O estudo da arquitetura e sua relação com a vida cotidiana e com as questões de gênero têm estimulado pesquisadores a buscarem novas fontes de estudo e a ampliar a análise sobre suas ideias e realizações. Este ensaio busca compreender a presença feminina nos espaços urbanos a partir de extratos de vestígios dos cotidianos levantados em textos e imagens publicados em crônicas, reportagens e anúncios do jornal “Estado de São Paulo”.
A ideia de mulher moderna
A pesquisa pela expressão “mulher moderna” nas edições entre 1930 e 1960 foi realizada no acervo digital do periódico de maneira a compreender como a representação feminina é apresentada e reforçada nesse período, inclusive apontando a dimensão e as contradições da expressão.
O termo “nova mulher” (new woman em inglês, equivalente à mulher moderna em português) é cunhado no século XIX, nos Estados Unidos, inserido no contexto de intensas transformações sociais e ressurgiu na década de 1920 associado à ideia de modernidade e de liberdade, refletido e divulgado pelas propagandas e pelo cinema norte-americano. O termo é resultado das novas oportunidades no ensino superior e nas profissões, e do número crescente de mulheres ingressando no mercado de trabalho e na arena pública (HEYNEN, 2005, p.11).
A expressão se desloca para a Europa onde ganha força especialmente na Alemanha de Weimar, onde se associa ao novo espírito da época e frequentemente age como um ícone da modernidade. Ela educa-se, profissionaliza-se e ocupa o espaço público em busca de lazer, arte e cultura. Busca conquistar sua liberdade sexual e tem consciência do seu corpo, que se apresenta mais de acordo com os ideais do esporte e de acordo com a moda com seus cabelos curtos e vestidos menos acinturados. É o caso da figura que aparece na capa da revista Das Neue Frankfurt.
No entanto, depois de entrar no mercado de trabalho e aumentar sua escolaridade, lentamente as mulheres eram forçadas a voltarem-se para suas casas. As longas jornadas de trabalho associadas às responsabilidades com o lar resultaram em grande aumento nas taxas de mortalidade das jovens.
As novidades apresentadas em periódicos e no cinema sobre os hábitos e as rotinas das mulheres europeias e americanas vão permear o imaginário feminino brasileiro a partir da década de 1930. Um anúncio de tratamento médico para as mãos realizado na Europa colocava-se como inovador e apresentava assim suas usuárias: “a mulher moderna de Paris e de Londres sabe despertar, adquirir e conservar a sua feminilidade, juventude, saúde, atração e beleza tão desejadas e necessárias em todos os períodos de sua vida” (jornal Estado de São Paulo, 20 de novembro de 1945, p. 02).
Nos anúncios de jornal, demonstra-se a ideia de que a mulher moderna deseja o melhor que a ciência pode oferecer para os cuidados com o corpo, com a aparência física e com o conforto. Os anúncios de absorvente lançados entre 1938 e 1940 tentam reforçar as diferenças com as gerações anteriores, especialmente no que se refere à liberdade de se movimentar. Utilizando-se da expressão “a senhora não faz assim” com ações variadas – jogar tênis, ir ao banho de mar, fazer excursões e passear - e de desenhos que evocam figuras femininas vestidas com trajes dos séculos anteriores. O uso do absorvente remete às possibilidades desta nova era.
A escritora Capitu – autora de diversas crônicas no Estado de São Paulo – relata, entre as novidades no campo profissional, a possibilidade de atuar na carreira diplomática “porque a mulher moderna faz ilustrar-se tanto quanto o homem e nem sempre despreza suas fraquezas que lhe são inerentes, a bisbilhotice e a astúcia – ótimas armas da diplomacia” (Estado de São Paulo, 09 de abril de 1943, p.02). Essas mulheres desejam o aumento das possibilidades de capacitação profissional, melhor remuneração e acesso à educação de qualidade.
Nos anos 1920, mudanças importantes afetaram as imagens femininas. As oportunidades de trabalho assalariado cresciam juntamente com a escolaridade das jovens, fazendo com que mais mulheres passassem a encontrar empregos em lojas, escritórios e escolas primárias, por exemplo. Com isso, ‘moças respeitáveis’ começaram a ser vistas cada vez mais circulando pelas ruas. — PINSKY. Mulheres dos anos dourados, 2016, p. 475.
Liberdade e consumo no espaço público
Diversas autoras apontam que a partir dos anos 1920, as mulheres das camadas médias e altas começam a ganhar as ruas, atividade que desde o século XIX era restrita às operárias que precisavam se deslocar para as fábricas ou às mulheres que tinham empregos informais, como empregadas domésticas, lavadeiras, doceiras, floristas, artistas ou meretrizes. O Centro é o espaço por onde se deslocam essas mulheres em busca não só de lazer e de serviços, como também de cursos de formação e empregos.
A historiadora Michelle Perrot (2006) apresenta o desafio de pesquisar as mulheres comuns por conta da dificuldade de encontrar vestígios materiais que pudessem ser considerados fontes históricas, como correspondências, diários íntimos, autobiografias, declarações de amor e objetos pessoais. Muitos desses rastros foram apagados, destruídos, desprezados. Assim, o silêncio das mulheres vai sendo propagado ao longo do tempo. A pesquisa nos jornais aponta os caminhos por onde essas mulheres circularam.
São Paulo passou por um intenso processo de urbanização nas primeiras décadas do século XX, graças especialmente ao crescimento econômico possibilitado com a produção de café e com o início da industrialização. O Centro Novo passou por uma forte transformação entre os anos 1930 e 1960, apresentando uma vitalidade urbana graças às diversas funções ali implantadas e aos novos espaços construídos. Sua agitação atraiu investidores para os poucos terrenos vazios disponíveis e para a realização de novos empreendimentos imobiliários. Assim, as construções existentes na região foram substituídas por novos arranha-céus, que rompiam a escala horizontal da cidade com novos programas e arranjos espaciais.
Além das transformações físicas da metrópole, era visível uma mudança no modo de vida urbano. Com a presença de universidade, livrarias, cinemas, teatros, estações de rádio e de televisão, as mulheres passaram a usufruir dos novos programas e espaços, sendo registradas nas fotografias de época entre a multidão nas calçadas, nas ruas e nos pontos de ônibus e bonde. Anúncios de lojas femininas localizadas nas galerias ou na rua Barão de Itapetininga, considerada o eixo comercial de artigos de luxo do período, demonstravam que suas clientes priorizavam o conforto e preocupavam-se com o tempo e com sua aparência.
Para as mulheres, além de se relacionar mais estreitamente com o lazer, o ato de comprar e consumir significa a possibilidade de ultrapassar as fronteiras do seu cotidiano privado. Sair de casa para as compras, tomar decisões e poder escolher, além de ser o alvo das atenções (de anunciantes, vendedores e prestadores de serviço), têm também um caráter libertário para elas. — MIGUEL; RIAL. Programa de Mulher, 2016, p. 164.
A presença feminina no espaço público é manifesta na propaganda de uma marca de relógio que anuncia: “quando a cidade se ilumina, elas brilhão (sic)... O relógio Mavado é mais do que um ornamento, pois lhe dará sempre a hora certa, que é fator primordial na vida da mulher moderna” (Estado de São Paulo, 06 de julho de 1958, p. 02). Nesse anúncio, a figura feminina é representada a partir da silhueta de três senhoras de vestido e salto alto em frente a uma vitrine iluminada, atrás de grandes carros e próximas aos térreos de arranha-céus, reforçando a ideia de que a mulher moderna está inserida no contexto urbano. Nesse caso, o termo reforça-se ainda a partir de outros símbolos: roupas, cortes de cabelo, poses, hábitos. As mulheres representadas usam saltos altos, cabelos presos e vestidos longos com cintura bem marcada, o que marca o contraste forte com as figuras masculinas de paletó num corte reto. A formalidade da roupa demonstra a ideia de que o espaço público é um lugar onde homens e mulheres desempenham diferentes papeis que exigem cuidado na sua apresentação.
Enquanto no anúncio do relógio de marca Norma, uma mulher com uma capa de chuva e chapéu é representada em uma calçada enquanto o texto explica que “a vida social impõe deveres... e nada lisonjeia mais a mulher moderna do que a pontualidade” (Estado de São Paulo, 22 de outubro de 1946, p.02). Na década seguinte, a capa de chuva vai ser tema de uma reportagem que trata da utilidade e o conforto da peça e de sua associação direta com a circulação feminina pelos espaços públicos:
Já se foi o tempo em que as mulheres ficavam em casa nos dias de chuva ou só saiam em casos de extrema necessidade. Hoje em dia a mulher é obrigada a sair de casa todos os dias e o mau tempo não a assusta, mesmo numa cidade como o Rio de Janeiro. — Estado de São Paulo, 07 de junho de 1959, p. 22.
Inseridas na forte dinâmica cultural da cidade, as mulheres frequentavam os cinemas, os teatros, as livrarias, os museus, as galerias de arte, os restaurantes e os bares da região central, muitas vezes protagonizando os episódios importantes do contexto cultural. Em 1945, o Instituto dos Arquitetos do Brasil inaugura uma exposição de pinturas da Anita Malfatti em seu espaço no Edifício Esther (Estado de São Paulo, 11 de maio de 1967, p. 09), enquanto que, em 1967, a artista plástica Noêmia Mourão abriu na Galeria Metrópole um espaço voltado para os artistas modernos (Estado de São Paulo, 11 de maio de 1967, p. 09).
Além das facilidades do cotidiano, nos espaços do térreo ocorriam as atividades de lazer e sociabilidade entre os que moravam, trabalhavam ou circulavam pelo Centro, entre salas de cinemas, galerias de arte e livrarias. A ida aos cinemas para assistir aos filmes recém-chegados de Hollywood também era um evento onde as pessoas poderiam se encontrar, verem e serem vistas, além de se atualizar sobre as novidades americanas. Margareth Rago (2004) afirma que o cinema se tornou um dos principais pontos de encontro da elite paulistana e ganhou, a partir dos anos 1920, salas amplas e luxuosas, cenários refinados para os espetáculos elegantes.
A importância da ida aos cinemas pelas mulheres é atestada pelo caderno “Suplemento Feminino” do jornal Estado de São Paulo que, a partir de 19 de agosto de 1955, passou a publicar uma coluna semanal sobre as estreias nas principais salas da cidade. Como afirmavam Raquel Miguel e Carmem Rial, “o cinema era para todas (que podiam pagar). Acompanhadas de familiares ou amigas, frequentavam as salas de projeção espalhadas pelo Brasil desde os anos 1920, quando surgiram os primeiros cinemas no Brasil” (MIGUEL; RIAL. Programa de Mulher, 2016, p. 154).
Considerações finais
Na metrópole paulista de meados do século XX, a ideia da modernidade esteve presente nos anúncios de hábitos e produtos voltados para cidadãos que vivenciavam fortes transformações físicas, sociais e culturais. Associava-se à ideia de avanços tecnológicos e progresso para melhor qualidade de vida.
Este ensaio apresentou um panorama geral da vida das mulheres de classe média que moravam, trabalhavam ou circulavam na região central de São Paulo a partir de uma maior participação nas dinâmicas urbanas da metrópole que se consolidava. Diversos estudos apontam as décadas de 1940 e 1950 como o momento em que as mulheres avançam em seus estudos e lançam-se nas cidades. Elas buscam cursos de inglês, de datilografia, procuram empregos, caminham pelas galerias comerciais modernas no fim do dia, cafés, galerias de arte, teatros e cinema implantados nos novos edifícios modernos – ou seja, aproveitam a liberdade possível na cidade.
A urbanização, sem dúvida, modificou alguns padrões culturais. Distâncias maiores entre os locais de moradia, trabalho, estudo e lazer; os trajetos percorridos nos ônibus; a popularização dos automóveis; as possibilidades de diversão diurnas e noturnas, como frequentar piscinas ou praias, ir ao cinema, festas, bailes e brincadeiras dançantes, fazer o footing e excursionar proporcionaram a rapazes e moças, a homens e mulheres uma convivência mais próxima. — PINSKY. Mulheres dos anos dourados, 2013, p. 621.
Se Marshall Berman - no livro "Tudo que é sólido se desmancha no ar" (2007) - afirma que a modernidade ameaça destruir os padrões existentes, no caso paulistano, a ideia de um modo de vida novo, sedutor e perigoso não atinge o ambiente doméstico, onde as transformações se restringem aos modelos construtivos e aparatos tecnológicos, deixando a mulher ainda com pouca liberdade ou novidade em relação às rotinas domésticas e as obrigações familiares. A mesma “mulher moderna” que se interessa pelos lançamentos do cinema, por passear nas galerias ou por buscar emprego nos novos edifícios é frequentemente informada nos artigos, crônicas e anúncios dos periódicos que, mesmo com a liberdade de circular no espaço público, deve focar suas atenções para os cuidados do lar. Nesse ambiente, estaria sua segurança e sua realização para exercer sua verdadeira vocação, a de dona de casa.
Sabrina Fontenele é coordenadora de Pesquisa do Conselho Científico da Associação Escola da Cidade e docente da mesma instituição, com diversas orientações relacionadas às questões de gênero e arquitetura. Este ensaio é parte do artigo apresentado na segunda edição do Seminário Espaços Narrados (2019). Contato: sabrina.fontenele@gmail.com
Referências bibliográficas
COLOMINA, Beatriz. The private life of modern architecture. Volume 58, número 3. Nova York: Journal of the Society of Architectural Historians., setembro 1999.
HEYNEN, Hilde. Modernity and domesticity. Tensions and contradictions. In: HEYEN, Hilde; BAYDAR, Gulsum (orgs). Negotiating domesticity. Spatial productions of gender in modern architecture. Nova Iorque: Routledge, 2005, pp. 1-28.
PINSKY, Carla Bassanez. Mulheres dos anos dourados. In: PRIORI, Maria del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2013, p. 607-639.
RAGO, Margareth. A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo. In: PORTA, Paula (org.) História da cidade de São Paulo 3: A cidade na primeira metade do século XX (1890-1954). São Paulo: Editora Paz e Terra, 2004.
MIGUEL, Raquel de Barros; RIAL, Carmen. Programa de Mulher. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (orgs.). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2016. p. 148-167.
SOIHET, Raquel. A conquista do espaço público. In: PEDRO, Joana Maria; PINSKY, Carla Bassanez. Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2016, pp.218-237.