRI Brasil.