Na segunda parte de sua entrevista com o ArchDaily, Hashim Sarkis reflete sobre o futuro da arquitetura ao abordar a questão atemporal da Bienal de Veneza de 2021. O curador da Bienal, que propõe o tema “Como viveremos juntos?”, discute o papel da profissão em meio a todos esses novos paradigmas, afirmando que “os arquitetos mudam o mundo [...] criando [... ] imagens de desejos do que o mundo poderia ser."
Neste artigo, o curador da esperada bienal e reitor da Escola de Arquitetura e Planejamento do MIT apresenta suas visões sobre a evolução da arquitetura e os novos rumos que o mundo acadêmico deve tomar para refletir "a complexidade dos problemas urbanos de hoje". Sarkis também menciona Beirute, discutindo abordagens de reconstrução, sociedade civil e a noção exasperante de resiliência.
Leia a segunda parte da entrevista para saber mais sobre a visão de Hashim Sarkis sobre o futuro da profissão e suas ideias em relação a Beirute.
Sobre o papel da arquitetura
ArchDaily (Christele Harrouk): Na medida em que os problemas do mundo se agrava, qual se torna o papel da arquitetura? Os arquitetos podem realmente mudar o mundo?
Os arquitetos mudam o mundo. Eles fazem isso principalmente criando mundos alternativos, imagens de desejos do que o mundo poderia ser.
Hashim Sarkis: O confinamento nos tornou muito mais conscientes do que é preciso para construir um mundo e quão importante é a arquitetura neste processo. Eu gostaria de pensar em cada chamada do Zoom não como a morte da arquitetura, mas como sua proliferação em diferentes espaços que estão tentando recriar, na microescala daquela grade, um mundo possibilitado pela arquitetura que ela expõe: um vislumbre de um quarto aqui, um jardim ali, uma sala de estar, uma estante de livros. A ausência de arquitetura é igualmente ostensiva quando, por exemplo, uma imagem da paisagem é projetada atrás da pessoa na tela. Ansiamos pela presença da arquitetura mesmo em um fundo falso para nos transportar, através do imaginário arquitetônico, para outros mundos.
Acho que nunca testemunhamos um momento em que confiamos tanto na arquitetura para capturar nossas identidades individuais e projetá-las para os outros verem.
Sobre o futuro da arquitetura
AD: Você acha que esses tempos terão um impacto significativo na profissão? Você vê isso como o início de uma nova era ou apenas uma fase passageira?
Além disso, como você acha que a arquitetura irá evoluir, especialmente com o surgimento de jogos, aplicativos e IA acessíveis, onde qualquer pessoa pode desenvolver sua própria visão do espaço? Você acha que isso vai alterar a profissão de alguma forma?
O ArchDaily fez um ótimo trabalho abrindo esta questão. Espero que vocês continuem a enriquecer o debate sobre o futuro da arquitetura, continuando a solicitá-lo aos futuros arquitetos e a gerar debates críticos entre eles.
HS: Já que a segunda parte da pergunta é sobre tecnologia, deixe-me colocar meu boné do Massachusetts Institute of Technology (MIT) para dizer “com certeza” que as novas tecnologias guiarão a profissão para novas perspectivas! Nossa profissão não é a única a ser transformada por big data, autonomia, automação, aprendizado de máquina e código aberto. Mas arquitetura e o design também se tornaram termos predominantes nessas novas tecnologias. Como observa Nicholas de Monchaux, Chefe do Departamento de Arquitetura do MIT, “se precisarmos de evidências da relevância fundamental do pensamento arquitetônico para a convergência de tecnologia, espaço e sociedade, basta apenas olhar para a apropriação da ideia de 'arquitetura', e mesmo 'arquiteto', como termo ao discurso tecnológico contemporâneo."
Estamos vendo claramente mudanças nos métodos de design, produção e montagem de edifícios. Também estamos vendo as novas tecnologias mudarem alguns dos princípios da disciplina.
Uma virada radical foi amplamente reconhecida no advento da computação. O design sempre operou em várias escalas como uma força unificadora na desordem do mundo industrial, desde o design de produtos até as cidades. Nas universidades, o design também tem a tarefa de tecer um fio condutor entre os campos. No entanto, nossas profissões e disciplinas de design se diferenciam umas das outras pela escala de sua produção. Os processos computacionais nos permitiram pegar ferramentas de uma escala de design e aplicá-las em outra mais prontamente, suavizando as transições e mudanças de escala. A gama de escalas agora se expandiu, ainda mais, levando-nos do nano ao planetário. O mesmo aconteceu com a troca de ferramentas.
No passado, os planejadores urbanos planejavam as cidades para resolver os problemas das cidades. Agora eles podem programar um aplicativo! O impacto que isso terá nos espaços que projetamos ainda está para ser resolvido, mas será necessário mais do que apenas dar zoom para chegar lá.
Por um lado, será necessário a capacidade de conectar experimental e sistematicamente essas escalas para nos conscientizarmos de que o que fazemos em uma escala terá impacto sobre as outras escalas e para nos tornar cientes, em nossa experiência do mundo, dessa conectividade. No MIT, e por meio de várias iniciativas conjuntas com a engenharia, estamos trabalhando para facilitar a discussão entre os projetistas de sistemas e projetistas de objetos e entre os projetistas de nanotecnologias, arquitetos, planejadores urbanos e geoengenheiros.
Outra virada importante está relacionada aos valores pelos quais projetamos. A tecnologia possibilitou o open-source, o código aberto da produção e o aumento da capacidade dos usuários finais de projetar, produzir e montar seus próprios espaços e móveis. A posição do designer está, portanto, mudando, de proprietário do talento e fonte de valores no início do ciclo de produção para ter que difundí-los nas diferentes fases da produção e compartilhar os valores e julgamentos sobre o que é um bom design e o que é um design ruim para os fabricantes, produtores e, principalmente, para os usuários finais. Isso promete mudar radicalmente o papel do designer e a valorização do design no longo prazo. No MIT, e em resposta a essa mudança, estamos examinando essas questões com a ajuda de historiadores culturais, mas também com a ajuda de professores de design e gerenciamento de sistemas da Sloan School of Management.
Talvez a virada mais desafiadora diga respeito aos parâmetros de design. Para estar no controle do processo, de acordo com a abordagem predominante, o designer deve permitir que certos parâmetros do projeto sejam colocados na mesa e excluir outros ou adiá-los. Com o passar dos anos, passamos a considerar a forma, a composição e (às vezes) o programa essenciais. Eles chegam ao programa, à mesa e aos tópicos de revisão do estúdio. No entanto, deixamos de lado as questões estruturais e ambientais e de desempenho, passamos a trata-las como externalidades ou compromissos que teremos de lidar mais tarde. Por muito tempo, essa seleção de parâmetros moldou a educação e a profissão. O processo computacional permite que essas "externalidades" voltem ao processo de projeto. Agora podemos assimilar todos os parâmetros no início do processo de design. Se o design é uma forma de síntese entre essas diferentes habilidades e inteligências que informam a construção, então as novas tecnologias estão nos permitindo expandir a inteligência que informa o design e reconsiderar a hierarquia entre os parâmetros.
Estamos começando a imaginar um processo de design sem externalidades. Esses são alguns dos resultados prometidos do BIM e da simulação. A pressão crescente sobre os arquitetos para provar o desempenho, especialmente no lado ambiental e econômico, só será auxiliada por esses métodos.
O aspecto mais desafiador de sua pergunta será sobre como os espaços que habitamos mudarão. Se, por exemplo, os principais espaços da cidade, hierarquias de ruas e monumentos desempenharam um papel muito importante em ajudar os cidadãos a se orientarem, essas qualidades mudariam agora que contamos mais com aplicativos de navegação do que em características espaciais e pontos de referência para nossa orientação? Se neste momento a nossa inteligência humana interage com a inteligência de uma sala abrindo e fechando as janelas, e mudando a disposição dos móveis para maximizar as dimensões espaciais, qual será a natureza da nossa interação quando a Inteligência Artificial da sala tomar conta de seu sombreamento e maximizar seu layout.
O impacto da tecnologia em nossos olhos e em nosso comportamento provavelmente gerará um impacto mais forte na arquitetura e nas cidades, mas mudará nossa interação com o espaço. Eu digo: “Pode vir!” Sempre encontraremos valiosas saídas para nossa inteligência e imaginação. Poderemos incluir a Inteligência Artificial em qualquer discussão que desejarmos.
Sobre novas direções de projeto
AD: Você acha que o mundo do design está mudando para modelos mais sociais e comunitários? Qual é o papel da educação em levar adiante essas ideias?
HS: Um dos problemas perniciosos que enfrentamos na academia é que tendemos a ensinar aos nossos alunos velhos truques para lidar com novos desafios. Em outras palavras, tendemos a perpetuar estruturas de conhecimento disciplinar que foram moldadas em torno de problemas anteriores, mas que não correspondem mais aos problemas em questão. Os campos que constituem os estudos urbanos nas universidades hoje (desenvolvimento social e econômico, desenho urbano, planejamento comunitário e políticas ambientais), por exemplo, não refletem efetivamente a complexidade dos problemas urbanos atuais. Nem aqueles que constituem os estudos de arquitetura (design, representação, tecnologia de construção e estudos históricos e culturais).
Problemas como segregação racial nas cidades, desigualdades de gênero, inundações costeiras, mobilidade social e escassez material abrangem escalas e disciplinas e exigem novas ferramentas, novas abordagens, até mesmo novas epistemologias.
A educação mais rica é aquela que ajuda a articular e fortalecer os valores dos alunos e que traz esses valores para o próprio conhecimento que está sendo transmitido a eles por meio do debate e da demonstração. Esta geração de alunos avançou corajosamente em modelos sociais e comunitários baseados nos valores de sustentabilidade e equidade que eles defendem com tanta força. A justiça racial, a justiça de gênero, a justiça climática, a igualdade social e a necessidade de mobilizar todos os recursos para alcançá-los estão sendo buscados em todos os programas de estudos e sob cada pedra. Nosso papel como educadores é envolver os alunos na melhor maneira de promover seus valores por meio de suas futuras profissões como designers, arquitetos, planejadores e outras ainda a serem inventadas. Podemos fazer isso melhor se abandonarmos a antiga, mas falsa, distinção entre profissionalismo e engajamento social, se trabalharmos com nossos alunos para posicionar seus pontos de vista de forma nítida, mas respeitosa em relação aos dos outros, e se transmitirmos a eles que precisam ser melhores do que nós, abrindo espaço para que os valores das próximas gerações mudem os seus.
Sobre Beirute
AD: Vamos falar sobre Beirute e a recente calamidade. Após a explosão, 40% da cidade foi gravemente danificada, de acordo com relatórios recentes. Beirute foi atingida no centro de seu tecido urbano e o debate da reconstrução já está posto. Que tipo de abordagem você adotaria na reconstrução de Beirute? E quais são as prioridades?
Finalmente, dada a situação política, você acha que a governança urbana pode ser controlada pelo povo? Em outras palavras, as pessoas podem reconstruir sua cidade por conta própria? Seria este o nascimento de um novo sistema de governança?
HS: Cerca de quinze anos atrás, Lawrence Vale e Thomas Campanella me convidaram para escrever um capítulo sobre Beirute em um livro chamado The Resilient City. Esse livro foi realmente um precursor. Foi a primeira tentativa de articular a noção de resiliência na arquitetura e nas cidades, ilustrando-a por meio de estudos de caso de todo o mundo que superaram desastres e guerras. Naquela época, os planos de recuperação de Beirute emergindo de quinze anos de guerra civil pareciam exemplificar a resiliência no seu melhor. A explosão recente, infelizmente, destruiu uma grande parte da cidade que foi reconstruída desde então e outros bairros residenciais do centro.
Significativamente, a raiva que se espalhou após a explosão foi projetada na corrupção e na negligência que levou a essa explosão, mas também tem a ver com a associação de Beirute com resiliência.
“Chega de resiliência”, gritavam as pessoas, reconhecendo com derrota que haviam atingido o limite de tolerar tacitamente ao longo dos anos todas as injustiças e corrupção que levaram a guerras e explosões desse tipo. Beirute deve ser reconstruída a partir desta posição. Quando os cidadãos gritam coletivamente “chega”, é um dos momentos mais solidificantes da sociedade civil.
Josiah Ober descreveu o início da Revolução Ateniense como o momento em que os atenienses, apesar de suas diferenças políticas, disseram coletivamente "não". Eu acredito que Beirute chegou neste momento. Ela atingiu seu limite de resiliência porque foi reconstruída durante a década de 1990 sem fundações cívicas. Nós reconstruímos a infraestrutura física antes da infraestrutura social. Achamos que isso viria mais tarde. Não veio. Construímos rodovias, mas não transporte público, fachadas privadas, mas não espaços públicos, novos hospitais, mas não um sistema de saúde público. A sociedade civil extrai sua resiliência em tempos de desastre de suas instituições: suas escolas, seus hospitais, seus espaços públicos.
O que é animador é a maneira como a sociedade civil está se levantando para lidar com o socorro e, com sorte, a reconstrução. Na ausência do estado, o maior desafio dos esforços de socorro e reconstrução hoje é encontrar uma maneira de unir esses esforços de base em uma visão ousada para a cidade, e não fragmentar e privatizar esses esforços. No MIT, e com o apoio de Dar al Handasah e em colaboração com a Universidade Americana de Beirute e outras organizações, estamos embarcando em um projeto conjunto para propor uma infraestrutura cívica para a cidade a partir das visões coletivas e coordenadas de sua sociedade civil.
A ameaça que Beirute está enfrentando e a ameaça que Veneza está enfrentando exemplificam o que virá quando os estados falharem e quando as ecologias entrarem em colapso.
O resultado da injustiça e da negligência é tão catastrófico que não podemos deixar de imaginar o futuro do planeta a partir desses locais de desastre intenso. No entanto, essas cidades têm gerado muita compaixão e apoio em todo o mundo, de uma forma que seus infortúnios anteriores não geraram. Estes desastres passaram a ser reconhecidos como problemas mundiais. Eu vejo isso como um sinal de esperança.