Você já pensou em andar a pé? Essa é a pergunta que o GUIAPÉ SP – um guia apresentado aqui por meio de ensaio – faz ao leitor. Desde a capa, ele propõe andar pela cidade de São Paulo e faz isso por meio de um percurso que passa estrategicamente por lugares nos quais o mais interessante é chegar a pé, para que se veja os detalhes que nem sempre são vistos, as pessoas, a vida urbana. Esse guia não foi feito para visitar pontos turísticos e sim para levar seu leitor a um passeio. Nele, o percurso e as calçadas não são apenas os elementos que conduzem aos lugares deste guia, eles são parte da viagem.
A ideia por de trás do guia originou-se da necessidade de falar sobre o espaço público da cidade de São Paulo, onde este está ambientado, e, principalmente, para reconhecer o quanto que caminhar na rua é determinante para que esse espaço efetivamente exista. Essa inquietação, então, se traduziu em um objeto: o guia.
Este usufruiu da “desculpa de caminhar” para construir um percurso pela cidade, em busca de identidade, das peculiaridades e belezas raras, reforçadas ainda mais pelo ato de andar - que veio a ser o elemento de recorte do guia. Isso tudo para trazer em pauta a discussão sobre a importância de ocupar o espaço público e da qualidade que ele obtém quando é ocupado.
Por onde você vai passar?
Cada ponto de visita desse guia foi escolhido porque saltava aos olhos.
Saltava aos olhos pela sutileza, pela descoberta, pela simplicidade. Cada lugar é único, único não necessariamente pela singularidade, mas por trazer identidade:
Esses lugares são paulistanos e só existem em São Paulo.
A escolha de cada um deles vem da sua ligação quase intrínseca a atividade de caminhar a pé pela cidade. Poucos, ou quase nenhum, são para se fazer uma visita isolada depois de pegar seu carro e estacioná-lo em um edifício garagem, afinal, não se costuma pegar o carro para ir a uma lanchonete de hot dog minúscula na Rua São Bento, ou para comer uma laranja descascada na hora.
A eleição dos 33 pontos de paradas e pontos de vistas vem para construir o percurso porque ele é o elemento chave desse guia e o seu principal critério. É um guia para se descobrir a pé, para experimentar andar na cidade e sentir o que ela tem para oferecer.
Percorrê-la.
A caminhada começa pelo Centro Novo da cidade, se estende ao centro velho e termina no bairro da Liberdade, totalizando um percurso sugerido de 12,5 km.
O Centro paulistano é uma das poucas regiões que te convida a caminhar. A fluidez do andar é distinta de qualquer outra, em outro ponto da cidade. Isso acontece não apenas pela existência dos calçadões exclusivos para pedestre, mas também porque você pode entrar no térreo de um edifício e sair em outra rua, sem perceber.
Na região podemos encontrar de tudo, e de todos. De mercadorias a pessoas, o centro traz a diferença étnica e social vista por quem ali trabalha, mora ou passa.
Ao passar pela praça Antônio Prado, por exemplo, durante a tarde e se sentar na mureta do canteiro das árvores, em questão de segundos é possível ouvir, repetidas vezes, a frase: “xá xefe?”
Talvez não entenda, de primeira, o significado dessa frase, mas ela é dita pelos engraxates que ali trabalham, ao chamarem clientes para engraxar o sapato.
“Engraxar, chefe?”
Eles trabalham dentro de quiosques, que estão ali desde 1986 e que sofreram pequenas reformas, até hoje. A estrutura, por si só, já chama a atenção. Seu estilo e seu bom estado de conservação tornam o espaço notável e, ao abrigar essa profissão, tradicional do começo do século XIX, se faz ainda mais singular.
Espaços como esse demonstram que no centro ainda sobrevivem profissões, que na dinâmica da cidade e sociedade contemporânea, seriam obsoletas, mas que se mantém ali e acompanham o desenvolvimento da cidade.E a região se converte em um espaço muito rico.
É essa riqueza que o guia quer fazer o seu leitor experimentar durante a caminhada.
A existência da especialização de lojas, das famosas “coisas que você só vai encontrar no Centro” e sua ocupação arquitetônica, que mistura o icônico ao mais simples – improvisado - também ajudam na construção de um percurso a cada passo mais interessante.
Por exemplo, ao realizar o percurso e chegar na rua Florêncio de Abreu, se encontra três portas estreitas com vitrais coloridos, desenhando flores. Demoram alguns segundos para assimilar toda a informação que vem a seguir; para dentro dessas portinhas existem painéis e painéis nas paredes repletos de peças, assim:
Parafuso sextavado
Parafuso para madeira
Parafuso rosca máquina
Parafuso auto atarraxante
Porcas
Barras
Canos
Tubos
Todos expostos, compondo uma vitrini. Muito provavelmente você não precisará comprar nada, mas vai entrar na loja para poder ver mais de perto, com mais detalhes, todas essas pecinhas; até que o vendedor te pergunte “precisa de alguma ajuda?”.
A ocupação da calçada do Centro da cidade é intensa, ela é comércio, lazer e passagem e é ela que te conduzirá pelo guia.
Já o bairro da Liberdade entra no percurso quase sem que se note. Começar a caminhar pelo Centro e chegar na Liberdade é um roteiro ao mesmo tempo que imperceptível, obrigatório.
A frenesi do bairro é inegável. Mesmo não tendo calçadões exclusivos para pedestre a atividade do caminhar luta de frente com a presença do carro. A calçada mais estreita não impede que filas se formem para comprar um tempurá em um restaurante ou jabuticabas em um carrinho, na esquina entre a rua Galvão Bueno com a rua Américo de Campos.
A vida é tão intensa na calçada que esta se expande para uma pintura sinalizadora no chão, verde, ao longo da Rua Galvão Bueno. Repleta de bancos – mobiliário bastante ausente nos espaços públicos da cidade – a calçada dessa rua diz “pedestre, aqui” e as pessoas se sentam para comer algo, debaixo de luminárias de design oriental. Mas não é só da história dos orientais que é feito esse lugar; traços da memória africana nessa região também aparecerão.
Luminária, vermelho, luminária. Um beco.
Depois de uma sequência repetitiva de ornamentos orientais, é possível ver um contraste a toda essa informação. Subindo a Rua dos Estudantes à esquerda um beco sem saída, cinza. Aflito.
É essa a sensação que se tem ao caminhar até chegar na Rua dos Aflitos, estreita, escondida, esquecida.
O enquadramento mais bonito, para terminar o percurso do guia.
Ao final, uma capela. A Capela dos Aflitos, que surgiu em 1774 e viu ser erguida cada empena que a cerca e toda a mudança de uma paisagem que, no passado, dava lugar ao Cemitério dos Aflitos.
Este recebia escravos e “indigentes” que eram enforcados onde hoje fica a Praça da Liberdade, mas que foi completamente soterrado para dar lugar ao bairro.
A capela foi o que sobrou dessa memória, e apesar de mal cuidada, ainda grita:
“Liberdade, Liberdade”
Tudo isso está neste guia, que é para deixar-se levar. Tropeçar faz parte, mas é indicado não olhar apenas para o chão. Explorá-lo é o que irá surpreender.
GUIAPÉ SP é um guia desenvolvido em 2019 como trabalho final de graduação da Escola da Cidade. Produzido por Bruna Cardoso e orientado por Fabrizio Lenci. Seu conteúdo foi adaptado ao instagram e pode ser encontrado como @guiapesp.