Viver, trabalhar e experimentar cidades com ruas, centros e parques vibrantes, passeios com dimensões adequadas, transporte público eficiente e um baixo nível de congestionamento são desejos de muitas pessoas ao redor do mundo. Atingir estas condições não é uma tarefa fácil, e cidades que possibilitam tais situações certamente não as obtiveram através de um planejamento orientado ao automóvel.
Frente a uma população que experimenta diariamente maus exemplos de como uma cidade deve operar, alguns paradigmas, fenômenos e medidas dificultam o planejamento e funcionamento de “cidades para pessoas”.
“Cidade para pessoas”
O termo “cidades para pessoas” tem relação direta com a obra Cities for People de Jan Gehl, onde o autor caracteriza diversas maneiras e soluções para uma cidade ser viva, segura, sustentável e saudável. Em suma, “cidades para pessoas” refere-se a contextos onde o pedestre é visto como o elemento principal para o planejamento e desenvolvimento urbano da localidade.
Uma parcela significativa responsável pela manutenção de maus exemplos pertence a governantes, formuladores de políticas e planejadores urbanos que ainda se baseiam num planejamento de transporte ultrapassado (paradigma predict and provide, ou “prever e prover”).
Dependência do carro
O planejamento de transporte orientado ao automóvel está diretamente ligado ao conceito car dependency, a dependência ao automóvel, representado por um desenho urbano que prioriza os carros em relação aos modos alternativos (transporte coletivo e modos ativos). Com isto, centros urbanos, áreas periféricas, cidades de médio e pequeno porte continuam a “oferecer” experiências desagradáveis diariamente aos seus cidadãos gerando inúmeros problemas para que os próprios responsáveis (como do setor de planejamento de transporte) possam corrigir.
São abundantes os problemas gerados pela disponibilização de uma quantidade significativa de área do espaço público ao automóvel. O congestionamento é um dos principais e está diretamente ligado a questões sociais, econômicas, ambientais e políticas. O tempo desperdiçado principalmente no deslocamento habitual (casa–trabalho), o estresse diário, os investimentos públicos equivocados em infraestrutura, a emissão de gases poluentes, doenças respiratórias e antecipação de milhares de mortes nas grandes cidades são apenas alguns dos distúrbios ocasionados por um planejamento urbano orientado ao automóvel.
Espraiamento urbano
Além dos problemas caracterizados anteriormente, a urbanização e espraiamento urbano também são pontos importantes para demonstrar porque cidades enfrentam tantos distúrbios no âmbito da mobilidade, acessibilidade, gerenciamento do espaço público e no empobrecimento da paisagem urbana.
Evidentemente, quando menciono a urbanização como um problema, me refiro à urbanização apoiada por um planejamento ortodoxo incapaz de entender e atender às reais necessidades da população.
A suburbanização já é uma questão onde os pontos negativos sobressaem-se explicitamente através da inviabilidade da diversidade urbana por meio de áreas monofuncionais, do estímulo à segregação social urbana e pela intensificação de problemas de mobilidade. A importância de regiões metropolitanas com alta densidade populacional é essencial para que alguns fenômenos comecem a ser mitigados. Entretanto, a alta densidade populacional não é capaz de resolver sozinha os problemas. No contexto brasileiro — país com distâncias continentais —, mesmo em diferentes estados, as experiências urbanas, em geral, são idênticas: o choque de cultura raramente acontece e as pessoas não distinguem como uma cidade pode funcionar sem ser refém do carro.
Preferência pelo carro
Outra fração responsável pela dificuldade de planejar “cidades para pessoas” é atribuída às pessoas que já têm a preferência pelo carro, que resistem e/ou não têm a intenção de mudar. Claramente os diversos fenômenos, paradigmas e medidas previamente citados impulsionam diariamente a manutenção dessas preferências menos sustentáveis.
Dentre as cidades que enfrentam problemas de desigualdade espacial entre o carro e pedestre, o entendimento por parte da população de que o veículo privado é o meio de locomoção mais adequado é assustador. Estes usuários desconhecem o poder que tanto o transporte coletivo como os modos ativos de transporte podem desempenhar na vida urbana. A crença de que o aumento e o alargamento de vias são a solução para os problemas de mobilidade — infelizmente — é uma verdade absoluta para muitos destes indivíduos.
Outra questão encontrada frequentemente é o transporte coletivo sendo sinônimo de transporte para pobres, assim como relatos de alguns usuários trabalharem e/ou fazerem hora extra para comprar um carro e deixar de usar o transporte coletivo. Em contextos que predominam estes pensamentos, o transporte coletivo não consegue ser atrativo e dispõe de baixa qualidade no nível de serviço e de conforto, em um ciclo retroativo negativo.
A população mais pobre, geralmente a que mais utiliza transporte coletivo em países subdesenvolvidos, bem como os responsáveis pela sua manutenção e existência, infelizmente não tem poder aquisitivo para experimentarem bons exemplos em cidades como Amsterdam, Hamburgo, Barcelona e Copenhague e certificarem-se como estes hábitos são acertados e importantes a serem mantidos para o desenvolvimento sustentável de uma cidade.
Já pessoas que têm a oportunidade e a disponibilidade de experimentarem bons exemplos e mesmo assim continuam com preferências pelo carro podem ser divididas em dois grupos: usuários que querem mudar seus hábitos para deslocamentos mais sustentáveis e se deparam com a falta de infraestrutura, frustração e desapontamento para realização de tal atividade, e usuários que resistem a mudança de hábito, acreditando que bons exemplos são exclusivos de determinadas localidades e/ou reivindicam equivocadamente soluções imediatas como metrô e VLT — sem avaliar a viabilidade econômica desses modos assim como a dificuldade para implementação.
Em virtude da dependência do automóvel ainda presente em muitas cidades ao redor do mundo, os maus exemplos cotidianos parecem estar longes de desaparecer, consequentemente inviabilizando as “cidades para pessoas”. Por fim, mesmo com algumas cidades mobilizando-se através de planos e estratégias para fornecer infraestrutura a pedestres, usuários de micromobilidade e transporte coletivo, a falta de convicção por parte de diversos governantes e planejadores urbanos para restringir ou, pelo menos, diminuir o incentivo aos veículos privados, apresenta-se ainda como o fator crucial para ocorrer mudanças capazes de alterar paradigmas.
Via Caos Planejado.