Juliana Coelho é arquiteta e urbanista com experiencia no setor humanitário, de desenvolvimento público e privado. Nos últimos três anos vem atuando no setor com o ACNUR, Agência da ONU para Refugiados. Durante este período, esteve envolvida no planejamento, design e implementação de 21 abrigos temporários, centros de trânsito e centros de recepção/documentação para refugiados e migrantes no Brasil, além de participar da elaboração de um plano de contingência e de projetos de melhoria de ocupações espontâneas e espaços cedidos prestando apoio técnico junto à Operação Acolhida, resposta do governo brasileiro ao fluxo de refugiados e migrantes venezuelanos para o Brasil que, neste ano de 2020, também incluiu ações de resposta à emergência da COVID-19.
Conversamos com Coelho a fim de entender do papel do arquiteto e urbanista nos abrigos para refugiados e migrantes aqui no Brasil. A seguinte entrevista traz à tona os desafios relacionados a implementação das unidades de habitação temporária, desde sua adaptação ao contexto climático do país até as estratégias espaciais de enfrentamento à COVID-19, perpassando temas como a despersonificação do conceito de lar e a função social da arquitetura nesse processo.
Leia a entrevista completa, a seguir.
ArchDaily: Qual é o papel do arquiteto e urbanista nos abrigos para refugiados e migrantes nos quais o ACNUR é responsável aqui no Brasil?
Juliana Coelho: Um arquiteto e urbanista pode estar envolvido com a gestão e coordenação de abrigos temporários com a visão mais holística e espacial; como planejamento e a implementação; e/ou direcionamento mais especifico voltado para questões ambientais e eficiência energética.
Eu trabalho na resposta de emergência ao fluxo de refugiados e migrantes venezuelanos no Brasil, atuo com planejamento e implementação de abrigos temporários, centro de recepção e triagem, centros de trânsito e elaboração de planos de contingências. Assim como elaboração de estratégias e adequação de espaços para atender os refugiados e migrantes e a comunidade de acolhida, provendo apoio técnico às autoridades brasileiras do país para temas relacionados a abrigos.
AD: A Unidade de Habitação para Refugiados (RHU) é a estrutura utilizada pelo ACNUR que foi desenvolvida em parceria com a empresa social Better Shelter e a Fundação Ikea, um modelo importado, portanto. Levando em conta essa situação, existe margem para os arquitetos locais projetarem alterações nessa estrutura? Já foi pensado em desenvolver outras possibilidades construtivas? Como, por exemplo, as estruturas para o Campo de Refugiados de Byumba, Ruanda, do arquiteto Shigeru Ban.
JC: Certamente. As RHUs são uma alternativa para as respostas de emergências no mundo, onde algumas operações acabam adaptando-as ao contexto. No Brasil, o ACNUR implementou pela primeira vez, janelas extras com materiais disponíveis no mercado locais e com dimensões superiores às originais. O propósito foi aumentar a circulação cruzada de ar, uma vez que o maior número de RHUs no Brasil está localizado no Norte do país, com temperaturas elevadas durante todo o ano. Essa solução foi replicada na Colômbia e está em progresso na Venezuela.
Seguimos em busca de soluções, atualmente o ACNUR Brasil em parceria com a Cátedra Sérgio Vieira de Melo, CSVM e o Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo/Departamento de Arquitetura e Urbanismo EMAU/DAU/PUC-Rio está realizando estudos sobre como melhorar o conforto térmico, expandir a vida útil da unidade e reduzir os impactos ambientais.
AD: Como lidar, como arquitetos, com a reconfiguração da casa como algo não estanque? Existe um cuidado espacial em, propositalmente, não possibilitar a permanência naquilo que foi projetado para ser efêmero?
JC: No contexto do Brasil, adotamos abrigos temporários onde, de fato, a estrutura é projetada e baseada nos padrões humanitários. As estruturas efêmeras são parte da primeira resposta num contexto de emergência em que o desafio maior é o tempo hábil disponível para planejar, mobilizar e implementar estruturas dignas para atender a demanda de um fluxo de refúgio com situações de extrema vulnerabilidade. Como exemplo, em Roraima durante a resposta emergencial, em um período de 6 meses implementou-se 10 abrigos, os maiores construídos absolutamente do zero.
AD: Levando em consideração essa dualidade, como você acha que a arquitetura pode contribuir para a restituição da dignidade dos refugiados e migrantes?
JC: Por meio de projetos que cumpram os princípios de proteção, respeite as diversidades culturais e que estabeleçam um diálogo com a população refugiada e migrante e como as comunidades acolhedoras.
AD: Falando sobre as atividades de convívio social, existem espaços projetados para o uso comum nos abrigos temporários? Se sim, estes lugares também recebem a comunidade externa? Como se estabelece essa relação com a cidade?
JC: Definitivamente. Os espaços de uso comum são primordiais para o funcionamento e gestão das estruturas. No contexto do Brasil, esses espaços são estruturados para a população abrigada e a relação com a cidade se dá por meio dos espaços públicos de serviços e lazer, previamente desenvolvidos para atender a população local.
AD: Em relação à nossa situação atual. O que mudou com a pandemia da COVID-19 nas ocupações espontâneas e abrigos temporários? Quais atitudes foram tomadas frente a isso?
JC: Seguindo as orientações da OMS, os abrigos passaram a adotar o distanciamento social nas áreas comuns, estações de lavagem de mãos foram instaladas em áreas específicas de abrigos, ocupações espontâneas e espaços cedidos. Também houve a intensificação na comunicação com a comunidade com informações sobre higiene, sobre o próprio vírus e medidas preventivas contra o coronavírus, campanhas de higiene e orientações sobre o contexto da pandemia dentro e fora dos espaços habitados, além da definição de áreas de isolamento temporário dentro de cada abrigo.
Como Roraima é o estado com a maior concentração de abrigos da Operação Acolhida, em resposta ao coronavírus, foi construída uma área de isolamento dividida em casos suspeitos e casos confirmados, com capacidade total de 1.000 pessoas, além de um hospital de campanha para 782 leitos e um centro de triagem.
AD: Recentemente, ouvi de um estudioso a frase de que “os campos de refugiados são as cidades do futuro”. De fato, é possível fazer uma analogia sobre a crescente despersonificação da casa no mundo contemporâneo, um crescente nomadismo – instigado por inúmeros motivos, obrigatórios ou não – que levam a este novo “conceito” de casa. O que você pensa sobre essa despersonificação do lar, não somente na questão dos refugiados, mas como um índice da vida contemporânea?
JC: Considerando que o número de pessoas em deslocamento forçado aumentou exponencialmente nos últimos dez anos, contabilizado pelo ACNUR 86,5 milhões de pessoas no fim de 2019, que a Organização Internacional para as Migrações (OIM) contabiliza 272 milhões de migrantes internacionais e que a realidade de instabilidade, conflitos, crises econômicas e mudanças climáticas no globo, pulsam, creio que quanto mais pudermos aplicar o ensinamento de Mies van der Rohe no conceito de lar “o menos é mais” estaremos no caminho com mais chances de êxito emocional e espacial.
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