![O corpo e o "conforto inteligente" na arquitetura: uma conversa com Marcelo Ferraz - Imagem 1 de 19](https://images.adsttc.com/media/images/5f90/47b1/63c0/1768/cd00/0224/newsletter/PA_CROQUI_01.jpg?1603291042)
Compreender a relação entre o corpo e o espaço é fundamental para propor as mais diversas experiências que a arquitetura pode proporcionar. Para refletir sobre distintas escalas que abrangem o ofício do arquiteto, do edifício construído ao mobiliário, entrevistamos Marcelo Ferraz, sócio fundador do Brasil Arquitetura e da Marcenaria Baraúna. Aqui, sua perspectiva e experiência ilustram como o corpo e os símbolos que ele carrega em si são fundamentais no momento de pensar o projeto independentemente de sua escala.
Outras reflexões sobre o tema do conforto, a importância perante o respeito às diferenças culturais e a prática no projeto de arquitetura e mobiliário são algumas das questões colocadas para o arquiteto, que em sua trajetória - assim como Lina Bo Bardi, com quem colaborou de 1977 a 1992 - trabalhou com as mais distintas escalas, apresentando um conjunto de obra que propicia diferentes abordagens no espaço em relação aos usuários.
ArchDaily: Para vocês, que trabalham com arquitetura (Brasil Arquitetura) e movelaria (Baraúna), existe alguma distinção na compreensão e abordagem da escala humana entre estes dois campos?
Marcelo Ferraz: Para nós, tudo é arquitetura. Por isso nosso livro com o trabalho da Marcenaria Baraúna leva o título "Móvel como Arquitetura”. Claro que existe a diferença de escala e até de materiais - no caso da marcenaria é pura madeira com as ferragens complementares, na arquitetura é todo o universo à disposição. Portanto não há conflito, o approach que temos para as demandas de mobiliário ou arquitetura (predial ou urbana) é o mesmo: escolha e comportamento dos materiais e técnicas construtivas, estrutura mínima necessária, economia de materiais e meios em busca de sínteses, rigor e, por fim, o mais importante, buscar ressonância do que projetamos no intelecto e no espírito do usuário. E isso passa pelo viés cultural e físico, corporal. Arquitetura é como uma roupa que vestimos, ou que nos veste.
![O corpo e o "conforto inteligente" na arquitetura: uma conversa com Marcelo Ferraz - Imagem 17 de 19](https://images.adsttc.com/media/images/5f90/45c6/63c0/1768/cd00/0222/medium_jpg/IMG_9086.jpg?1603290550)
Como o mobiliário relaciona a escala proposta pelo espaço arquitetônico? Ou, ainda, de que forma o mobiliário define a relação que o corpo gera com o espaço?
O projeto de mobiliário tem essa coisa fascinante de trabalhar na escala do 1:1, dos protótipos que superam e substituem os primeiros desenhos e acabam gerando o objeto projetado (desejado) com a experimentação do corpo em vários momentos. Muitos testes, dúvidas, amadurecimentos, mudanças e aprimoramentos (muitas vezes depois do objeto já em produção). Na arquitetura de espaços ou edifícios isso já fica mais difícil. Mas podemos afirmar com força que a experiência de trabalhar na escala do objeto nos ajuda muito na compreensão construtiva, no chamado detalhamento da arquitetura, que sempre se dá, quando construída, na escala 1:1, no encontro dos materiais.
![O corpo e o "conforto inteligente" na arquitetura: uma conversa com Marcelo Ferraz - Imagem 2 de 19](https://images.adsttc.com/media/images/5f90/4155/63c0/1768/cd00/0219/newsletter/_O5A4505.jpg?1603289415)
Mas voltando à sua pergunta, o mobiliário é nossa “roupa íntima” que tem que ser confortável e justa (nem mais e nem menos) ao que se objetiva. E ajuda sim, em grande medida, a definir os espaços que serão vividos pelo corpo em movimento, em relacionamento com outros corpos, com outros seres humanos com desejos diversos, modos diferentes de viver e ver a vida, o mundo…
Eu costumo dizer que é importante pensar em como a arquitetura (toda escala) é intromissiva na vida das pessoas. Digo isso aos estudantes e jovens arquitetos para que reflitam um pouco na responsabilidade que carregam quando fazem um projeto.
![O corpo e o "conforto inteligente" na arquitetura: uma conversa com Marcelo Ferraz - Imagem 19 de 19](https://images.adsttc.com/media/images/5f90/475f/63c0/17c6/6500/02b7/newsletter/isa_danielducci_(9).jpg?1603290957)
Um projeto pode causar conforto, bem estar, felicidade, ou até a desgraça na vida de pessoas e comunidades. Afinal, não só o bom, mas o mal projeto também pode ser durável. Isso é uma coisa séria e deve ser tratada com rigor.
![O corpo e o "conforto inteligente" na arquitetura: uma conversa com Marcelo Ferraz - Imagem 13 de 19](https://images.adsttc.com/media/images/5f90/47a0/63c0/17c6/6500/02be/newsletter/12.jpg?1603291022)
Principalmente após a arquitetura moderna, houve uma padronização do corpo humano para pensar tanto o ambiente construído, como a ergonomia, e hoje este acaba sendo um fato muito contestado pela exclusão de diversos corpos que diferem da norma. Como você enxerga essa tentativa de tornar o corpo universal na perspectiva do projeto?
Olha, eu acho que o corpo humano ainda é basicamente o mesmo em termos de dimensões, um pouco maior aqui, um pouco menor ali numa outra parte do planeta, mas é muito parecido. Não vejo essas diferenças que você cita. As questões e diferenças culturais é que são grandes e devem ser levadas em conta na hora de projetar.
![O corpo e o "conforto inteligente" na arquitetura: uma conversa com Marcelo Ferraz - Imagem 16 de 19](https://images.adsttc.com/media/images/5f90/461a/63c0/1768/cd00/0223/newsletter/croqui.jpg?1603290637)
Os modos de viver e se relacionar com o outro, de morar e ter suas necessidades biológicas atendidas, seus costumes alimentares ou festivos - namorar, cantar, dançar, rezar, etc -, sua memória, seus valores simbólicos... estes sim são diversos, ricos e devem ser respeitados e considerados ao se projetar.
Mas sempre com regras universais de higiene, salubridade, possibilidade de convívio de diferentes e prática da tolerância, dignificação da vida, em resumo, fatores que sonhamos para nossas cidades.
![O corpo e o "conforto inteligente" na arquitetura: uma conversa com Marcelo Ferraz - Imagem 15 de 19](https://images.adsttc.com/media/images/5f90/468d/63c0/17c6/6500/02b1/newsletter/corte_AA_a_m%C3%A3o.jpg?1603290756)
Pessoas de diferentes culturas possuem diferentes tradições de vida e preferências estéticas. Ao mesmo tempo, há uma internacionalização da linguagem que acaba por trazer certa homogeneidade nos projetos. Como criar um desenho distinto e que consiga se manter fiel às próprias raízes? Aliás, você acha necessário se manter fiel às raízes em relação ao projeto?
De certo modo eu já comecei a responder na questão anterior. Cada vez mais seremos conhecedores de diferentes modos de vida nos diversos rincões do planeta pela abundância de informação sonora e visual que temos à disposição, e de forma crescente. Essa internacionalização que você diz anula certos valores, destrói culturas? Talvez sim, certamente sim. Mas a cultura está sempre em movimento, em transformação, em processo orgânico de fusão, mistura, recriação…é viva. Sei exatamente o que você quer dizer: encontrar a mesma loja, com a mesma arquitetura, os mesmos objetos, em centenas de cidades mundo afora, tudo igual, homogêneo, pasteurizado. Isso realmente é muito triste. Mas tem também o outro lado, aquele que protesta e resiste, que está nas milhares de línguas faladas, religiões professadas, nos cantos e danças, na gastronomia dos povos. Nós também procuramos o que é diverso, distinto, original, com raízes mais duras ou mutantes, não importa.
Aliás, sobre a necessidade de se manter fiel às raízes, não vejo sentido se elas estiverem podres ou carunchadas. A boa arquitetura é aquela necessária, que atende aos usos e responde às demandas de seu tempo. Esse jargão é muito velho e batido, mas continua valendo.
![O corpo e o "conforto inteligente" na arquitetura: uma conversa com Marcelo Ferraz - Imagem 18 de 19](https://images.adsttc.com/media/images/5f90/4747/63c0/17c6/6500/02b6/newsletter/isa_danielducci_(8).jpg?1603290932)
Na história da Girafa e da Frei Egídio é citada a ideia de “conforto duro” como uma pauta central na sua carreira ao lado de Lina Bo Bardi, Francisco Fanucci e Marcelo Suzuki. Você poderia discorrer um pouco mais sobre este conceito?
Acho super importante e mais atual do que foi alguns anos, ou até décadas atrás. Digo isso porque, frente aos enormes desastres ambientais que estamos vivendo em escala planetária, é preciso discutir o conceito de conforto, a questão da economia de meios e material, sem desperdício e sem consumo de energia. E não é demagogia barata.
Não podemos tomar a ideia de conforto apenas como aquilo que "parece" que facilita a vida das pessoas, ou “acomoda" demandas do corpo humano, como os estofados em toda parte, ou o ar condicionado em tudo, sem refletir sobre as consequências disso (posturais) em nosso próprio corpo e sobre o gasto de energia não renovável para se alcançar certo tipo de conforto, que Lina chamava de “pseudo confort”.
![O corpo e o "conforto inteligente" na arquitetura: uma conversa com Marcelo Ferraz - Imagem 5 de 19](https://images.adsttc.com/media/images/5f90/41ad/63c0/17c6/6500/02a5/medium_jpg/capeladvic_croquis_ba(1).jpg?1603289497)
![O corpo e o "conforto inteligente" na arquitetura: uma conversa com Marcelo Ferraz - Imagem 7 de 19](https://images.adsttc.com/media/images/5f90/4212/63c0/17c6/6500/02a8/newsletter/L1090560.jpg?1603289604)
Os edifícios totalmente envidraçados que funcionam como estufas em cidades de clima tropical, que consomem uma enorme energia e produzem calor nocivo nas cidades, é um exemplo do que estou dizendo. Temos que repensar nossa arquitetura de uma forma radical. Voltar a certas lições de nossos pioneiros do movimento moderno como Lucio Costa e seu grupo que, por sua vez, tomaram lições da arquitetura colonial do passado ou vernacular, no uso de filtros de luz e calor (os muxarabies, os cobogós, as varandas) para certos casos, ou dos muros espessos, isolantes, com grande inércia térmica, para outros casos.
Mas o mais importante é pensar que conforto é "aquilo que conforta”. Muitas vezes uma pedra no campo sob a sombra de uma árvore num dia quente, proporciona mais conforto do que muita poltrona macia por aí, que pode até causar problemas de coluna ao usuário.
O conforto é também - e muito - psicológico. Então eu poderia traduzir o termo “conforto duro” por "conforto inteligente”, ou seja, aquele que atende a anseios humanos no tempo e no espaço, anseios do corpo e da alma.
![O corpo e o "conforto inteligente" na arquitetura: uma conversa com Marcelo Ferraz - Imagem 10 de 19](https://images.adsttc.com/media/images/5f90/4195/63c0/1768/cd00/021b/newsletter/16_2019_capeladomvicoso_fotos_brasilarquitetura_(abilio2).jpg?1603289479)
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