Não há nada como uma crise para aproximar as pessoas. Depois da desastrosa passagem do furacão Katrina pelo sul dos Estados Unidos em agosto de 2005, os moradores de Nova Orleans—uma das cidades mais afetadas pelo desastre natural daquele ano—se uniram para colaborar no processo de tomada de decisões, participando ativamente no desenvolvimento do novo projeto de planejamento urbano unificado da cidade, o qual foi coordenado pela nossa empresa Concordia e contou com a participação de outras 12 equipes multidisciplinares.
Atualmente, a Concordia está engajada em outro importante projeto de desenvolvimento urbano concebido para enfrentar as consequências causadas pelo aquecimento global no sul de Louisiana. Chamado de LA Safe, o projeto está sendo desenvolvido como uma resposta aos impactos devastadores deixados pelo recente e contínuo aumento dos níveis das marés.
Segundo as autoridades locais, ao longo dos próximos 50 anos sete comunidades costeiras do estado da Louisiana terão de ser relocadas devido ao aumento do nível do mar. Isso na melhor das hipóteses, pois, como os dados estão em constante transformação, é provável que a área afetada possa ser muito maior do que o previsto inicialmente. À nível mundial, dezenas de milhões ou até mesmo centenas de milhões de pessoas serão afetadas por uma ou outra consequência decorrente do agravamento da crise climática até o final deste século.
No estado da Louisiana, no sul dos Estados Unidos, algumas comunidades nativas como os Biloxi, os Chitimacha e os Choctaw, que atualmente vivem na Isle de Jean Charles, já estão sentido na pele as consequências provocadas pelo aumento do nível das marés. Como a paisagem onde vivem a quase duzentos anos está desaparecendo dia após dia, estas comunidades serão relocadas em breve para uma nova cidade que está sendo construída cerca de cinquenta quilômetros mais ao norte. Como consequência disso, os indígenas que chegaram à Ilha na década de 1830 fugindo da ameaça do homem branco, deverão enfrentar um de seus maiores desafios, não apenas causados por um reassentamento físico, mas principalmente pelas possíveis consequências culturais e sociais.
Neste contexto, devemos nos perguntar não apenas qual é o nosso papel no processo de planejamento urbano, mas também a gravidade das consequências provocadas por nossas decisões? Será que devemos nos preocupar apenas com as questões físicas relacionadas ao território? Ou será que devemos ser mais sensíveis em relação a como estas transformações afetarão à nossa vida em sociedade? Como tudo isso anos afetará à nível cultural, social e também econômico e governamental? Como nossos arquitetos e urbanistas assumirão essa responsabilidade em um momento tão crítico e decisivo para a humanidade?
Todas essas questões me vieram à mente recentemente, enquanto eu assistia um vídeo sobre Victoriano Arizapana, engenheiro Quechua construtor de pontes de corda. Arizapana mora em uma pequena vila perto de Huinchiri, no Peru, e a cada primavera, ele ajuda membros de quatro comunidades indígenas da região a construir e reconstruir suas pontes, as quais eles necessitam para atravessar o imenso cânion sobre o rio Apurimac — um ritual comunitário que remonta aos Incas, por volta dos anos 1200 d.C.
Aos doze anos, Victoriano aprendeu com seu pai a milenar arte da construção de pontes de corda. Ao longo do ano, ele vai tecendo suas cordas com fibras de grama Q'oya. Com os cabos prontos, é preciso utilizar uma ponte velha como guia para puxar as novas cordas pelo desfiladeiro do rio. Depois disso, a velha ponte é então cortada, desaparecendo na imensidão do vale.
Se você nunca assistiu este documentário, assista. Se você já o viu, vale a pena assistir novamente.
Para enfrentamos os desafios que nos estão sendo impostos pelas mudanças climáticas, aqui vão algumas lições que os planejadores podem aprender com esta antiga tradição Quechua:
O poder das tradições culturais
Comunidades com tradições culturais de longa data são mais fortes; seus antigos rituais promovem e inspiram a união de seu povo. “Se parássemos de cultivar nossas antigas tradições, seria como se estivéssemos morrendo”, diz Victoriano. “Não podemos permitir que a arte da ponte de corda desapareça. Todo o conhecimento que recebi de meu pai eu estou passando agora para meu filho. Quando eu morrer, será ele, junto à seus irmãos de nossas comunidades, o responsável por manter esta tradição viva.”
Estreitando os vínculos sociais de uma comunidade
A arte que Victoriano domina vem de uma longa linha de ancestrais que vieram antes dele, os quais abraçaram um profundo senso de obrigação para com o futuro de sua própria comunidade. Sem esse dever cívico para com a sua comunidade, essas tradições teriam desaparecido há muito tempo.
Tradições que unem pessoas
A união de uma comunidade é a força motriz que a faz prosperar. O papel de Victoriano em orquestrar a construção da ponte transcende o conhecimento técnico. É uma construção colaborativa que orienta e inspira os membros da comunidade a participar do processo.
A elegância das estruturas ancestrais
Construir uma ponte Q'eswachaka só é possível graças à preservação do conhecimento. Construir esta ponte de corda sobre o vale é preservar não apenas o conhecimento técnico, mas a tradição de cultivar e tecer cada fio que compõe as cordas como se fazia antigamente, um processo que conecta o povo Quechua tanto com seus ancestrais quanto com a paisagem natural que eles habitam.
A fome de sentido
Carl Jung foi quem disse que os habitantes do deserto de Kalahari, no sul da África, falam sobre dois tipos de “fome”. Existe a fome grande e a fome pequena. A pequena é aquela que nos faz querer comer, colocar algo em nosso estômago, a fome grande, por sua vez, é aquela que predomina, é a fome de sentido, significado.
Talvez haja algo de bom na crise. Especialmente na crise climática. Talvez seja ela que nos faça ver mais além do nosso próprio umbigo. Talvez possamos perceber com isso que muitas das lições vitais para a preservação da vida e do nosso planeta já estão dadas e — como Victoriano Arizapana e a ponte Q'eswachaka — escondidas silenciosamente no meio da floresta.
Este artigo foi publicado originalmente em Common Edge.